.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/10/2012

para: vânia lopez




amadeo de souza cardoso






para: vânia lopez



a minha parceira das palavras teceu o seguinte comentário ao meu texto sophia:

A simplicidade fala como a continuação de uma música,
mar solto... desejava que não fosse pecado escrever assim:
com o mar solto sem nenhum grampo impedindo a brisa.

mas... 'de costas para a realidade' (é antes de tudo um abuso)
uma disritmia aos olhos de quem lê.
de qualquer diabo: escolho essa tal de simplicidade dos olhos,
por ser absoluto de quem olha.

por hoje obrigada, mas não sempre
porque gosto de mais e mais. beijo





respondi com amizade:



que mais poderei escrever. que mais poderei entregar de mim para dizer que a escrita é uma caneta e um olhar que guarda corpos e objectos num papel – tudo o que é existência é imagem – gosto de sentir. de contemplar. de ouvir. gosto de ver o movimento das coisas e os bancos sós no jardim. gosto da solidão. do silêncio do nomes que não conheço e das coisas com nome – gosto mais do mundo dos outros do que do meu – dentro de mim a ilusão de te escrever tudo o que sinto. o cheiro do meu mar. o sol que cai por uma encosta que nunca subi. o vento sul a roçar as folhas de levezinho e as árvores a gemer como cantos de sereias encantando os pássaros-primavera em campos cobertos de magnólias – escrevo – e os olhos a ver cores que não existem para ninguém. vejo eu porque sou eu. irracional. idiota de um amor impossível – assim sem saber bem como o fazer digo-te: quando escrevo sou eu e os outros podem ainda ver mais longe. as searas estão ceifadas e o fim do mundo é ali. onde o meu dedo aponta. onde morrem todos os que querem ser poetas. ali onde os teus olhos veem com os meus – um mundo que não existia antes dos poetas de verdade – como faço agora para te dizer tudo isto que sinto sem boca e sem arte? escrevo como sei. e o corpo grande está cada vez mais carregado de coisas pequenas que não sei escrever





18/10/2012

para: sandra fonseca





amadeo de souza cardoso






a minha colega sandra fonseca escreveu o seguinte comentário ao meu texto sophia:




- Ainda hoje lí uma frase do poeta Ferreira Gullar que também diz bem do tema desse belo texto: "A arte existe porque a vida não basta". É salvação e vida, diz Sophia.E tão bem nos traduz neste ofício, palavra por palavra, no teu silêncio aflito e ao mesmo tempo encantado diante dessa "felicidade irrecusáve. Nua e inteira." -




respondi agradecido:




é no meu silêncio aflito que encontro um prazer que até há pouco tempo não imaginava ser possível conseguir – não há forma de me reinventar. não há forma de me fazer diferente desta vontade única de continuar a escrever o que sinto – escrever não pode ser um sofrimento sem sentido. tem que ser um sofrimento feliz. como diz e bem a conceição – é esse sofrimento feliz. [sempre acompanhado por johann sebastian bach - orchestral suite nº 3]. que procuro na minha escrita – escrever a cada dia melhor é absolutamente imperioso. pois só assim serei capaz de transmitir com verdade o que vivi. o que vi. o que senti. o que sou e o que gostava de não ser – gostava de me saber escrever no olhar de cada leitor – utopia sim. desistir não






16/10/2012

para: conceição [roque silveira]






amadeo de souza cardoso





a minha camarada da escrita conceição [roque silveira] escreveu o seguinte comentário ao meu texto sofhia:


 "Já eu acredito que há génios dentro de nós nalgum momento da vida, ou em vários; não sei que te dizer sobre os que tens, mas acredito que os mostras cada vez mais a cada dia, a cada texto, que ser génio não é ser perfeito é ter essa capacidade de caminhar, seja na vida, ou por dentro de si e isso é de algum modo felicidade. Eu noto na tua escrita uma espécie de sofrimento feliz. Ah, sempre tive uma admiração pela poesia de Sophia."


