.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

13/06/2012

a morrer do mundo



 
pedro américo


como é que um homem deita o corpo a descansar se o descanso já morreu – tudo o que vejo é apatia. tudo o que sinto é desespero. tudo o que faz cor dá negro – tudo está morto antes de estar – e olho. e volto a olhar. e tudo está a desaparecer. até a luz. ainda hoje pela manhã era dia aberto e agora já é noite – quer dizer. ainda não é. mas já se faz anunciar – e rodo para norte o corpo. e depois para sul. sem saber como sossegar – entre mim e o nada  uma flor. desgostosa. desamparada. desprotegida. sem nome – nunca soube o nome de flores. talvez seja um girassol. um jacinto. uma estrelícia. uma papoila. ou uma rosa. mas o que interessa é perceber porque está murcha. a morrer. talvez falta de chuva. não chove dentro das casas. ou então. talvez seja falta de pessoas capazes de trazer a água para casa. não sei. se soubesse talvez pudesse ajudar. mas não sei – sei tão pouco da vida – estou somente capaz de observar as coisas. sinto-me estranho. esquisito. talvez não venha de mim este mal-estar. talvez sejam os outros a fazer de mim um homem sem certeza na vida. sem perceber se estou doente pelo corpo. ou pela cabeça – não sei. creio que estou como sempre estive. sempre fui pálido. com olheiras. lábios gretados. e a cabeça sem saber para que lado tombar. sempre me senti a morto. sempre olhei mais para o passado do que para o futuro – o passado é certo. no futuro há sempre homens a olhar para longe – agora tudo mudou para mim. não há futuro para as pessoas que me cercam. faço-as morrer antes do óbito. e assim. já não há gritos. não há corpos para chorar. e não há flores. porque também estas morreram antes dos corpos. e não há campas abertas porque o coveiro morreu no dia em que lhe roubaram a pá. e não há missas porque o padre morreu antes de deus mandar o seu filho à terra para morrer por gente que não vale coisa nenhuma – também deus já sabia da morte do seu filho mesmo antes de morrer. e cristo também sabia que tinha nascido para morrer numa cruz feita por homens que não dão água às flores – todos querem um pedaço de tempo a qualquer preço. mas ninguém se esforça por o conquistar – e tudo seca quando as nuvens não carregam água. e judas sabia que só a morte do filho do criador daria sentido à sua vida. e a vida está cheia de gente que só aparece quando os corpos falecem – as moedas de judas só entram na narração para criar enredo. morreu para ficar na história. morreu pela ganância. e nunca ressuscitou. e nunca soube o nome de uma flor. e nunca trouxe água na palma da mão. e o mar morto. infestado de sal. não deixa o corpo afundar. e o mal sempre à tona da água. e o homem também – só não sei o que vou fazer ao meu corpo para o fazer descansar. estou numa história que não é minha. não consigo dormir. não consigo guardar as vozes que reconheço. não consigo sossegar. e tudo dentro de mim está cada vez mais distante do mundo dos que ainda não morreram – quando era novo sabia tudo. agora não sei nada. talvez as ideias já tenham morrido – e o mundo anda. e eles mandam o mundo andar como se o pão sobrasse pela falta de bocas. e uns comem. e outros olham. o autocarro dezoito passa sempre às meias horas – aos meus olhos veio. pausadamente. o motorista. dono do volante. mas não do destino. e o corpo à espera da velocidade da luz – a chuva suspensa entre o céu e a terra. os pássaros com asas de cera gritam pelo nome da santíssima trindade. moisés ri-se às gargalhadas. não há terra prometida. nem vida depois da morte. e a igreja morta manda rezar. e o comunismo morto grita. e o capitalismo morto rouba. e as doutrinas na mão de gente que nunca morreu. porque nunca nasceu para a vida das flores. dos pássaros. da chuva. das manhãs feitas de sol. da juventude. dos doentes. da mulher esperança. do pai de mãos ásperas. da justiça. da rua verde. da cerejeira. do cão. do abraço. do olá. do bom dia. da história contada à cabeceira da cama ao filho com medo de um fantasma que se chama papão. da estrela polar. e da lua que cresce e minga com os dias que fazem dos velhos gente sábia e respeitada – nunca se ama o que não tem nome. nunca falece o que não nasceu. nem o que não tem rosto – e a vida era feita de imortalidade que comigo corria e gritava: somos eternos – morro. morro todos os dias – escrevo para continuar a morrer desta dor que nunca soube viver dentro de um corpo que insiste em parecer saudável – um dia morrerá de vez



2 comentários:

  1. Excelente texto, triste como tudo o que escreves, mas não deixa de ser soberbo.

    Beijo

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    1. muito obrigado vanda pela leitura e comentário gentil

      beijo grato

      sr

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