.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

23/11/2013

púrpura




james ensor
 
 



acreditei que o luto estava encerrado. disse. acreditei – esta coisa da morte é estranha. quando menos se espera volta a viver como se nunca nada tivesse partido – se eu me compreendesse talvez pudesse escrever alguma coisa com mais sentido. mas não. não me compreendo. quiçá uma parte de mim está morta e quem escreve este rascunho de coisa nenhuma não é mais do que uma debilidade de uma parte do corpo que teima em escrever para viver

[quando saio à rua vejo tudo tão vivo. como se nunca nada tivesse partido do mundo)

tu que me estás a ler. sim tu. tu mesmo. achas que estou louco? sabes o que é a morte? sabes? já sei o que vais responder. vais dizer que sabes o que é a vida. e que a vida são pássaros a voar em bando e roupa a secar num estendal de uma varanda num quarto andar desabitado – mas quem me manda escrever? quem? neste dia de merda talvez o certo fosse mudar a terra naquele vaso que ninguém consegue ver – o bando de pássaros vê – um dia vou mostrar-vos – talvez depois de morto os sonhos possam florir anunciando a ressurreição de quem chegou sempre atrasado às palavras. no vaso que ninguém vê



21/11/2013

mário cesariny - é importante foder




mário cesariny




É IMPORTANTE FODER

É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d’ir urinar.

Isso eu o quis dizer naquele verso louco que tenho ao pé:
“O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é
”Verso que, como sempre, terá ficado por perceber (por mim até).

Também aquela do “outrora-agora” e do “ah poder ser tu sendo eu
” foi um bom trabalho.
Para continuar tudo co’a cara de caralho
Que todos já tinham e vão continuar a ter
Antes durante e depois de morrer.

Mário Cesariny



in “o virgem negra” assírio & alvim (1996)



07/11/2013

dissertação sobre os loucos moinhos de vento de dom quixote - 4 de 4




autor desconhecido 




no corpo. em local desconhecido. um minúsculo grupo de átomos ligados por  palavras fundem-se: nasce o texto – as trompetes rompem o silêncio e anunciam a nova obra do cavalheiro-artista. alegria – no céu. as nuvens desistem de profetizar tempestade e o céu dá agora lugar a um novo astro-anunciador. este. indica o caminho aos amantes da leitura para as novas do homem que escreve – a comprovação. em papel. é feita de vocábulos organizados pelo talento dos olhos que ouvem no silêncio – no corpo. a gente silenciosa parte para o descanso. recolhe à mudez das catacumbas do homem que guarda o cavalheiro. harmonia – é a hora do leitor apaixonado. é a hora da calmaria. é a hora da serenidade – tudo escrito à mão numa paixão abençoada pelo ouvir dos olhos  – “tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo” [carlos drummond de andrade]. sinto – o momento é de paz – o cavalheiro feliz. digo. quase feliz. se não houvesse aquela dúvida persistente. talvez hoje fosse o dia certo para morrer acorrentado a uma palavra de gratidão – mas há – a dúvida perdura. sufoca o mundo das pessoas que guarda sem nome. das gaivotas. dos frutos. da sorte. dos animais. das árvores. da chuva. da criança protegida no colo da sua mãe. da bicicleta que nunca existiu. do vento norte. dos pesadelos das noites do nada. do corpo a pedir morte por um distúrbio mental – paranoico. vive num delírio permanente na procura da palavra que nunca existiu. mito – o cavalheiro que escreve vive doente na recapitulação de um texto que nunca está pronto. louco – lê. volta a ler. a calma a doer. e já vai em cem dias. e o coração a segredar pânico para um abismo de silêncio sepulcral – não! acabou. não leio mais. a perfeição é a morada dos deuses. só conheço a casa onde guardo o corpo. agonia – solidão. sofrimento. suicídio – chegou o momento. coragem. um dia tinha que ser. o cavalheiro resistirá. o homem resistirá. sobreviver é também escrever – o homem que escreve ali. relembro. os olhos também. o sentimento. o mesmo de sempre. de dentro. medo – tantos corpos parados a murmurar cada vez mais baixinho. e as noites que nunca foram noites em memória-dor. teimavam iluminar um caminho que nunca encontrei – louco. acreditei no silêncio das noites. e o corpo cada vez mais doente por não saber distinguir a loucura da ambição genuína. resignação – tudo parte. tudo na vida é assim. tudo tem um principio e um fim. eu também. o cavalheiro também – para trás uma porta aberta indica desespero: perder para sempre as palavras ouvidas com o olhar – mais medo – agora sou de quem não me conhece – sobra-me o corpo. tudo o resto nu. despido pela leitura – contratava a morte por um dia – mais medo. muito medo. terror. as palavras no leitor podem dizer o que nunca senti. mais terror – não há boa escrita sem consciência. sem angústia. sem gemido. sem arrependimento – amanhã sei que escreveria tudo diferente – morte e ressurreição – para o leitor a descoberta de novas vidas. ou talvez não. talvez assim assim. não importa. nunca haverá certezas para olhos que não ouvem – no cavalheiro. finalmente um momento silencioso anuncia descanso. acredita na mensagem das palavras. paz – o belo não tem pressa. aparece a cada leitura e descansa num marcador de livro: é ali que a vida parou. mais tarde será noutra página – tudo é agora texto. fundido em verdade ganhou existência terrena. como o verde das montanhas. como o mar batido a vento. como instrumento que trabalha a terra. como árvore de fruto. como flor a nascer e o fruto a aparecer – as palavras dão pão às bocas e a saciam a alma de quem as lê. tudo é real na escrita de quem escreve para falar. o cavalheiro mais não é do que um homem a lutar pela sobrevivência do homem que lhe oferece o corpo para se revelar – para o homem que lê a leitura é apenas a junção das letras de dois homens que se toleram para sobreviver – a boa leitura é invisível. sente-se – no corpo  o sentimento da leitura encurta o tempo e tudo é  como se hoje fosse o primeiro dia do universo – lá está adão. e eva. nus. desta vez sem parra. e o cavalheiro ali a ouvir tudo com os olhos. com  as árvores vergadas ao fruto – assim está o homem que escreve. vergado pelo peso das palavras – há um novo mundo sempre que há um novo texto e também um novo cavalheiro – o homem que escreve prolonga-se na procura da perfeição – a morte não sobrevive à imperfeição – escrever pouco e dizer tudo é delírio – para o cavalheiro o texto já não mais voltará a pertencer-lhe. a alma do homem-escritor perdida para sempre – e o humano que lê gosta e ama. não gosta e não ama – recorda e ama. não gosta e esquece – acredita e sonha. não acredita e o pesadelo acontece – sente verdade e acalenta. experimenta mentira e o gelo aparece – exigente. egoísta. quer sentir as palavras como se fossem suas. uma boca para compensar outra – sou também tu –“ser poeta é ser mais alto é ser maior” – uma vida à procura do belo-supremo e o tudo é quase sempre nada ao dia seguinte – as palavras de ontem estão mortas. o belo é agora arrependimento. a história repete-se. tudo que é palavra está amaldiçoado – tudo se resume a dar vida ao ouvir dos olhos – o escrevedor vive com o nascer das palavras e morre com o sono  


[4 de 4] – fim