respondi grato:


palavra que não sei o que te dizer – sei que não lido muito bem com elogios. tenho medo. obrigam-me a qualquer coisa que não sei explicar. talvez me obriguem a ser melhor. não um não ser melhor. mas um ser melhor trajado a rigor. assim como quem vai a uma festa de gala. na entrega de um prémio. assim uma coisa importante – às vezes penso que sou mesmo muito confuso a escrever. quando tomamos café sou muito mais povo. mais popular. mais arteiro. mais humano. mais sem jeito de dizer coisas – mas há um elogio que gosto de ter. de preferência muitos. às centenas. escritos. orais. sinais de fumo. gestuais. sei lá. tudo o que possam encontrar e que faça o corpo estremecer. que faça os olhos humedecer de timidez. e o cérebro dizer-me que ninguém chora por tão pouco. pára. guarda essa lamechice para as coisas da dor e não da alegria. porque estes elogios são fruto do esforço. numa luta gigantesca entre o que posso dar e o que gostaria de dar – mas sou assim. e a porra das comparações sempre a dizer que ainda tenho que ser mais. e que os outros são todos muito melhores do que estas palavras que encontro para dizer que sou feliz. como nunca fui ao escrever – sou tão feliz que respondo desta forma. não por vaidade. não porque gosto de textos grandes. não porque tenha assim tanta coisa importante para te dizer. respondo assim porque sou feliz ao escrever. porque descobri que esta é a única forma de dizer coisas boas às pessoas que merecem ter palavras boas – sofrimento feliz? sim. sim porque gosto. e gosto porque me define em todos os silêncios que encontro para escrever – sou tanta coisa que não quero ser e o que sou mesmo acabo por não ser – ah que raiva que tenho de não poder escrever tudo o que penso. se soubesse. tenho a certeza de que ficarias mais feliz e eu mais sossegado por saber que disse exactamente o que queria dizer. e queria dizer tanta coisa. escrever-te assim como se estivesse a falar contigo. com os braços a gesticular e o corpo a gemer de um lado para o outro. os olhos a inchar e a desinchar e eu a abanar-te implorando que me dissesses com os olhos que me compreendias. assim como eu me compreendo quando estou lúcido – rais parta este comentário. e eu por aqui sem saber se disse tudo ou se como em quase tudo na vida. me fico pelas metades. o que por esta idade já não sei se é defeito ou a ambição de querer fazer sempre cada vez mais coisas – não estou louco acredita. nem perdi a noção do papel já gasto. estou assim como quem sabe que a felicidade é feita de coisas pequenas. de palavras pequenas. de maçãs vermelhas enormes. e de um mar cheio de gaivotas que por serem donas do vento são donas do rumo que querem dar à vida – eu quero ser feliz. só






14/10/2012

sophia




a. c. delfino




não há génios. nada me dizem as palavras quando de costas para a realidade – todo aquele que trabalha à procura da palavra mais-que-perfeita. sofre – escrevo acoberto de paredes brancas. tudo é branco. tudo menos a abertura da janela. dos olhos – entre o olhar e a luz uma maçã enorme. vermelha e imóvel brilha no tampo da mesa – na parede o reflexo distorce a verdade – sombra – duas realidades. dois tamanhos para um só objecto – na janela o caixilho quadrado guarda um mundo que se quer azul oceano. encoberto por um tule feito a ponto cruz. um círculo sem princípio nem fim. transparente – tudo o que é mar é brilho. tudo menos os barcos à vela pousados num horizonte que a cor dos olhos desconhece – presas ao caixilho quadrado também as gaivotas voam em círculo – às mãos o trabalho. aos olhos a contemplação. ao coração o sentimento – como artesão. de sol a sol. procuro nas palavras o fabrico do belo. faço-o num silêncio aflito que por ser só meu ninguém sabe que existe – há neste escrever “uma felicidade irrecusável. nua e inteira”



*dedicado a sophia mello breyner



nota de autor:

sofhia mello breyner aquando do seu discurso de 11 de julho de 1964. na sociedade portuguesa de escritores. na entrega do grande prémio de poesia à sua obra livro sexto:

“A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. Eu também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.”




09/10/2012

Café Com Saudade




                                                           amora - dila santos





Um dia provei do teu açúcar a leveza na brevidade de um beijo de amor

- iguaria que no céu da boca se derrete, qual estrela de polvilho.




...Como lembrança de uma infância morna, o teu gosto distante visita-me a língua,
à mesa do café.



A xícara também sofre, quebrada na borda.





