michael burris johnson
nota de autor:
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“desapareci” por
uns tempos do ciberespaço para escrever este “pequeno-tratado-pessoal”. são cerca de vinte e quatro páginas. que tem por objetivo explicar o [meu]
ato de comunicação. a escrita que
produzo como emissor. como eu-artista
ou [também] como eu-lírico. confesso
que com mais raridade – do outro lado. em anonimato quase sempre absoluto. o recetor-leitor. o recetor-amigo mais ou menos próximo. mais ou menos silencioso.
crítico. ponderado. com capacidade de reflexão e
principalmente. com sensibilidade
para me ler as pausas. a pontuação e
as entrelinhas – um desafio para quem gosta de ler e um risco para quem gosta
de escrever – sei que em cada palavra escrita serei menos meu e mais de quem me
lê – toda [quase] a minha escrita é autobiográfica – como diz alberto manguel: “O autor morre quando põe o ponto
final. O leitor nasce a seguir” – nem sempre é fácil escrever o que trazemos no
miolo da alma. a dificuldade
torna-se desespero e o apelo interior para fugir é ensurdecedor – escrever dá
trabalho pra caraças – mas há coisas dentro de mim que nunca se tornará palavra. coisas que só o coração sente e que
por mais esforço e entrega nunca chegará ao leitor – não sou suficiente mestre –
em boa contramão. a bondade que
encontramos diariamente no leitor-amigo e também no leitor-anónimo que. graciosamente. se entrega a decifrar uma mensagem que. na maior parte das vezes.
não passa de desabafo – para estes leitores-companheiros o meu mais profundo
agradecimento – e termino com um pensamento do saramago que de certo maneira resume
em muito a minha motivação para escrever - “No fundo, todos temos necessidade de dizer quem somos e o que é que estamos
a fazer e a necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas feitas pode ser uma
forma de eternidade”
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introdução:
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“Não
vale a pena ter vaidades no processo, porque o que existe de facto é o leitor”
– josé ilídio torres
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foi com
esta frase do meu amigo josé torres.
poeta. professor. treinador no
futebol de formação. político. pai. companheiro e fazedor de sonhos enquanto escritor que dei início
a mais esta minha crônica-lírica-dissertativa – conheço o josé torres vai para
caminho de quinze anos [não sei ao certo e não sou bom nas contas de tempo]. nunca imaginei que o tempo fugisse
tão depressa. é tudo tão rápido. tudo tão estupidamente acelerado. desconcertante e ilusório. de repente já não sou novo. já não escrevo sem cadeira almofadada. sem óculos. sem uma pomadinha nas costas para combater os bicos de papagaio e
principalmente. sem aquela resmunguice
de quem envelhece contrariado – o problema nem está na idade. está na memória. nas recordações da juventude.
na infinita alegria de ser jovem e irresponsável. nas correrias sem cansaço.
na esperança inesgotável com que olhava as mãos. na mobilidade do cérebro.
sem medo. selvagem. irrequieto. sempre à procura do impossível. do difícil. do
perigoso. enquanto a adrenalina
produzia sonhos e sorrisos em série.
tudo em escala XXL – os dias eram intermináveis. acordava com os braços a tocar os polos. a envolver o mundo de peito aberto que me prometia em surdina vida
eterna – a fragrância da juventude
eram duas gotas de patchouli misturadas
com a certeza de que o mundo sempre nos haveria de arranjar um cantinho para
viver. muita loucura. excentricidade. irreverência. cabelos
compridos. bota bicuda de salto alto. blusão de ganga lois e o corpo a
gingar ao som da guitarra de david gilmour que afogueava o tino para as
primeiras pastilhas lipoperdur – viver era uma dor fantástica – mas não há
volta a dar. nada volta ao passado –
fico sem saber ao certo se o que dói hoje é um problema que parte do geral para
o particular. do corpo para a alma
ou pelo contrário. a dor nasce na
alma e alastra-se ao corpo no seu todo – bem… não adianta lamuriar.
o único remédio que conheço para combater o tempo é escrever. escrever muito. se possível bem. mas
se não for possível. então… que se escreva mal. porque
enquanto se escreve não há idade – no meu caso o assunto é ainda mais sério. nasci sem uma única palavra dentro de
mim. disléxico e completamente desprovido
de qualquer tipo de acordo ortográfico.
tudo o que rabisco é feito com trabalho.
à sacholada. ao suor e à teimosia – ultimamente
só a escrita me faz verdadeiramente feliz – isto tudo para dizer que conheci o
josé torres no luso poemas. um site para gente que gosta de escrever. e por mais que envelheça e que a
memória se torne decrépita a entrada nesse grupo de poetas foi um momento marcante
na minha vida: o luso e os seus
membros trouxeram-me definitivamente para o mundo da escrita. fizeram-me bem. fizeram-me sonhar.
fizeram renascer essa dor fantástica que é escrever – vou escrever pela
primeira vez algo que nunca tive coragem:
o luso amarrou-me à vida. deu-me uma
nova oportunidade para me reinventar como homem. salvou-me de uma ociosidade inútil e profetizou a imortalidade. deu-me uma nova ordem no tempo. repensou prioridades e renovou-me a
confiança nas mãos – todos os dias digo para mim: não quero morrer sem deixar uma última palavra escrita – sou um
homem grato a essa boa gente do luso poemas – o zé torres era e é um fazedor de
sonhos desse mundo da escrita.
pertencia a um grupo restrito de escritores que estavam muito acima da média
dos restantes companheiros – gozo-lhe a paciência e pachorra. não era fácil aturar a mediocridade
de tanto ego balofo numa casa enfestada de poucos poetas e muitos não poetas – hoje. sem nenhuma dúvida. estaria muito melhor preparado para
ler alguns dos seus textos corrosivos e mal amados – para se escrever é fundamental
amar as palavras. sem vaidade. com humildade. com vontade de aprender e sacrifício – bem sei que não há
escritores perfeitos. nunca haverá. mas há aqueles que brigam todos os
dias com a imperfeição – aprendi muito desde esse primeiro dia em que ganhei
coragem de escrever para o leitor – é pelo leitor que releio os meus textos vezes
sem conta antes de os levar para o ciberespaço. é por ele que fico nervoso.
fico feito de medo. fico com as mãos
trémulas e em oração – bem sei que quem dá tudo o que tem a mais não é obrigado
– que vos posso dizer mais… não sei. talvez repetir o que não me canso de
dizer: escrever dá trabalho pra
caraças – o que sei mesmo é que uma folha de papel para se imortalizar só
precisa de uma palavra escrita – mas eu escrevo apenas para falar com o leitor
– e basta-me um para me fazer feliz
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e
aqui estou eu novamente… escrevo. escrevo o que sei e posso e também o
que me dá na real gana – confesso que estou aterrorizado com as palavras. dito melhor. com a sua falta:
desapareceram de mim. abandonaram-me. desprezaram-me. ostracizaram-me e nem uma ficou para me iludir – estou
completamente só. de mim também – não
é fácil escrever quando estamos sozinhos.
