.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/08/2010

eu










porque achas que eu não sou eu. apenas porque choro? não. não são lágrimas. são desesperos feitos de pedaços de amor que se derretem sempre que olho para mim no túnel do tempo – a água vem dos teus olhos. quando em silêncio me dizes que afinal serei sempre eu – apenas nunca terei asas

-um dia talvez escreva-



era domingo










trago-me às costas desde um tempo em que não me compreendia. sabia apenas que para além da cama que me albergava as dores havia um jardim onde ainda eu ria – era domingo - o sol neste dia. crescia com vozes que nunca ouvia. e dentro das manhãs os passos cresciam por corredores de sonhos – havia gente a passar por um chão ainda estremunhado. as passadeiras enrodilhavam-se apenas pelo som dos novos andares – era domingo – neste dia. o pijama era a última peça a despir. a manhã não podia ter fim – faltava ainda o cheiro de um fogão. assava a diferença. e nas mãos que corriam sempre sobrava uma para me acenar – era domingo – no meu quarto os lençóis brancos imitavam a cor dos meus pensamentos – havia tudo no meu quarto. a macieira no lugar da mesinha de cabeceira. do outro lado. um ramo de laranjeira crescia de dentro da gaveta das meias – no tecto. caiam grinaldas verdes. pingavam gotas de orvalho. a noite tinha acabado. o calor ardia – no lugar da cama o mar. baloiçava-me como se fosse um baloiço. aos pés. o peluche era agora a gaivota. cinzenta. no peito uma mancha branca. as asas cobriam todos os meus sonhos – as lágrimas tombam mortas – hoje estão encerradas num túmulo do soldado desconhecido. mas a minha gaivota. continua a voar. todos os dias vos dá um pedaço de mim. deste. que fala por cada palavra que decepa a razão. deste. que de mãos vazias vos entrega a alma – tratem-na bem – agora tenho que chorar.



26/08/2010

estado terminal










tenho um mundo interminável de pensamentos. mas o meu cosmos está desorganizado. estou zangado comigo – ontem não consegui falar com uma ferida que tenho dentro de mim. sangrou – o sangue desceu-me pelas mãos. queria encontrar um caminho natural para poder abandonar um corpo que sofre de lepra – as palavras. malditas pelo tamanho que tomam dentro deste mundo que habito – trazem dentro de si sentimentos que me fazem chorar. um dia. deixarei o meu corpo depois de morto a um louco que saiba esquartejá-lo – quero que arranque todas as palavras que tenho escondidas neste olhar que nunca sabe calar – dentro daquela caixa de costura haverá uma agulha capaz de coser a minha vida de retalhos – os meus amigos. esses. que apenas quando olho o mar distingo. domarão as palavras que andaram à solta. e ao mar soltarão todas as gaivotas do universo – os outros. raivosos e comidos pelo caruncho que ataca a muleta da língua. morrerão cansados de me ouvir – nesse dia. convidarei todos para o velório da puta da vida. que todos os dias me deixa cansado de ter que me coser com linhas que sendo minhas. não são minhas.



20/08/2010

sexta-feira negra









se eu te pudesse dizer desta dor que não nasce.
talvez a morte morresse a sorrir



sevícias culturais










estava para escrever. hoje. mas o dia tinha tanta luz que resolvi fingir que não escrevo – prefiro falar. com esta língua que me sai do fundo da goela e que me morde os lábios para calar – malditos fígados – maldita herança. maldita raça que morre em cada palavra - hoje. não escrevo. tenho um ramo atravessado nos olhos. um ramo bailarino. descabido. um ramo que nasce onde o nada costuma nascer com nome. a barriga das putas prenhes em noites de sevícias culturais – ainda hoje procura o pai – é por isso que alguns ramos escrevem. procuram um pénis. desconfiam da mãe e de todas as artes que colidem com a pequenez da mente – o corpo. esse é água. evapora-se no meio da orvalhada. é lá que transpira. é lá que se torna cidadão do mundo. muda. transmuda-se da única cadeira capaz de suportar o seu querer. a imaginação vagueia pelas putas que nunca conseguiu emprenhar – é viagem dentro de uma mesma viagem – tem um cão que se chama nobel e uma faneca que saltou de uma dorna de vinho – passeia com ela com uma trela feita de poemas – agora quer um gato. diz que já está farto de se masturbar – talvez esta minha mente esteja doente e quem sabe queira apenas ensinar o gato a ler. talvez necessite de palmas – o corpo nunca foi grande. o tempo passa e a corcunda incha – talvez o gato acabe por o fazer feliz – talvez. e um dia os dois comam ratas e apanhe os cacos que a sua mão da masturbação me fez ejacular neste papel que era para ser branco



