.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/03/2016

ego





foto - sampaio rego
 
 

perdi a sombra
 
e agora?
estarei só?
ou apenas perdi a luz?
na busca da alegoria
voltarei a viver em caverna

se a sombra voltar.
então…
serei outra vez eu.
alma racional.
onde os olhos
a preto e branco
nunca serão
privados da verdade



22/03/2016

vocábulos dubitativos




foto - sampaio rego
 
 

 
sempre que rabisco
crio retábulos
esculpidos em arte nobre do dizer

aos que contabescem
deixo uma diaporese

[nasce o silêncio em formato de
interrogação]

onde acaba o homem
e morre o escritor

 

 

21/03/2016

o poeta




foto - sampaio rego
 
  

o poeta é um ser estranho – encavalita-se no sujeito poético para dizer que não disse o que disse – a culpa. sentimento de mal-estar humano. faz balançar a escrita do seu criador entre a verdade. a meia verdade e catapulta fingida  – o arremesso da alma ao leitor é o desafio – e o sujeito oculto dissimulado em gargalhada fina – pobre poeta. inimputável  para o mal. venerado para o bem – um ser estranho é o poeta



18/03/2016

nunca sei o que fazer com este mês




foto - sampaio rego
 

 
março – nunca sei o que fazer com este mês – março é o mês da primavera. dos dias a crescer para o imenso. do entendimento entre a noite e o dia. do vento franzino atado a um papagaio de papel. das crianças enganchadas a raios de sol delicados – março é memória. ternura. esperança e alento – março é verde. é flor. é pólen. é andorinha. é braço tatuado de um amor interminável – no mês de março sou pai. sou filho. sou saudade. sou arrependimento. sou perdão. sou quase nada. sou quase tudo – sou pai orgulhoso e filho saudoso – sem março ignoraria a verdadeira importância da saudade – se não houvesse o mês de março talvez o meu pai não tivesse partido pelo estreito silêncio dos hospitais – mas março chega logo depois do inverno e no inverno os corpos perdem-se no escuro das noites e da mudez – no teu inverno as bocas calaram-se em dor – a tua e a minha – podia ter conversado. podia ter dado as mãos. podia ter colocado o ouvido no teu peito e guardar para sempre o batimento que te levou – podia ter-te ajeitado o cabelo para o melhor lado. fazer um ternura. trocar todas as minhas lágrimas por uma única tua. uma que trouxesse um pouco de mim. uma recordação da tua memória – podia vestir-te a calça bege vincada. o casaco azul marinho de trespasse. juntar-te ao peito um lenço cor do céu. ajoelhar-me e pedir-te perdão por ter sido demasiado jovem ao teu lado – tu sempre gostaste de gente jovem – podia pôr-te novamente de pé. endireitar-te para um mundo onde nunca te vi curvado – mas março é março – e tudo que posso agora fazer é recordar-te no sorriso e na bondade – sei que o céu continua em festa – meu pai – o mês de março nunca me irá compreender – quando envelhecemos ficamos a saber tantas coisas do nosso pai – hoje é dia do pai – faz hoje dezoito anos que te escondeste para sempre debaixo daquela terra maldita – foi a tua última viagem num silêncio que não para de magoar – era dia do pai – hoje. ainda é dia do pai



17 de março de 1998




 
 
 

sempre me senti só aos domingos. nunca entendi muito bem a metamorfose do corpo ao sétimo dia – no passado. em minha casa. este dia era dedicado ao senhor

     – hoje já não há senhores em minha casa. o último a bater com a porta foi o meu pai 

não gosto do domingo. mas gosto do silêncio dos domingos. gosto da sensação do não barulho. do não movimento. dos cortinados parados. das cadeiras arrumadas em círculo a apertar de lamentos baixinhos a mesa oval – a mesa era redonda mas como eramos muitos o meu pai mandou fazer um aumento que permitia sentar toda a família à sua volta – a mesa ficava oval mas para mim era redonda. um redondo perfeito