ausentes do corpo e da humanidade – dito de forma direta e objetiva. ausente de mim num todo: do mundo. dos amigos. dos menos
amigos. da memória. das mãos. dos ossos. da carne. da realidade e do discernimento para
saber diferenciar a palavra criativa.
próspera. cativadora e amiga. da palavra tosca. que chega
ao papel aos repelões. raivosa. inútil e em desabafo hostil – mas é assim. há coisas que não controlo.
bem que gostaria de controlar. mas
não dá. quando partimos do corpo
deixamos tudo para trás. até o
critério e um homem sem critério [de textualidade] não escreve. gatafunha – para se escrever é
necessário ter um propósito sério para a mensagem: coerente. ponderada. mas também perturbadora na objetividade.
reflexiva. questionável e controversa. com um pensamento maduro sem nunca
deixar de ser irreverente – depois. é preciso escrever como quem conversa
num grupo de amigos: com calor. com paixão. com magia. com
envolvimento. capaz de arrancar o leitor-amigo para dentro de
si. sentá-lo no seu interior com vista para tudo que é seu e convidá-lo a sair do seu mundo
individual e dizer-lhe que apesar do seu papel passivo é ele. com a sua interpretação. que termina todas as histórias – nenhum
escritor sobrevive sem que pelo menos tenha um leitor – o leitor é o centro do
universo e todas as histórias giram à sua volta – o josé torres tem razão. “Não vale a pena ter vaidades no
processo, porque o que existe de facto é o leitor” – é a este que compete
promover uma leitura atenta e depurada.
uma decantação. separando a palavra
útil da inútil. a precisa da
imprecisa. a ficcionada da real e a
que abraça daquela que diz: basta. esta é a linha que separa os nossos
mundos. daqui para a frente somos
diferentes. acabou a tua história – só
a leitura une o autor ao leitor para sempre – um escritor tem que se sentir
possuído. tomado. ocupado por um leitor provocador. desafiante.
irreverente e exigente pois só assim será capaz de evoluir e partir à conquista
de novos leitores com novas histórias – um escritor não é um ser especial. pelo contrário. é um carregador de palavras.
um carrejão incansável que transporta no seu ADN o compromisso evolutivo e
incessante do homem – a imperfeição
é o primeiro reconhecimento para o progresso e o escritor-artista sabe isso
melhor de que ninguém. por isso não
se cansa de questionar o que escreve – o escritor quando não escreve é infeliz. então. parte à procura da felicidade e começa a escrever e rapidamente
se apercebe de um paradoxo: se não
escreve é infeliz. quando escreve é
infeliz – será que não se pode ser feliz quando satisfazemos unicamente o nosso
desejo de escrever? não. tal como o azeite e a água não se
misturam também o escritor e a felicidade são incompatíveis – o homem que escreve é um sofredor na
procura constante da perfeição – ninguém
como ele se entrega à critica.
tantas vezes cruel. injusta e
selvagem – aceitar o erro. as imperfeições
e as suas limitações é o seu grande desafio – ele sabe como mais ninguém que escrever
é também uma arte de sacrifício e de superação – o escritor procura sempre o
perfeccionismo porque sabe que cada palavra escrita leva um pedaço de si e da
sua vida – assimilar. armazenar. amassar. dar forma e levar para o papel a sua realidade –
é esta a missão de quem gosta de escrever – um escritor é um interposto de
vários ADN que. quando compilado cuidadosamente
com arte. sacrifício e devoção. se transforma numa mensagem capaz de transportar
no seu espírito força suficiente para mover e transformar toda a matéria do
mundo [eneida. de vergílio] – mas atenção.
que ninguém se iluda. toda a
mensagem é efémera e volátil; por
mais empírica. por mais precisa e verdadeira só se manterá inquestionável enquanto permanecer
silenciada e oculta no interior do seu criador. depois da criação artística.
depois de entregue à leitura será o
que cada leitor quiser que seja – a minha
verdade não existe fora do meu corpo – cada leitor construirá a sua verdade – mas
sou o que sou neste momento que escrevo.
e sei que todos os botões de comando sobre mim avariaram. não é apenas falta de pilhas.
não. desta vez é avaria mesmo. entrei em combustão depois de um pico
de tensão – estou a arder de medo e de pânico. o odor a palavra carbonizada é nauseante. enjoativa e a eloquência fumega em direção ao eterno – tenho que me
aguentar com coragem. sei que não há
mal que sempre dure. nem bem que
nunca acabe – estou moribundo.
amarrado à palavra por um fio. em
términus da esperança. a lutar. a pedir a deus que me devolva a
alegria de escrever. que me devolva
o dom da escrita. que me devolva a
esperança – estou “in extremis”.
diria até que a palavra. esperança. é o meu suporte avançado de vida: enquanto houver vida. há esperança – acionei a reserva
motivacional para situações de catástrofe.
tenho que me aguentar. estou em modo
insignificante. paralisado. vazio. desabitado de palavras bem-falantes. modestas ou motivacionais.
estou um farrapo – escrever exige vontade.
tempo. solidão. silêncio e eu estou sem vontade. sem tempo. confuso e
com o corpo cheio de barulho – pela milésima vez procuro dentro de mim o que
raramente consegui encontrar: magia
para escrever – quando não há magia não se escreve… sobrevive-se no passado – com a escrita reescrevo-me. aguento-me de pé. amparo a mediocridade e no imaginário o ombro amigo. protetor. fiel. afetuoso. zelador. a dizer numa cautela carinhosa: tem calma. isto passa. um dia. sem dares conta. estás
com dez páginas escritas – aguento serenamente… nem uma palavra ressabiada me chega à boca – sinto-me às portas do inferno. só a escrita me guarda de uma loucura prematura. mantêm-me vivo e em esperança – mesmo
quando não escrevo fico exposto ao escrutínio dos leitores. o passado de quem escreve é sempre feito de palavras e estas não morrem nunca – enquanto
houver um leitor serão eternas. são
para sempre. vivem como se tivessem chegado
ao papel neste momento e o cutelo de quem lê no ar num cai. não cai. afiado e sedento de dor. a reprovar pelo abanar da cabeça. a magoar pela vacilação. mata ou não mata – para sobreviver
escrevo porque sempre que escrevo invento uma vida. uma atrás de outra.
tantas como folhas de papel – não é fácil escolher escrever quando o
subconsciente nos diz com todas as letras:
vai pentear macacos. dedica-te à
pesca – caio em frustração e desapareço do word. escondo-me no silêncio e interrogo-me em mil e uma coisa que não
sei responder – se tinha dúvidas antes de me esconder agora tenho o dobro. escondido não sou de ninguém a não
ser de mim. sozinho falo apenas para
mim e ouço-me como se cada palavra representasse uma multidão em berros e em
uníssono ouve-se: vai-te embora. rua. rua. já não há
pachorra – sentado nesta cadeira que não me deixa por os pés no chão olho para
a imensidão do mundo que tenho à minha frente e interrogo-me: vale a pena continuar? será
perseverança ou teimosia? tenho tanto livros no meu pé-de-meia de leitura. tanto nome bonito. gente que dedicou a vida toda à escrita. ao estudo. à procura
do mais certo para dizer o incerto e eu aqui. como se o meu computador fosse uma arma de destruição maciça. a impingir gato por lebre – valha-me
deus nosso senhor – se achava a escrita medíocre. até como amador.