16/08/2010

hora










há horas onde a morte é a única mão amiga – momentos em que os olhos morrem de dor e a porta sem luz é o farol – nestas horas. a morte faz-me viver cada segundo. corro no passado. procuro a razão que me faz adiar o segundo. procuro a eternidade – o relógio. acerto-o às lembranças - bate as horas. as meias e os quartos. assim. nunca adormeço pendurado na morte – suspenso ao dedo mindinho uma corda que teci com a vontade de renascer. tem na ponta um bola de ferro que atirei para dentro dos olhos. amarra-me a esta realidade falsa. adia. apenas adia a viagem – quero ir para casa – sempre soube que é do outro lado a minha casa – é do outro lado que existo – aqui. nesta imagem invertida sou apenas reflexo – sangro. mas não deixarei de tecer a corda que um dia me levará – sangro. mas não deixarei de escrever a dor – sou o maior serial killer de todos os tempos. mato-me todos os dias – um dia serei feliz – necessito de uma bala de prata.



10/08/2010

é agora










não fui capaz de lhe dizer que era hora de também ela partir. habituei-me a esta ferida que é dor – estou a pensar um destes dias juntar a uma mesa de café todos as feridas da minha terra – quero sentir com os olhos que as feridas são todas iguais. todas capazes de me fazer gritar por igualdade – este muro que se ergue entre as mãos e o papel mata-me. esquarteja-me a esperança – não sei como resisto a morrer tantas vezes. estou a ficar cansado de me asfixiar e até os dedos me parecem gastos de procurar a vida – este som que bate aqui dentro enche-me os olhos de ruídos. crava-me estes buracos que vêem no peito. e as lágrimas de sal. são amigas agora de uma agonia que não sabe chorar – rebenta-me. impludo – um deste dias arranco o coração. talvez a culpa seja deste monstro enorme que não me deixa sossegar. sempre a mexer – bate. bate. bate. este barulho que ouço sempre que olho para a mão que escreve. bate. como se todo o corpo fosse dele – tenho que morrer depressa. não posso deixar que este bater me diga que um dia vai parar – serão as mãos as primeiras a matar a dor – talvez assim ele possa calar em sossego – será a mão que escreve a dizer – é agora



09/08/2010

vou ter que chorar. morri










o telefone tocou. ligaram-me a dizer que faleci. eu que estava mesmo agora a falar comigo – como é possível. ainda tenho tanta coisa para dizer e fazer – como irá viver a outra parte de mim – talvez não chore. talvez descubra finalmente que eu era apenas um estorvo e que todo o azar do mundo era meu – ainda me lembro do dia em que deixei cair aquele verbo do azar em cima do pé da outra parte de mim – mancou durante toda a noite. e até os sonhos dourados que lhe tinha prometido ficaram negros – vou ter que chorar. afinal morri. e quando se morre é normal chorar – vou ter que dar esta prenda final a mim. vou chorar. talvez assim me sinta mais perto da outra parte de mim – já nada me interessa. afinal morri e sempre que alguém morre tocam os sinos – mas quem vai saber que morri? se a outra parte nada de mim quer. que se foda. mesmo que ninguém os toque vou imaginá-los. não vou deixar a outra parte pensar que a morte não é uma coisa séria para mim – tenho que chorar e não consigo encontrar uma única gota dentro deste corpo. talvez seja uma imunidade da outra parte que acabou por contaminar o meu olho. o único que afinal sabia chorar – mas também já não me importo. sei apenas que sou eu que escrevo. e já que morri também não terá nem mais uma palavra capaz de o fazer adormecer sem dores – hoje. dormirei sem estas agulhas malditas que me corroem os ossos, mutilam os membros. descalça a alma em cada segundo de sono – hoje. dormirá sobre os trapos. aqueles que lhe tapam os ouvidos sempre que eu grito – morri para o outro. mas o mar continua a bailar e até as minhas gaivotas continuam a cortar o vento. procuram um barco com casco amarelo.