     – desde que o meu pai partiu nunca mais conseguimos tirar o aumento ao centro da mesa  

a mesa oval está cada vez mais imperfeita. deve ser da forma geométrica. excêntrica – sempre achei que a forma oval nasceu porque alguém não sabia fazer redondos – os redondos são perfeitos. o sol é redondo. a terra é redonda. a lua também. os olhos são redondos. tudo que é redondo é perfeito. o redondo não tem princípio nem fim. o meu pai também não – o meu pai era perfeito e a mesa oval só era perfeita com ele à mesa – com o meu pai todas as formas geométricas se transformavam em redondos mais-que-perfeitos

    – o meu pai era um homem redondo. não tinha uma única aresta. a vida deslizava por ele como se o corpo estivesse inclinado para o centro do universo

mas a mesa ali estava. inerte. quase morta. perdida no silêncio de todos os domingos – enfeita-a com vida um napperon de linho bordado à mão pela minha mãe. aformoseada por um centro de mesa em louça fina. também oval com uma tampa com furos para segurar flores que a minha mãe substituiu por plástico. duram para sempre – se pudéssemos fazer o mesmo ás pessoas

 


09/03/2016

vou para o inferno III




foto - sampaio rego



3.

não sei – não sei muito bem para que um deus haveria de criar esta coisa redonda que gira como giram os carrosséis – não se faz ninguém feliz com coisas que giram sempre para o mesmo lado – se queria ter um povoado feito de gente feliz criava um céu sem girar. nem precisava de ser um grande céu. bastava que fosse igual àquele que me impingiam nos livros da catequese – anjinhos com asas. cascatas de água translúcidas. pombas brancas e um sol que se desfazia num amarelo silêncio que era ao mesmo tempo paz – tudo perfeito – a harmonia exemplar entre a natureza e o homem – diabo. nem vê-lo

– “portanto. submetam-se a deus – resistam ao diabo. e ele fugirá de vocês”

mas não. deus criou uma coisa redonda que gira como os carrosséis. criou este mundo que é tudo para uns e nada para outros – obstinado. sim –  doentio. talvez – cavalos. girafas. zebras. cestos que rodam sem parar. bicicletas. triciclos e outras coisas que servem para dar cor e animação a um mundo que não sabe girar sem ser em torno de si – o homem não sabe viver sem animação – e a voz no microfone a falar para o mundo inteiro. e o mundo surdo pelo cansaço de nada ouvir quando está em diversão – nada. sempre o nada – o mundo foi desde sempre um divertimento – para deus é com toda a certeza

– mais uma volta. uma nova corrida. uma nova viagem – e a vida toda feita a girar

deus concebeu este carrossel e é dele a voz nos altifalantes – diz que está em todo lado – mentiroso – mas vou continuar com o meu lado criativo. adoro este lado. faz-me bem. distorce a realidade sem me distorcer nada por dentro – lá vem o nada ao de cima novamente – certo dia. deus. há muito muito tempo. estava deprimido. depreciado. desfeito em tristezas. mergulhado em pastilhas de suporte de vida – prozac celestial era a terapia contra a infelicidade – o momento não era fácil. o desespero roubava-lhe lucidez – a depressão era um castigo que o atormentava nos seus silêncios eternos – profundamente triste. esgotado numa dor contínua que lhe atrasava os braços nos compromissos etéreos. ao mesmo tempo que a consciência sensível ia perdendo a salubridade – para pôr fim a esta agonia que anunciava uma morte impossível de acontecer. deus não morre. tomou a seguinte decisão: fazer a terra – é o que eu congemino neste pequeníssimo cérebro – ninguém com o perfeito juízo fazia uma terra com gente como eu – deus não estava bem – falo por mim que sou um pateta e tudo o que penso não serve para nada – mais uma vez o nada

– os meus pais. distraídos. compraram-me um bilhete – naquele tempo os métodos anti concecionais não eram fiáveis – era o tempo do termómetro

apanhei a última cegonha com destino á minha rua – nunca me senti indesejado. bem pelo contrário. foi a vontade de deus como diz a minha mãe – eram tempos difíceis para as cegonhas e para as famílias – muitas lágrimas aportaram os olhos da minha mãe