quando a releio pergunto-me como fui capaz de rabiscar aquelas barbaridades –
diz-me por favor meu senhor como fui capaz de escrever estas maluquices? não
acredito. estarei no meu tino? não
fumo. não me drogo. não bebo e não tomos pastilhas a não
ser para umas maleitas passageiras – será então o quê? algum encosto? alguma
alma penada? um antepassado que não encontra o caminho da luz e se diverte a
fazer-me escrever tontarias? não sei.
talvez o defeito seja mesmo meu.
nunca deveria ter metido na cabeça esta coisa das letras. tanto jogo para jogar na internet. tanta mulher nua.
cavalos e anões e logo haveria de encalhar no raio da escrita – não podes ser
para o que não nasceste – mas com a escrita há um sentimento que me arranca as
vísceras: a de que poderia ter feito
melhor – leio um texto e lá vem o sentimento: podias fazer melhor – leio outro e novamente aquela erupção da
pele: podias fazer melhor – a
questão é só uma. poderia ou não
fazer melhor? confesso que não sei – sei que dentro de mim existe a vontade. mas falta-me a magia no interior das
palavras – as palavras precisam de ter no seu interior um pouco de poção mágica
e quando não tem os textos não brilham no escuro – o pior é que não me conformo
com o que não tenho; e não tenho verbos
no futuro. nem arranha-céus. nem pastilhas para as dores de cabeça
ou máquinas de escrever com teclas mágicas – escrever é simplesmente existir. é não me repetir. é baralhar o tempo e inventar-me todos os dias no futuro – quando
não escrevo repito-me
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quando não
escrevo repito-me. torno-me
insuportável. maltrato-me. fujo dos espelhos que nem vampiro. escondo-me atrás de uma folha de
papel e juro que a culpa não é minha.
a culpa é do divino. é de toda a
gente. é da casa. da janela que está meia fechada e deveria estar meia aberta. é do tempo. é da porta entreaberta.
das alterações climáticas e do o el-niño que me sacode as folhas e me deixa em
desespero – quando não escrevo os olhos desalinham-se. as mãos esganam-se uma à outra e o corpo grita socorro para
dentro porque por fora o mundo está surdo – ninguém quer saber de quem escreve –
estou triste. estou em desordem
emocional. estou com a língua
descolorida e os lábios desidratados escondem uma boca a saber a papel. o mesmo ranho no nariz. a mesma confusão nos canais lacrimais: chora. não chora e o corpo numa pilha de nervos desafia tudo que se lhe
atravessa – a escrivaninha desfeita em desordem segura no tampo o zumbido-assobio de um computador podre. geme de manhã à noite. está no fim. dizem que se formatar fica para mais um tempinho – para quê se não tenho palavras? está tudo um caco. tudo preso por arames.
eu também e não me posso formatar. a
idade já não permite. há um limite
no tempo para recomeçar tudo de novo.
passei esse limite hà muito – já me avisaram que o melhor é não mexer muito. deixar-me andar até aguentar – agora
tudo me amedronta. não sei que é
feito das palavras. não sei se foram
de vez ou se voltam com mais exigências – um dia fico sozinho – estou como o
burro no meio da ponte. nem sei se
espere ou desapareça para dentro de um livro – estremeço. alucino. a cabeça
imagina a morte. os pulmões
rasgam-se. os braços deitam-se ao
passado e remexem no que está escrito – reler alivia a pressão – e o desassossego
poderosamente instalado em tudo que sou – bamboleio. caio. não caio. desisto. não desisto. sinto-me
aflito. agoniado. não sei o que fazer.
estou perdido. sozinho. até de mim e o desespero rodeia-me com
engenho: acicata o desalento. a coragem e a confiança – endoideço e
tudo que é louco está fora da racionalidade.
do equilíbrio. da tolerância. da esperança – um louco distorce tudo
que há dentro de si. perde o uso da
razão. desmorona-se em mil dúvidas e interrogações – a
escrita é a minha alegria – bem sei
que posso sempre falar. santo
antónio falava aos peixes e não era louco.
mas a oratória é sempre tão volátil.
tão passageira e imprecisa e eu nasci sem saber falar. engasgo-me. a cabeça
começa a trabalhar a mil e as palavras enrodilham-se no céu da boca. fico vermelho. desatinado e morro de vergonha – será tudo obra do divino para me
obrigar a escrever? – bem. confesso
que não sei e também não sei o que
fazer para inverter este apagão comunicacional – apesar de estar agitado
e impaciente esperar é a única solução –
quem espera sempre alcança – confesso que estou preocupado. estou nos limites da tolerância – arfo. interrogo-me se
terei caído num abismo sem misericórdia.
sem bondade. sem retorno – que
destino está reservado para mim? não sei – penso. quem pensa existe – não
posso desistir. já desisti de tanta
coisa. já não tenho idade para
desistir de mais nada – a cabeça pensa com terror. procuro-me. rodeio-me
com o que me resta de ambição. teimo. mexo-me de um lado para o outro. os pensamentos também e as mãos revoltadas
perseguem-nos. é agora ou nunca. um pelo menos tenho que agarrar. tem que cair de cansaço. um pelo menos tem que chegar ao papel. um. não é preciso mais.
basta um para me despertar desta nostalgia enfadonha. basta um para que as
palavras me subam pela coluna vertebral e ejacule. basta um e fecundo o papel de tudo o que sou. basta um – basta um para me eternizar no tempo – o meu
estado de alma está baralhado.
confuso. perdido e sem rumo. nada em mim é firmeza. coragem. liderança. estou para
aqui – e agora. quem toma as rédeas
do corpo? quem diz se sento ou não sento.
se deito ou não deito. se parto a
jarra ou não parto. se mando tudo
para o caralho ou não mando… quem?... não sei. não sei mesmo. sinto o
cérebro dividido por um muro de betão.
de um lado o que sou. do outro. o que quero ser – do lado esquerdo. a norte do hipotálamo. uma criança aziumada gargalha
enquanto se rebola nos neurónios esfrangalhados por um texto diabólico da
clarice. um texto destes pode matar
qualquer leitor – do lado direito. a
sul do mesmo hipotálamo. uma criança
malabarista. com a barba por
desfazer. fala com animais enquanto atira para o ar livros em
branco. repete isto todos os dias. fala com os animais e atira livros em
branco para o ar. e espera. e volta a falar com animais e continua
a atirar livros em branco para o ar.
e espera. e desespera. e a mão de atena sem chegar – os dias
repetem-se e os livros em branco continuam no ar – que raio me aconteceu. estou doentio. estou a perder-me. não
me poso esquecer que nasci em abril.
nasci em revolução. de cravo ao
peito. em palavras de ordem: a escrita a quem a trabalha. o escritor é quem mais ordena – serei
abril até ao meu último suspiro – estou adoidado. olho para o que sobra de mim e vomito. vomito-me pernas a baixo.
estou um esterco mas estou aliviado.