* amora heterónimo de dila santos – colega brasileira pela qual tenho uma grande admiração pelo modo suave e belo como encontra as palavras para os seus textos – escrita melodiosa que abraça o leitor e o leva a um estado de grande satisfação interior – ler-te é um abraço que não acaba nunca






08/10/2012

hasta la victoria siempre







estamos em guerra – ele comem tudo e não deixam nada - os impostos. as fundações. as ppp. os emi. os desempregados. os tachos - precisamos de um glenn miller para animar as tropas nesta ocupação silenciosa dos políticos – temos que manter a moral em cima – hasta la victoria siempre


05/10/2012

apalavrar




esao andrews




uma agitação dentro do corpo. os órgãos reclamam liberdade às palavras – não sei se alguma vez serei capaz de largar as palavras das mãos sem perceber o que cada uma de mim leva – tenho medo. tenho muito medo das palavras – há tanta coisa que desconheço das palavras. são sempre tão complicadas. difíceis. problemáticas. com tantos sinónimos. a dizer tanta coisa ao mesmo tempo – as palavras amedrontam-me. assustam-me. como quando ouço o vento norte. anuncia sempre mau tempo e o bater das portas não pára. e vão para lá e vêm para cá. e o corpo sem saber o que entra ou sai – sempre que as palavras partem deixo o olhar fixo à procura de ouvidos que as queiram colher. como se colhe o centeio da terra que mata a fome às bocas – e o medo é um novo adamastor feito de palavras que partem com tudo o que é meu. e o corpo em mar navega com terra à vista. em desassossego. inquieto. receoso afunila a esperança para quem as quer colher: adota. não adota – há certezas que desaparecem entre a boca e o corpo de quem escuta. e na caverna auditiva o monstro aparta as palavras. boa. má. boa. má. e tudo é diferente para sempre: deixei partir o que só eu sei dizer e os outros ficaram a saber o que eu nunca disse – não há lábios íntegros nem ouvidos puros – e depois aquela incerteza que trouxe do berço. e tudo sempre tão difícil. e tudo dúvida. e tudo terror. e o dia sempre a puxar para o escuro. e ao longe a nuvem a correr sempre para norte e as mãos sempre pequenas num corpo que quer crescer com as palavras – não consigo descansar desta aflição de saber se escrevo palavras autênticas. a cabeça a dizer sim. as coisas no papel a dizer não – a arte do pregador é falar e a do escritor é escrever. e eu não sei nem uma coisa nem outra – porque me castiga deus com tanta palavra hesitante – a cabeça teimosa a dizer que sim com mais força. e acena. e acena. e as lombadas dos livros viradas para a parede. estou de castigo – um escritor é feito por todas as palavras que escreve. mas eu escrevo sempre poucas. para o tanto que quero dizer – e a cabeça continua a acenar. imagino então que todos são como eu. tolos. feitos de palavras que não existem em papel. nunca nenhum escritor escreve em papel o que lhe cai nas mãos. aquela sensação de calor. a falta de ar. o desassossego. os ossos a partir de cansaço e as lágrimas a escorrer por dentro e por fora. os olhos perdidos do corpo lutam por cada página do dicionário. folha para trás. folha para a frente. da boca um raios partam isto. não encontro sinónimo para a palavra felicidade sem esta maneira de dizer as coisas – e o corpo reclama escrita. e escrevo resmas e resmas de papel para dizer nada. nada que os outros entendam – e a loucura é agora reconhecida. atestado por um médico

- - está louco. já não reage à medicação. não consegue abandonar a obsessão de que um dia todas as palavras terão sentido – façam o favor de internar este pseudoescritor. não esqueçam. colete de forças e sala branca por tempo interminável até que faça outra avaliação do seu estado mental –

sempre que junto palavras invento-lhes uma nova vida. ricas. poderosas. fortes. elegantes. viajadas. a falar francês. inglês. bem vestidas. reconhecidas e sempre a apontar para mim – mentira. tanto quero dizer e no fim do parágrafo o que sobressai é apenas o ponto final – também eu tenho que por um ponto final nesta forma de escrever. tenho que largar as palavras tal e qual como elas me erguem do chão. não posso senti-las de uma forma e depois entregá-las ao leitor de outra. têm que partir sem erosão. sem polimento. sem brilho. sem maquilhagem. têm que partir do que sou. do que sinto em silêncio. quando encostado ao pulmão coloco as pernas em cima do coração. para facilitar a circulação sanguínea. incham-me os pés e com os pés inchados as palavras incham também. e fico com os canais lacrimais entupidos e eu não sei escrever sem chorar – se as palavras fossem choro era fácil. uma música. uma voz e a liberdade do corpo era a grândola vila morena – se as palavras fossem gaivotas era fácil. um dia de sol. um pouco de vento e a liberdade eram asas – se as palavras fossem peixes era fácil. um oceano. uma onda. e a liberdade eram barbatanas – se as palavras fossem saudade era fácil. uma recordação. uma foto na mão e a liberdade era o passado – se as palavras fossem vento era fácil. uma criança. uma praia e a liberdade era um papagaio de papel – se as palavras fossem um homem era fácil. um papel. um poema e a liberdade eram as metáforas – não há liberdade para as palavras que escrevo. elas são eu. e eu estou preso em cada palavra – eu sou a prisão das palavras as palavras as grades da vida