– e agora como vai ser para criar este menino. como vai ser meu deus. tu sabes que já não sou nova – era assim a apoquentação da minha mãe

duvido que deus soubesse de alguma coisa. mas se algo lhe tivesse assobiado aos ouvidos. tenho a firme convicção que não lhe passava pela cabeça o tamanho da encomenda que lhe chegava em  aborrecimentos – e lá vou eu no carrossel. num cesto que gira sem destino – gira para esquerda e para a direita e nenhuma mão capaz de  dar rumo ao cesto – nem a mão de deus – enquanto as zebras e os cavalos nobres. num galope celestial. certo. com direção. com altivez. elegância. de olhos postos no destino. percorrem tempo num acerto que nunca fui capaz de reproduzir – e o cesto a rodar sem parar e eu perdido em voltas sem saber – “deus ao menino e ao borracho põe a mão por baixo” – nunca fui menino. nunca fui borracho. cresci no dia em que nasci. cresci para fora do corpo e nunca fui capaz de segurar o olhos dentro do tempo certo – há um tempo certo para se fazer o que está certo

 
– nasci preso às asas de uma gaivota rumo a um vento que nunca me entendeu 

 
os carrosséis não giram da mesma forma para todos – o ar dos cavaleiros também conta para dar brio ao carrossel – eu lá vou todo desengonçado a girar para um lado e para o outro. sem saber se vou para norte. ou para sul – que importa se o banco só gira para os lados – os lados não tem norte ou sul – enquanto giro. os altifalantes gritam alegria. só as zebras e os cavalos se mantém  aprumados com o rumo do carrossel. tudo o resto vai para onde calha – vai para cima e para baixo. para um lado ou para o outro este cesto alucinado – ir sem rumo também é destino – tudo roda sobre mim – quem roda unicamente sobre si nunca saberá encontrar o verdadeiro caminho que lhe falta percorrer – o deus que me impingiram em criança não fazia isto. deus não é injusto. não é xenófobo e a minha rua é igual a tantas outras – ele tem obrigação de saber que não fui eu que escolhi aquela  cegonha tresloucada e muito menos escolhi o deus a quem rezar – no primeiro dia deus criou o dia e a noite e os carrosséis
 
 
– “e lá procurarão o senhor. o seu deus. e o acharão. se o procurarem de todo o seu coração e de toda a sua alma”
 
 
se te procurei foi por ordem da minha mãe. e também foi por sua ordem que frequentei a tua casa. apesar de nunca te ter visto por lá – fiz o que me mandaram e se te aborreci foi sem querer – deus não pode ser assim tão injusto. já não falo por mim que estou habituado desde pequeno ao seu silêncio. mas por aqueles que nunca se cansaram de acreditar nas orações que lhe consagram diariamente – deus não pode continuar a esconder-se no silêncio – deus se existisse não era injusto ou então não está em todo lado como faz acreditar

-- deus está cansado – imagino eu que também já estou cansado do seu cansaço

acredito que deus não é o responsável pela pasta da equidade no céu. tem um capataz a quem delegou todo a justiça terrena – concebo-o sisudo. com um bigode farfalhudo. voz grossa e a face cheia de cicatrizes de escaramuças – o feitor coloca-se à porta do céu e quando chega o pecador é com ele as primeiras falas – olha para o aspeto do pobre infeliz. e sem mais nenhum trato. dá-lhe um pontapé no rabo e diz-lhe sorrindo:

-- senta aí. alguém te virá buscar – e psiu! pouco barulho que o senhor teu deus está a descansar

e assim estou. sentado e ainda não entrei no céu – tratado como um verdadeiro nada – espero que alguém me mande para algum lado. um lado sem lado. um lado que por ser redondo abrace todos os pretensos lados renovando a fé dos indecisos com um novo lado mais justo. o lado que me faça aceitar o dever de gratidão por fazer parte deste mundo – o jogo de deus