estou pronto para recomeçar o que verdadeiramente nunca acabei – quero mais do
que já tive. quero a mesma ambição. o mesmo cheiro a papel. às letras. às concordâncias. às
combinações do plural e o mesmo
barulho do mundo a correr como se todos me quisessem roubar o que penso – e a
confusão a enlaçar-me o pescoço. esganado
e a palavra da salvação debaixo da língua.
teimosa como nunca. encutinha-se
atrás de um dente que não é do siso e jura resistir até à morte – estou
desabitado de tudo – não sei o que dizer.
juro que não sei. digo que os rios
correm para o infinito do mar.
quantos milhares de poemas fazem os rios correr para o mar. quantos milhares de poemas falam de um amor de bosta. quantos milhares de poemas falam de
porra nenhuma e eu com a mania das grandezas nunca estou bem com porra nenhuma
que escrevo – não sou humilde. não deixo
que a porra de um rio me leve até ao infinito do mar. não me deixo naufragar numa garrafa de rum. não deixo que a moby dick me engula e me regurgite para dentro de
numa história infantil – um dia vou pagar por esta altivez – não é justo viver
assim. não é fácil. eu só quero escrever uma história – quando
escrevo sou criança. quando escrevo sou
uma criança de júlio dinis – só quero ser criança e escrever. mais
nada – tudo isto é o que quero ser.
quase nada. nem sei se algum dia poderia
ser alguma coisa do que não sou – confesso que nem queria ser nada de especial. nunca quis ser grande coisa. com o tempo fui percebendo que o
mundo fabrica coisas que não são para mim – nunca percebi se a culpa dessa
exclusão é minha ou do mundo – mas também não importa. tenho o mais importante.
tenho mulher que adoro. tenho filhos que me adoram e dois cães que me idolatram
e passam o dia a abanar a cauda – gosto de cães. gosto da forma como me olham e me envolvem. gosto da sua lealdade e da tolerância para com todos os meus absurdos
– tenho um cão. quase lavrador. aqui em casa não há raças puras. eu também sou quase escritor. sou quase parvo. sou quase um cavalheiro.
sou quase tudo que gostaria de ser e não sou – que se lixe o quase. mas estava a dizer o seguinte. tenho um cão que se deita ao meu pé
enquanto escrevo. enrola-se em
posição de quem sabe que a noite será longa.
em estado de invernação e contemplação interior. sabe que nada pode interferir entre o barulho de teclar e a
melodia ritmada de johann sebastian bach – ali fica embrenhado em si: olhos fechados como se estivesse
hipnotizado pela fusão de bach com o teclado – invejo-lhe aquele descanso dócil. leve e tão genuinamente bom – sempre
que teclo com mais força abre um olho.
faz o barramento do meu estado de alma.
três segundos em meditação interrogativa…
está tudo bem e volta a entrar para dentro de si – para além de me fazer
companhia creio que a sua missão mais secreta é não permitir que nenhuma
personagem me fuja porta fora – nas revisões dos textos faço questão de ler em
voz alta. olha para mim. fixa os olhos nos meus. atiro-lhe com um sorriso e tento compreender
se está tudo bem – não adianta. não
lhe apanho nada. o brilho nos olhos
ofusca-me os sentidos. fico com a
ideia de que para ele tudo que faço ultrapassa a excelência – ficamos engastalhados
no olhar. fico louco por o abraçar. o silêncio é profundo e interminável
– a sua amizade por mim é incondicional.
somos amigos e os amigos. como diz
elbert hubbard. é aquele que sabe
tudo a meu respeito e. mesmo assim. ainda gosta de mim – por fim volta a enroscar-se em si e eu imito-o
e enrosco-me também em mim – escrever é isto mesmo. enroscarmo-nos em nós e imaginarmos um final feliz para um texto
quase todo infeliz – eu não quero ser nada especial. quero escrever… mas… faltam-me
palavras para explicar a falta que as palavras fazem – quando não escrevo
repito-me
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quando não escrevo repito-me. perco-me em mim. torno-me aborrecido. emudeço e desfaleço. sinto a morte. quer dizer. penso que é a morte mas não posso garantir. nunca estive com a morte – diria que me sinto numa quase-morte. saio do corpo e vagueio. entristeço. turvo. desfoco do essencial e a escuridão toma posso do desejo: primeiro ataca mãos. depois. o corpo começa a resfriar. a temperatura cai e os órgãos mais importantes irritam-se. desorganizam-se e dão o primeiro sinal de que podem colapsar. impaciento-me. não consigo respirar. resfolego. a pele enrubesce. as unhas param de crescer e o corpo começa a apodrecer lentamente. cambaleio. os olhos perdem brilho. a tristeza apanha-me o coração e interrogo-me se realmente é possível morrer por falta de palavras – fico esgotado. cansado e com a tensão arterial completamente descontrolada – não há de ser nada – o que me inquieta mesmo é sentir o odor da morte. a sua vontade de ceifeira e o *“som da bigorna, como um clarim do céu, Vão dizendo em toda a parte: - O escritor [pintor] morreu.” *zeca afonso também conhecia a morte e sabia quando ela saía à rua – eu também sei. só não sei se sai à rua para mim ou para as poucas palavras que ainda carrego – quando estou em quase-falecimento tudo o que identifico é a tristeza – ninguém entende esta minha mágoa. nem tão pouco a sei escrever. ou desenhar. ou transformá-la num poema de rimas cruzadas e cantá-lo como braço armado do desespero – não sei de onde veio nem como me entrou no corpo e muito menos o que fazer para me libertar desta dor que não para de magoar – tocam os sinos da igreja da minha paróquia. o badalo diz que é defunto. não há morte nem funeral sem o toque do sineiro. são os mensageiros das más notícias em terra pequenas – o sineiro de tibães diz que se o badalo do sino deixar um ronco. um rasto. um 'ohhhhhhhh' que não quer parar. é sinal de que morreu ou está para morrer outra pessoa na paróquia – estou em dúvida se o sino roncou. não sei ao certo. parece-me que sim. confesso que estou com medo. não tenho medo da morte. tenho medo de não concluir três ou quatro manuscritos que julgo importantes para os que me são próximos – vou estar atento. vou deixar um ouvido no adro da igreja a tomar conta do sineiro – mas ainda estou vivo. sei-o porque respiro e sei-o porque não há ronco nem ceifeira por perto e tudo farei para que assim continue. não tenho intenção de subir para o cimo do meu espólio literário para me fazer desaparecer do mundo. nunca poria os pés em cima do conde de monte cristo. do dom quixote. do tolstói. do pessoa. dos cem anos de solidão. do camões ou do meu querido júlio dinis. nunca. por eles seria imortal – resistirei até que me chegue a palavra às mãos – toda a palavra que me chega às mãos respira e me faz respirar e quando eu respiro o corpo acredita na vida eterna – sem palavras não sou nada – mas também não quero ser nada para além de falar com o que escrevo. não quero nada que me faça ser o que não quero. nasci para escrever. quero escrever. quero ser… sei o que quero ser. mas também sei o que não posso ser – hoje. só quero que nada me aborreça – e é o que sei – no futuro. num outro dia. talvez queira ser um saca-rolhas para arrancar de mim este desassossegado maldito. ou um garfo luís XV rococó para levar alimento à alma. ou uma toalha de rosto em linho do egipto para enxugar a amargura. um biombo de bambu para me proteger de todos os que me apontam o dedo ou então. uma caixa de fósforos para incinerar todos os meus maus momentos e por fim. já que mais nada me ocorre pelo cérebro. gostava de ser um automóvel de velocidade. descapotável. a galgar quilómetros de indiferença pelo mundo. sem medo do tempo. a deixar para trás o passado e o futuro é o pé no acelerador a rasgar vento generoso – e o corpo centrifugado das impurezas pede mais vento e mais velocidade – e a boca a falar desapaixonada. com calão. a mandar foder o que fica para trás e pela frente tudo que vier por bem será bem vindo – e o carro a roncar por um “bufante” duplo. cromado. a expelir fumo branco e em mim um estrondoso sentimento de habemus uma nova vida – não quero mais esse gajo do passado. não o quero mais a comandar o corpo. a dizer isso não se faz. não é bonito. olha que as pessoas podem não gostar. olha o que vão dizer os correligionários. a confraria não permite. um homem que gosta de escrever não faz isso e blá blá e rebeubéu. pardais ao ninho – quero velocidade. quero que se lixe tudo. não tolero mais imposições ou limitações – cuspo pela janela. com ranço. grito palavrões e curvo em contramão. paro nos verdes e faço obscenidades. caretas e acelero. o carro ronca. os pneus plissam e arranco em alta velocidade em direção a um mundo desconhecido com um sorriso de orelha a orelha – sou livre – no retrovisor. os olhos expulsos do passado fazem-me existir para uma nova vida – agora sei que existo porque estou no retrovisor – olho para o retrovisor. olho para mim. volto a olhar para a frente. afunila-se a estrada. acelero ainda mais e olho para um mundo que me deseja e dentro de mim a dúvida: se não houvesse retrovisor existiria? volto a olhar para a frente e o futuro a entrar-me no que sou – o que ficou para trás já não tem importância – e eu sentado na velocidade a recolher o que me chega pela frente do carro. eufórico. abro e fecho o tejadilho. carrego em botões. tudo é novo. tudo é presente. tudo é automático. subo e desço o vidro lateral. ligo os quatro piscas. mas não vou com presa. vou com velocidade mas sem presa. ligo o rádio e a RFM anuncia dez músicas seguidas sem publicidade. mudo para a TSF e esta divulga a morte de um casal de gaivotas em lua de mel. um camião desgovernado ultrapassou a faixa de rodagem e apanhou o jovem casal – não estou para tragédias. passo para antena dois. nada como umas batidas de jazz de new orleans para retemperar corpo e alma – estou em mim. ouço-me na música de charlie haden e pat metheny. a última vez que ouvi esta melodia foi no funeral do meu pai. estávamos num dia de março ensoalhado e fresco – corria uma brisa de paz. era dia do pai. meu também. o mundo estava parado. todos os carros estavam parados. não havia velocidade nem curvas em contramão. só as vendedoras de flores corriam. só as flores sorriam. as nuvens quase paradas encobrem a casa dos crentes. o céu desapareceu e eu também desapareci de mim – as andorinhas voam baixinho – há um cheiro no ar a despedida – o coveiro. finge que as últimas exéquias são um ritual de fé. de sentimentos e de convicções. com cara de sofrimento. acaricia a pá das habilidades fúnebres. é ele que faz desaparecer toda a réstia de esperança da ressurreição – o silêncio misturava a família. os amigos. os curiosos e o padre. estávamos todos em sua volta. o meu pai sempre gostou de ter as pessoas em sua volta – o sr. padre pedia a deus para receber em sua casa o meu pai. eu pedia-lhe para não o tirar da minha. o sr. padre falava em fé. eu prometia raiva. o sr. padre falava em vida eterna. eu falava em vidas desfeitas – chegou a hora da água benta e eu ali de pé. estático. gelado como o meu pai. a pedir-lhe perdão e o corpo virado para o céu. branco. sem dores. com as mãos cruzados como se me quisesse dizer que a luta dele tinha acabado – dou-lhe o último beijo. as portadas fecham-se. a fechadura range. chamam por mim e entregam-me a chave da vida – quando caiu a primeira pá de terra tudo desapareceu. e eu desapareci também. um buraco negro engoliu-nos para sempre – nunca recuperei dessa separação – o funeral é o reconhecimento da morte. é o cais de embarque para uma viagem que não tem retorno. é na verdade o último adeus – perdi-me. passaram vinte anos e eu ainda ali estou a ver a terra a cair – o meu pai faz-me muita falta. um dia destes vou-me encontrar com ele. vamos falar. eu sei que adora falar – apago o rádio. não estou para nostalgias e muito menos para viagens ao passado num carro descapotável – adoro velocidade. adoro estes carros modernos que tem mais botões e alertas do que eu imaginação e quando alguma coisa está a correr menos bem. as luzes e as sirenes não dão sossego: se não colocas o cinto de segurança apita. se o óleo desce a luz vermelha acende. mas se a temperatura sobe acende outra luz ainda mais vermelha e se colidirmos com alguma coisa. abre-se um saco cheio de ar que evita batermos com a cabeça na parede – se tivesse um sistema destes na minha juventude tinha evitado muitas cabeçadas. mas não havia – estes carros modernos são o máximo. nem deus fazia melhor. gostava que um dia inventassem um destes balões para quem escreve. tenho a certeza de que evitava muita cabeçada literária – olho-me novamente no retrovisor. sempre que me olho vejo o que chegou do futuro. tudo que vejo já não existe à frente de mim. existe apenas no retrovisor. existe no passado – basta uma milésima de segundo para que tudo se torne pretérito – tiro os olhos da estrada e o futuro já deixou de o ser para ser o passado no retrovisor – gosto destes carros que amarram a vida pelos cornos. fazem-na presente e num coice atiram-na para o passado – gostava de ser assim – e eu num carro de alta velocidade ao comando de um volante que gira como o mundo. com uma buzina ao centro para anunciar a minha chegada da indefinição: quando parar o carro olho para a frente ou para o retrovisor? não sei. sei que buzino para anunciar a minha chegada – agora tudo que tinha para escrever ficou para trás. não me serve para nada – não se pode viajar a alta velocidade se não tiveres ao teu lado papel e caneta para tirar apontamentos – a velocidade é inimiga dos coxos e dos sonhadores e quando damos conta. estamos no fim da corrida e não trouxemos nada connosco. nem uma muda de roupa – tenho saudades da minha bicicleta. dos joelhos esfolados e daquela sensação de que as subidas eram maiores do que as forças e no fim do dia as pernas chegavam sempre onde queríamos – era o topo do meu mundo – não quero saber de carros. nem de bicicleta. nem dos pés que me trouxeram