02/10/2012

fantasmagoria




salvador dali




“Só há uma diferença entre um louco e eu. O louco pensa que é sádio. Eu sei que sou louco.” – salvador dali






acontece-me algumas vezes quando escrevo um texto literário. “conjunto de palavras e frases articuladas. escritas sobre qualquer suporte”. chegar ao seu fim sem compreender uma única palavra do que escrevi – o corpo cai em depressão – digo o corpo porque tudo começa a funcionar mal. cabeça. coração. vesícula. bexiga. olhos a lacrimejar. falta de ar. arrepios de frio. mãos a tremer. sensação de temperatura elevada. boca seca. e o número de emergência do inem não me sai da cabeça – agoniado. aguento. conforme posso. sei pelo passado que a solução. na maior parte destes casos. só aparece com o passar do tempo – volto a ler. reescrevo este ou aquele pedaço de texto. corto aqui. retoco acolá. acoplo umas quantas palavras novas e pronto. sinto-me outro. e tudo agora no corpo são olhos abertos à segurança – o tempo e o trabalho cura tudo – mais calmo. mais lúcido e certo de que o meu suporte de vida aguentará até ao próximo texto. caio em mim. percebo que tudo não passou de um momento tresloucado do cérebro. um tipo de loucura estranhíssima que geralmente ataca alguns jovens que escrevem. os que gostam de passar o seu tempo livre a ligar palavras – ainda existe muita falta de informação acerca destas perturbações doentias. de gente que abdica de quase tudo. cinema. futebol. café. tv. amigos. sono. harmonia. etc. – somos quase sempre incompreendidos. a pergunta que nos colocam constantemente é porque insistimos em continuar a escrever o que ninguém lê. o que não serve para nada. o que não acrescenta nada – não é fácil explicar esta necessidade doentia de colocar em papel todas as palavras que diariamente explodem dentro da cabeça. fragmentando-se em mil e uma interrogações que não sei responder – é loucura dizem os mais céticos – começo a acreditar no modo como esta gente nos olha – estes jovens que escrevem têm realmente problemas que inclinam tendencialmente para o grave ou muito grave – estas anomalias ou perturbações patogénicas do cérebro. temporárias ou permanentes. cada vez mais frequentes no meio literário. não foram ainda suficientemente perigosas para que o meio-técnico-cientifico dedicasse mais tempo e meios capazes de enfrentar. tratar ou minorar estas crises de quem quer escrever tudo o que pensa – sabe-se no entanto que um pequeno grupo de cidadãos ligados à área das letras. professores. escritores. poetas. filósofos. pensadores. entre outros. continuam à procura de uma razão plausível para estes devaneios cerebrais – a patologia é o ramo da ciência médica que estuda as alterações morfológicas e fisiológicas dos estados de saúde. as causas estão identificadas. só ainda não foram capazes de reconhecer onde e quando se dá a modificação do gene que faz um homem comum ter um acesso de raiva feita palavra escrita. suficientemente forte para se transformar num texto literário incompreendido até pelo seu autor. quando este recupera o seu estado normal – o que se sabe. segundo os estudiosos ligados a este ramo de desvios. é que estas mutações podem ser causadas por um vírus. ou por erros de cópia do material durante a divisão celular. por exposição a radiação. ou mais grave. por influência direta ou contacto com outros seres humanos que. acometidos da mesma maleita. também escrevem coisas que a maior parte dos humanos é incapaz de perceber – estou em crer que este desinteresse. do corpo científico que estuda problemas do foro neurológico. ao crescente aparecimento de textos que não servem para coisa nenhuma. ainda não mereceu devida atenção – uma das razões que aponto para este “facilitismo” por parte das entidades responsáveis da saúde intelectual pública a nível mundial é a de que até à data não há nenhum ato de violência associado aos criadores destes textos destoantes. impercetíveis. tresloucados. estes limitam-se a levar para o papel um conjunto de palavras que não chega a lado nenhum e ponto final – um neurónio desce pelo braço. mão. dedos e acaba morto no fim de um parágrafo. cravado no peito com um ponto final –