konstantin kosmur
com que
então a menina anda metida nas aftas. a vida da treta é dolorosa para quem como
nós gosta de dar à língua a qualquer custo – escutamos então o mundo em
silêncio – mas não te apoquentes. isso passa rápido e logo ficas novamente tagarela
– quando era pequeno dizia que tinha “africas” na boca. talvez venha daí o meu
primeiro abeiramento ao continente africano – adoro áfrica e o seu povo. o “selvagem”.
o “virgem”. o “puro”. o das savanas. das florestas. dos rios com pirogas
cortados a lanças plagiando anzóis – gosto das suas mulheres de seios nus.
sentadas num almofariz de pedra gigante. catam cabeças da criançada parada num
tempo sem números – nesta terra o dia acaba coma as árvores a engolir o céu
como se fossem feijoeiros mágicos devorando
um sol que nunca viu o mar. e os peixes vestem-se de rugidos ferozes.
aterrorizando o escuro. e o silêncio quebrado pela fogueira a dançar rezas de
um feiticeiro amamentado pelo leite de hiena – hoje. quero acreditar num deus
que fez o mundo em setes dias. só hoje – estou a falar de homens bons. sem
pecado. estou a falar de áfrica. do
cheiro à terra queimada. da noite às cinco da tarde. do calor a deslizar pelo
corpo em gotas pegajosa onde os mosquitos se amarram como se fossem aquelas
fitas do antigamente que se penduravam nas portas das casas. dos leões. das
gazelas. rinocerontes e toda a bicharada amiga do tarzan e da jane –
gosto de áfrica. dos homens que usam uma tanga para tapar o que ninguém
quer ver. gosto das velhas com as mamas a cair no umbigo e a rirem da cara de
parvo do caixeiro viajante que lhes quer vender um soutien – lá estou eu a
divagar. queria apenas dizer-vos que uma amiga tinha “africas” na língua – mas
afinal o que são umas quantas “áfricas” na ponta da língua. nada. uma mesquinhez.
umas minúsculas borbulhas excitadas com algum condimento mais apurado.
afrodisíaco na construção excessiva de ditongos orais numa necessidade quase orgásmica para poder atingir o prazer supremo
da comunicação – não basta falar com os olhos. não. não basta. e mesmo que as
mãos pulem dos bolsos e se amarrem em abraços aos corpos que nos pedem socorro
por um beijo que lhe diga: gostamo-nos – nenhum beijo substitui a palavra atirada
de uma língua mesmo com aftas – sou louco. dizem – grave mesmo é se nos aparece
um leão entre os dentes a correr atrás de uma gazela. e uns quantos canibais de
ossos enrolados no cabelo. em gritos de fome a dizer: os restos da carne do
almoço nos dentes é nossa – lá estou eu novamente a vaguear. a fantasiar tipo
peter pan – por falar nisso. hoje comi peixe ao almoço será possível ter um
canibal sentado no dente do siso de cana de pesca a lançar o anzol para a boca
do estômago á procura de uma qualquer lombriga pré-histórica – não sei. talvez
o remédio para estes meus devaneios cerebrais seja mesmo entregar-me a uma casa
de saúde mental para finalmente descansar nas paredes brancas. curar-me penso
eu – quartos brancos. janelas brancas protegidas por grades verdes esperança. paredes
brancas. aparadeira branca. escondida numa mesinha de cabeceira também
branca. chinelos brancos. pijama branco
com o bolso bordado a letras douradas: casa de saúde dos aflitos. fundada em
1790 e inaugurada por sua excelência marquês do pombal. columbófilo. dono de
vários pombais e outras excentricidades com aves de rapina – tudo branco. e um
homem preso a um colete de forças negro feito por escravos embarcados na nau
catrineta – e lá vem a nau catrineta anónima a navegar nas paredes do meu hospício.
em ângulos de noventa graus. como se o mundo ainda tivesse um bom fim num dos
cantos da minha imaginação – mas não. para a cada ângulo de visão uma recta com
fim noutro ângulo – vejo tudo em ângulos que não sei dar nome. são ângulos
meus. onde nas dobras faço acontecer sonhos estúpidos em histórias de coragem
duvidosa. protegidas por roupagem branca lavada com omo – com omo toda a roupa
e imaginação fica mais branca do que o branco – dentro destas casas brancas
nenhum homem é culpado de nada. somos mesmo brancos dentro de olhos pretos – não
sei onde estou. perdi-me. sei que estou a escrever uma missiva resposta a umas
quantas “africas” no ponta da língua – quem me dera ter na ponta da língua
agora umas respostas para todas as dúvidas brancas com que me embrulharam à
nascença – talvez seja doença. talvez os diabetes em formação de ataque.
excesso de doce. e as espadas empunhadas em gritos aflitos avisam o cérebro que
está para breve o fim da lucidez e finalmente o triunfo do eterno sobre a vida terrena – no céu os anjos são brancos.
tão brancos que até se confundem com as nuvens e todos os homens são
transparentes. e os poemas a rimar com palavras que nunca foram usadas por
poetas de olhos encovados de dor na procura das palavras certas. é preciso
sobreviver para além do cabo da boa esperança. o fim do mundo – e as andorinhas
brancas fazem ninhos de algodão nas mãos dos que querem escrever e não sabem.
talvez um dia nasça uma capaz de voar para lá do que os homens sabem – não
quero mais ter a cabeça no inferno. quero ir para o céu. para as nuvens que não
vejo desde aquele dia em que me empurraram para o mundo cerebral – não quero
cérebro. um homem sem cérebro não tem maldade e quando não há maldade não há
lombrigas e sem lombrigas não há canibais a pescar e sem canibais não há leões.
nem gazelas e muito menos carne no meio dos dentes e sem dentes não há
mordeduras e as marcas não são nódoas. são beijos loucos nascidos para amar – eu gosto de amar. amo
tudo. até o candeeiro da minha rua que fundiu por viver ao abandono de gente
como eu – um dia pego num escadote e mudo-lhe a lâmpada. e depois talvez me
enforque num filamento iluminado de esperança – e agora vou fazer o jantar.
cabrito assado no forno com batata a murro. não gosto de cabrito. mas apetece-me
dar uns murros – o mundo é cego e eu vivo dentro dele
Não basta
abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Alberto
Caeiro
Sem comentários:
Enviar um comentário