até aqui. se pudesse escolher ia diretamente para dentro de uma caneta. deslizar em tinta. preta por ser a mais parecida com o futuro. com um aparo grosso. roller baal. personalizado com o meu heterónimo. em letra desenhada. às curvas e contra curvas. para dar aquele ar de coisa distinta. capaz de rubricar livros de fãs. ou escrever uma enciclopédia. com capítulos. dividida por letras do abecedário. com capas grossas. próprias para ficarem em estantes de escritórios ou bibliotecas. lugares chiques. lugares de gente que sabe escrever. lugares de outro mundo – mas não sou. nem tinta. nem caneta. nem sombra do que poderia ser e não sou porque o destino é o que é – não gosto de falar de destino – não acredito nesse coisa de nascermos com o destino traçado. falamos do destino como desculpa para toda a palermice que se faz. eu fiz muita – que se lixe o destino. os carros descapotáveis e as velocidades. que se lixe tudo. só não quero que se lixe os leitores. fazem-me muita falta. são eles que me animam e me dizem que ainda é cedo para morrer – ainda quero escrever amanhã – quando não escrevo repito-me
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quando não escrevo repito-me. perco-me em mim. torno-me aborrecido. emudeço e desfaleço. sinto a morte. quer dizer. penso que é a morte mas não posso garantir. nunca estive com a morte – diria que me sinto numa quase-morte. saio do corpo e vagueio. entristeço. turvo. desfoco do essencial e a escuridão toma posso do desejo: primeiro ataca mãos. depois. o corpo começa a resfriar. a temperatura cai e os órgãos mais importantes irritam-se. desorganizam-se e dão o primeiro sinal de que podem colapsar. impaciento-me. não consigo respirar. resfolego. a pele enrubesce. as unhas param de crescer e o corpo começa a apodrecer lentamente. cambaleio. os olhos perdem brilho. a tristeza apanha-me o coração e interrogo-me se realmente é possível morrer por falta de palavras – fico esgotado. cansado e com a tensão arterial completamente descontrolada – não há de ser nada – o que me inquieta mesmo é sentir o odor da morte. a sua vontade de ceifeira e o *“som da bigorna, como um clarim do céu, Vão dizendo em toda a parte: - O escritor [pintor] morreu.” *zeca afonso também conhecia a morte e sabia quando ela saía à rua – eu também sei. só não sei se sai à rua para mim ou para as poucas palavras que ainda carrego – quando estou em quase-falecimento tudo o que identifico é a tristeza – ninguém entende esta minha mágoa. nem tão pouco a sei escrever. ou desenhar. ou transformá-la num poema de rimas cruzadas e cantá-lo como braço armado do desespero – não sei de onde veio nem como me entrou no corpo e muito menos o que fazer para me libertar desta dor que não para de magoar – tocam os sinos da igreja da minha paróquia. o badalo diz que é defunto. não há morte nem funeral sem o toque do sineiro. são os mensageiros das más notícias em terra pequenas – o sineiro de tibães diz que se o badalo do sino deixar um ronco. um rasto. um 'ohhhhhhhh' que não quer parar. é sinal de que morreu ou está para morrer outra pessoa na paróquia – estou em dúvida se o sino roncou. não sei ao certo. parece-me que sim. confesso que estou com medo. não tenho medo da morte. tenho medo de não concluir três ou quatro manuscritos que julgo importantes para os que me são próximos – vou estar atento. vou deixar um ouvido no adro da igreja a tomar conta do sineiro – mas ainda estou vivo. sei-o porque respiro e sei-o porque não há ronco nem ceifeira por perto e tudo farei para que assim continue. não tenho intenção de subir para o cimo do meu espólio literário para me fazer desaparecer do mundo. nunca poria os pés em cima do conde de monte cristo. do dom quixote. do tolstói. do pessoa. dos cem anos de solidão. do camões ou do meu querido júlio dinis. nunca. por eles seria imortal – resistirei até que me chegue a palavra às mãos – toda a palavra que me chega às mãos respira e me faz respirar e quando eu respiro o corpo acredita na vida eterna – sem palavras não sou nada – mas também não quero ser nada para além de falar com o que escrevo. não quero nada que me faça ser o que não quero. nasci para escrever. quero escrever. quero ser… sei o que quero ser. mas também sei o que não posso ser – hoje. só quero que nada me aborreça – e é o que sei – no futuro. num outro dia. talvez queira ser um saca-rolhas para arrancar de mim este desassossegado maldito. ou um garfo luís XV rococó para levar alimento à alma. ou uma toalha de rosto em linho do egipto para enxugar a amargura. um biombo de bambu para me proteger de todos os que me apontam o dedo ou então. uma caixa de fósforos para incinerar todos os meus maus momentos e por fim. já que mais nada me ocorre pelo cérebro. gostava de ser um automóvel de velocidade. descapotável. a galgar quilómetros de indiferença pelo mundo. sem medo do tempo. a deixar para trás o passado e o futuro é o pé no acelerador a rasgar vento generoso – e o corpo centrifugado das impurezas pede mais vento e mais velocidade – e a boca a falar desapaixonada. com calão. a mandar foder o que fica para trás e pela frente tudo que vier por bem será bem vindo – e o carro a roncar por um “bufante” duplo. cromado. a expelir fumo branco e em mim um estrondoso sentimento de habemus uma nova vida – não quero mais esse gajo do passado. não o quero mais a comandar o corpo. a dizer isso não se faz. não é bonito. olha que as pessoas podem não gostar. olha o que vão dizer os correligionários. a confraria não permite. um homem que gosta de escrever não faz isso e blá blá e rebeubéu. pardais ao ninho – quero velocidade. quero que se lixe tudo. não tolero mais imposições ou limitações – cuspo pela janela. com ranço. grito palavrões e curvo em contramão. paro nos verdes e faço obscenidades. caretas e acelero. o carro ronca. os pneus plissam e arranco em alta velocidade em direção a um mundo desconhecido com um sorriso de orelha a orelha – sou livre – no retrovisor. os olhos expulsos do passado fazem-me existir para uma nova vida – agora sei que existo porque estou no retrovisor – olho para o retrovisor. olho para mim. volto a olhar para a frente. afunila-se a estrada. acelero ainda mais e olho para um mundo que me deseja e dentro de mim a dúvida: se não houvesse retrovisor existiria? volto a olhar para a frente e o futuro a entrar-me no que sou – o que ficou para trás já não tem importância – e eu sentado na velocidade a recolher o que me chega pela frente do carro. eufórico. abro e fecho o tejadilho. carrego em botões. tudo é novo. tudo é presente. tudo é automático. subo e desço o vidro lateral. ligo os quatro piscas. mas não vou com presa. vou com velocidade mas sem presa. ligo o rádio e a RFM anuncia dez músicas seguidas sem publicidade. mudo para a TSF e esta divulga a morte de um casal de gaivotas em lua de mel. um camião desgovernado ultrapassou a faixa de rodagem e apanhou o