06/08/2010

acreditar










tenho uma casa que muitas vezes não é casa. um corpo que não é corpo. diz-me que os lugares são efémeros. mas as dores são tão longas. passam para lá de tudo que tenho. restam-me as flores que ainda crescem. germinam sonhos em silêncio - hoje vais sorrir. tenho um truque para te fazer sorrir. vive dentro de todos os desejos que ainda não alcancei - um dia. acredito que também eu poderei cair no meu mar. envolto em correntes e aloquetes de ferro. sem ar. sem espaço para sonhos que não sejam erigidos em pedra granítica - lá. onde o sol não entra. e a areia é pura. apenas há estrelas do mar com olhos negros a sorrir - é um mundo lindo – um mundo. cheio de peças de teatro. de declamações. encenações. cheio de gente a escrever coisas felizes – na tribuna dos olhares sinceros encontrarás um dia um polvo. noutro dia um peixe espada. ainda suado de uma luta à moda antiga. onde defendeu a honra de todos os poetas. e até um tubarão martelo. é ele que dá as pancadas de moulière. para logo de seguida surgir uma raia cheia de eletricidade capaz de acender todos os holofotes que um dia alumiarão a tua criatividade - o mar revolto no topo do mundo. contrasta com este mar – neste lugar. a água é de um tempo feliz. não há correntes a trazer o dia para lá e para cá. aqui. há uma tábua de escrita. cheia de livros que um dia terão títulos – os teus títulos – as correntes cairão corroídas pelo sal. e todos os sonhos virão à superfície – o corpo ficará no fundo do mar. em paz.



04/08/2010

linha










nesta linha imaginária que os olhos afirmam ver. atravessam-se palavras amargas de um tempo perdido – triste sim. desiludido. sim. frustrado. sim – mas não me peçam para deixar de ver a linha – sei que ela existe. tu também.



solidão do homem da nuvem









quantas vezes estou só. como um cão. e a companhia é só um amontoado de gente sem rosto – tiro-lhes os olhos. a boca. o nariz. as feições que me façam lembrar a carne que ainda tenho por apodrecer – dou-lhes uma caiadela. quero-os brancos. da cor dos fantasmas – arranco-lhes as pernas e os braços. tiro-lhe os gestos e a subtileza do movimento dos corpos. assim não me enganam – finalmente posso continuar só. como um cão que habitava na esquina da minha rua – vivia de olhos fechados. e à minha passagem enroscava-se ainda mais em si. talvez tivesse medo que os meus olhos um dia descobrissem que afinal não era um cão vadio – era apenas um cão só – adoptei-o. e sem ele saber guardei-o debaixo da língua que nunca soube falar – é ele que rosna quando o mundo me interrompe a solidão – hoje rosnou para uma nuvem. levava um homem de braços caídos – talvez um dia eu tenha uma nuvem só minha. onde possa morrer com a minha solidão – entretanto e enquanto não me dispo do resto da carne que ainda aqui sobrevive. olho para a nuvem do homem de braços caídos. imagino o mundo sem mim. sem o meu cão. sem a minha rua. a casa que guarda os retratos do que fui. a minha gaveta da roupa que me faz ser pessoa sempre que a dor chega aos ossos em forma de gelo – um dia este coração vai deixar de bater. e todos as estalactites se cravarão na terra que albergará o meu corpo – a nuvem prosseguirá o seu destino




futuro









hoje matei a esperança. mas também está habituada. já morreu tantas vezes – esta esperança acaba sempre por me desiludir. diz que tem uma hora que não é de todos. um caminho para gente especial – arrependi-me. ressuscitei-a – penso que já me conhece. brinca comigo. sabe que nunca a deixarei morrer só – um dia vou descobrir um caminho dentro da vida. onde as pernas possam correr. talvez possa até tirar os sapatos e sorrir para o passado – será um dia ainda dentro desta vida. não da outra que um dia vou encontrar – prometo. prometo. prometo – prometo que farei um caminho aberto a todos os lugares do mundo e quando for pó. saberás que no pescoço. terás apenas os meus braços



se tu













se tu estivesses por aí. agora
se tu adivinhasses. agora
se tu fosses minha. agora
se tu me olhasses. agora
se tu me ouvisses. agora
se tu me lesses. agora
tudo o que:
há dentro deste pedaço de papel

abriríamos uma porta
uma porta que desse para um todo

e
talvez
quem sabe
provavelmente:
tomássemos veneno