– i love this game

apesar de não saber escrever. e esta missiva estar um pouco confusa. sei que um dia deus responderá a todas as minhas dúvidas – contrapondo: “abençoado são os teus olhos. porque veem; e os teus ouvidos. porque ouvem. pois. mesmo sem tê-lo visto. tu o amas; e ainda que não estejas podendo contemplar seu corpo neste momento. ”crês em sua pessoa e exultas com indescritível e glorioso júbilo” – qualquer idade necessita de ter um deus de verdade – na minha idade só preciso de um deus para me retirar para a barca – tenho que levar a moeda certa na boca – preciso de acreditar num ser superior – preciso de um deus – preciso que os meus filhos possam continuar a crescer como homens de bem e que sejam capazes de o encontrar onde eu não consegui – preciso que sejam sempre fortes e corajosos em seu caráter. afáveis com as demais pessoas. bondosos. amantes da paz – preciso que valorizem o trabalho. a justiça. a nobreza das ações acreditando sempre que um dia serão capazes de ouvir da sua boca que valeu a pena acreditar num deus que já foi o meu – preciso de um deus para lhe entregar as minhas preces. os meus medos. os meus receios – preciso de um deus para lhe pedir proteção divina para os meus filhos. para a minha maria joão – só assim poderei partir para a minha última viagem – preciso de um deus que me deixe comtemplar pela última vez o que mais amo neste mundo e seguidamente reencontrar definitivamente o meu verdadeiro pai – o meu pai terreno – tenho tantas saudades dele e quero tanto abraçá-lo – para sempre – preciso de um deus para sair definitivamente deste corpo. apanhar a cegonha de volta ao nada acreditando que deus tomará o meu lugar na proteção dos meus – preciso de um deus para todos aqueles que estimo e amo – para mim já é tarde. apesar de toda a minha vida ter feito quase tudo para lhe agradar – para mim basta que me receba pessoalmente na porta de onde quer que viva e me diga: foste um palerma. um tolo. se nunca te apareci foi por tua culpa – és um ingrato – mas sossega que não sou rancoroso e os teus filhos. ao contrário de ti. saberão escolher a estrada certa – mas descansa. podes estar tranquilo. estou de olho neles e tudo farei para lhes mostrar o caminho da luz – sei que só partindo em paz comigo serei capaz de me sentar á direita de deus e do meu pai

– e disse-lhe jesus: em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso

aqui estou eu meu deus. novamente. como quando te visitava na catequese. completamente livre de preconceito. quase ingénuo – desta vez para te dizer que o que aprendi na tua casa não me serviu de grande coisa. a não ser. o fato de me teres dado um padrão moral capaz de decidir com objetividade o que está certo ou errado – coisa de pouca monta neste novo tempo das tecnologias que andam num ar invisível – os  ensinamentos da moral deixaram de ter exclusividade nos homens de deus – mas adiante. se efetivamente existires. e se me vieres realmente receber á porta da tua casa. lembra-te de que os meus filhos existem porque um dia eu acreditei verdadeiramente em ti. na virtude da alma. da família. no amor verdadeiro. no certo a vencer o errado. no bem a se sobrepor ao mal. e na luz a iluminar as trevas – por mais insignificante e minúscula que encontres a minha alma recorda que ela é ainda preenchida pelo que sobra das tuas palavras – um homem de bem nesta idade necessita de acreditar num deus de bem – num deus que seja capaz de dar alento a quem vive a meu lado á mais de trinta anos – uma cama partilhada jamais aceita o silêncio das ausências eternas – que seja também capaz de me guardar os filhos até ao dia que eles encontrem a mesma saudade que hoje tenho pelo meu pai – hoje vou rezar um pai nosso – um homem na minha idade precisa de rezar mesmo que não acredite em nada

– pai nosso que estais no céu

um homem da minha idade só precisa de um deus para poder morrer em paz – eu sempre quis morrer em paz. na companhia dos meus filhos e da minha amada

.
.
.







07/03/2016

transumância




foto - sampaio rego




deslacei
que a inteireza é feita de inverdades
o amor contracena com o desamor


e até o afecto
fenecido
lamenta o tempo


é a hora da transumância humana
sobejam ainda:
alguns frutos selvagens da primavera