jovem casal – não estou para tragédias. passo para antena dois. nada como umas batidas de jazz de new orleans para retemperar corpo e alma – estou em mim. ouço-me na música de charlie haden e pat metheny. a última vez que ouvi esta melodia foi no funeral do meu pai. estávamos num dia de março ensoalhado e fresco – corria uma brisa de paz. era dia do pai. meu também. o mundo estava parado. todos os carros estavam parados. não havia velocidade nem curvas em contramão. só as vendedoras de flores corriam. só as flores sorriam. as nuvens quase paradas encobrem a casa dos crentes. o céu desapareceu e eu também desapareci de mim – as andorinhas voam baixinho – há um cheiro no ar a despedida – o coveiro. finge que as últimas exéquias são um ritual de fé. de sentimentos e de convicções. com cara de sofrimento. acaricia a pá das habilidades fúnebres. é ele que faz desaparecer toda a réstia de esperança da ressurreição – o silêncio misturava a família. os amigos. os curiosos e o padre. estávamos todos em sua volta. o meu pai sempre gostou de ter as pessoas em sua volta – o sr. padre pedia a deus para receber em sua casa o meu pai. eu pedia-lhe para não o tirar da minha. o sr. padre falava em fé. eu prometia raiva. o sr. padre falava em vida eterna. eu falava em vidas desfeitas – chegou a hora da água benta e eu ali de pé. estático. gelado como o meu pai. a pedir-lhe perdão e o corpo virado para o céu. branco. sem dores. com as mãos cruzados como se me quisesse dizer que a luta dele tinha acabado – dou-lhe o último beijo. as portadas fecham-se. a fechadura range. chamam por mim e entregam-me a chave da vida – quando caiu a primeira pá de terra tudo desapareceu. e eu desapareci também. um buraco negro engoliu-nos para sempre – nunca recuperei dessa separação – o funeral é o reconhecimento da morte. é o cais de embarque para uma viagem que não tem retorno. é na verdade o último adeus – perdi-me. passaram vinte anos e eu ainda ali estou a ver a terra a cair – o meu pai faz-me muita falta. um dia destes vou-me encontrar com ele. vamos falar. eu sei que adora falar – apago o rádio. não estou para nostalgias e muito menos para viagens ao passado num carro descapotável – adoro velocidade. adoro estes carros modernos que tem mais botões e alertas do que eu imaginação e quando alguma coisa está a correr menos bem. as luzes e as sirenes não dão sossego: se não colocas o cinto de segurança apita. se o óleo desce a luz vermelha acende. mas se a temperatura sobe acende outra luz ainda mais vermelha e se colidirmos com alguma coisa. abre-se um saco cheio de ar que evita batermos com a cabeça na parede – se tivesse um sistema destes na minha juventude tinha evitado muitas cabeçadas. mas não havia – estes carros modernos são o máximo. nem deus fazia melhor. gostava que um dia inventassem um destes balões para quem escreve. tenho a certeza de que evitava muita cabeçada literária – olho-me novamente no retrovisor. sempre que me olho vejo o que chegou do futuro. tudo que vejo já não existe à frente de mim. existe apenas no retrovisor. existe no passado – basta uma milésima de segundo para que tudo se torne pretérito – tiro os olhos da estrada e o futuro já deixou de o ser para ser o passado no retrovisor – gosto destes carros que amarram a vida pelos cornos. fazem-na presente e num coice atiram-na para o passado – gostava de ser assim – e eu num carro de alta velocidade ao comando de um volante que gira como o mundo. com uma buzina ao centro para anunciar a minha chegada da indefinição: quando parar o carro olho para a frente ou para o retrovisor? não sei. sei que buzino para anunciar a minha chegada – agora tudo que tinha para escrever ficou para trás. não me serve para nada – não se pode viajar a alta velocidade se não tiveres ao teu lado papel e caneta para tirar apontamentos – a velocidade é inimiga dos coxos e dos sonhadores e quando damos conta. estamos no fim da corrida e não trouxemos nada connosco. nem uma muda de roupa – tenho saudades da minha bicicleta. dos joelhos esfolados e daquela sensação de que as subidas eram maiores do que as forças e no fim do dia as pernas chegavam sempre onde queríamos – era o topo do meu mundo – não quero saber de carros. nem de bicicleta. nem dos pés que me trouxeram até aqui. se pudesse escolher ia diretamente para dentro de uma caneta. deslizar em tinta. preta por ser a mais parecida com o futuro. com um aparo grosso. roller baal. personalizado com o meu heterónimo. em letra desenhada. às curvas e contra curvas. para dar aquele ar de coisa distinta. capaz de rubricar livros de fãs. ou escrever uma enciclopédia. com capítulos. dividida por letras do abecedário. com capas grossas. próprias para ficarem em estantes de escritórios ou bibliotecas. lugares chiques. lugares de gente que sabe escrever. lugares de outro mundo – mas não sou. nem tinta. nem caneta. nem sombra do que poderia ser e não sou porque o destino é o que é – não gosto de falar de destino – não acredito nesse coisa de nascermos com o destino traçado. falamos do destino como desculpa para toda a palermice que se faz. eu fiz muita – que se lixe o destino. os carros descapotáveis e as velocidades. que se lixe tudo. só não quero que se lixe os leitores. fazem-me muita falta. são eles que me animam e me dizem que ainda é cedo para morrer – ainda quero escrever amanhã – quando não escrevo repito-me
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quando não
escrevo repito-me – aqui estou eu
novamente atravessado com a minha prosa.
que raio de amor arranjei. que raio
de amante encontrei – o que vos garanto é que não é vaidade. arte também não. nem
alvissaras por vos trazer para o papel o que não sei falar. para falar verdade. escrever
é um género de hemodiálise. uma
terapia de sobrevivência. limpo o
sangue. purifico-me e saio para a
vida mais justo. mais compreensivo. mais tolerante e mais bonito. ficamos sempre mais bonitos quando
estamos bem – gosto de andar na rua
bonito. gosto de ter o sapato a
brilhar e a camisa branca. engomada. passada de todas as vincas. alinhada com o que sou. às formas. gosto de me sentir a sorrir e gosto de sentir sorrisos em
contramão – o mundo é feito de sorrisos.
uns maiores do que outros. mais
intenso ou menos intensos. mais sinceros
ou menos sinceros. feitos à medida
ou contrafeitos e ainda outros feitos à mão.
ou bordados. ou em ponto cruz. mas sempre com afeição – há sorrisos
para todos os gostos e valores – gosto da mulher que sabe sorrir. da que amamenta. da que sobrevive numa máquina de costura. da que pinta. da que
ensina. da que lava o chão e também daquela que corta o pão curvada para a terra. gosto de todas as mulheres que sorriem quanto mais não fosse pela
minha mãe que era mulher – também gosto do homem que sorri. principalmente daquele que prefere sorrir do que aguerrir. do escultor. do que trabalha a madeira.
do doutor que nos cura os males do corpo.
do que anda no mar. do que
combate o fogo e do que corre atrás do ladrão. gosto do sorriso de todos os homens quanto mais não fosse pelo
meu pai que era homem – há sorrisos mais importantes do que outros. como o sorriso da justiça que quanto
mais cega melhor sorri ou o sorriso
da gioconda que com arte sorri para todo a parte sem nada apartar – mas que seria de mim sem o sorriso da
natureza. da chuva. dos rios. dos peixes. das
montanhas. das andorinhas e das águias
que voam sobre a luz de lisboa – gosto do sorriso das flores quando chega a
primavera. das amendoeiras. das macieiras. dos morangueiros e do castanheiro que protege o seu fruto com
espinhos argutos e endiabrados – também gosto do sorriso dos animais. dos mais ferozes e dos inofensivos. dos que rastejam e dos que voam como
as gaivotas. do meu cão e do gato da
minha sogra. dos dinossauros que não
conheci e de todos aqueles que lutam para não desaparecerem – gosto do sorriso
da noite. da lua. da estrela polar. dos
cometas. de vénus e júpiter e de todas
as galáxias com todas as suas poeiras e seres que um dia nos visitarão – gosto
do sorriso de quem acredita no que quer acreditar. de quem tem esperança.
de quem tem fé. não há sorrisos
bonitos sem fé – há que ter fé para sobreviver. não para sobreviver no mundo que habitamos mas sim no mundo que
fizemos crescer dentro de nós – eu preciso de muita fé e confesso-vos que
ultimamente a perdi quase toda – mas ainda não perdi a fé na escrita. por isso escrevo. escrevo para não me repetir.
escrevo para renovar a confiança. escrevo
para encontrar outra forma de vos trazer o meu sorriso – escrever faz-me sorrir
– sempre que escrevo trago para dentro do meu castro o leitor. acomodo-o. dou-lhe “free pass” de infinita permanência e entrego-lhe nas
mãos tudo o que sou com um sorriso de boas-vindas – fecho os olhos e delicio-me
com a subtileza de como caminha. com
elegância. distinto. aprumado. sem embarrar em nada.
como um anjo. ou luz. ou qualquer coisa que nos ocupa sem
ocupar. nos visita sem visitar. nos condiciona sem condicionar e passeia
sem machucar. como se estivesse a
visitar uma feira artesanal de vidro onde copos e copinhos se empilham pelo
chão num equilíbrio crítico. e para
cada passo um alerta escrito a vermelho:
frágil. cuidado. pode partir – e o anjo-leitor-luz ou outra coisa qualquer a
caminhar como se estivesse a voar e os cuidados redobrados em compreensão e avaliação
– dentro de mim tudo a fluir como se não houvesse gravidade. as palavras em suspensão.
presas apenas à imaginação do leitor.
ele sabe que cada leitura tem uma história – e sorrimos os dois. cada um à sua maneira. sorrimos como se estivéssemos seduzidos. estamos os dois felizes. estamos no mundo desejado – quando
estamos felizes a morte não existe.
existe apenas o perigo de morrer.
mas ninguém tem coragem de matar a história com um ponto final. ninguém – e em cada emaranhado de
letras outro aviso: sorria. está a ser acompanhado. e ele quase a pedir desculpa por
existir. e eu sem saber como lhe
dizer que a escrita é ele. sem ele
não há existência. sem ele repetia-me. perdia-me. esgotava-me na inutilidade – meu deus. ninguém sabe como realmente somos frágeis. inseguros e medrosos – escolher palavras é como jogar a roleta
russa. mais cedo ou mais tarde. haverá sempre uma que nos derrubará
emocionalmente – os prosistas são homens sofredores. sós. silenciosos. marginalizados e incompreendidos. quase sempre. por aqueles que nos são mais próximos. não compreendem a razão pela qual
gastamos tanto tempo a escrever o que ninguém lê – estamos no mundo digital.
já poucos são aqueles que usam o seu tempo livre para ler. comprar um livro e sentar no sofá. no escritório. no
metro. no autocarro ou aquelas duas páginas que nos fazem
dormir com os anjos. o leitor de
livros está em vias de extinção – ler é um aborrecimento – ainda mais difícil
de explicar é o sorriso de quem lê ou escreve. por mais que se explique não adianta. estamos sozinhos – como diz elbert hubbard: “nunca se explique aos seus amigos. não precisam disso e seus inimigos não acreditarão em você de
qualquer maneira” – para os que escrevem com paixão a única companhia desejada
é o sorriso do leitor – vivemos em clausura – apesar da solidão todos os dias
inventamos um mundo diferente. tudo. diariamente. tem que cheirar a novo.
até esta raiva com que escrevemos. hoje
matamos uma palavra boa para que amanhã possamos arrastar pelos cabelos uma má
– os prosistas não veem estrelas. memorizam-nas
para que na noite seguinte não voltem a olhar para as mesmas – apesar da nossa
solidão adoramos viver. adoramos
pessoas. tudo que fazemos é para
elas. mesmo para aquelas que não
escrevem. que não leem. que não ouvem o nosso silêncio. ou que nos afugentam. ou nos renegam – nada nos importa. é-nos indiferente o que façam para nos
escorraçar. o que importa mesmo. é que nunca encontrarão uma palavra escrita
para os magoar. respeitaremos sempre
a diversidade cultural. biológica. étnica. religiosa. linguística e até a diversidade de
quem opta por não gostar de livros. ou
de escritores – o mundo com cores é muito mais bonito – bem lá no fundo somos
todos iguais. as cores é que estão
misturadas – o que seria de nós sem o mundo das outras pessoas – não queremos
saber de carros ou mansões. não
queremos saber de sangue ou heranças.
bonitos ou feios. crentes ou não
crentes. o que realmente perseguimos
é a perfeição para o nosso estilo de escrita. a integridade gramatical.
a bondade das palavras. a lealdade
ao camões. a gratidão com todos
aqueles que carregaram às costas a nossa língua ao longo dos séculos. a inteligência necessária para
apreciar e escrever as coisas simples.
a tolerância para quem não nos reconhece artesãos de uma arte de expressão e para finalizar. em jeito de desabafo. a procura contínua da justiça para combater
a forma menos nobre como somos tratados pelas elites. tanta vez com desdém. com
desapreço e com uma arrogância que nos magoa quase de morte – que se faça justiça. mesmo
que não seja a salomónica. aos que
escrevem com amadorismo. com amor. com esforço. com sacrifício. aos
que dão sentido à nossa alma lusitana.
com esta forma de escrever que mais parece fado. numa melancolia que não é desgosto. é orgulho. é paixão. são velas de imensidão com a cruz da
palavra lusitana – somos nós. os amadores
amantes da escrita. que fazemos
girar o mundo da literatura – somos os
escritores do sacrifício… queremos tão
pouco. exigimos ainda menos –
ninguém nos cortará as mãos. ninguém
nos apaga das letras – para existirmos precisamos apenas de ser uma coisa. uma coisa com utilidade. de uso diário. temporário ou apenas para ocasiões especiais. mas existir. existir e
mais nada. ponto final – só existe o
que faz falta nem que seja para um único momento – quando escrevo interrogo-me onde
está o meu momento? a quem faço falta? que destino luta por mim? que ventos me servem?
que porta me deixa entrar se tenho medo de sair de onde vivo? não sei. se soubesse escrever seria bem mais
fácil – aqui estou a escrever. escrevo o mundo que existe ao meu
redor e outro que por existir apenas em mim ninguém sabe que existe. mas escrevo mesmo sabendo que a interatividade
se encontra cada vez mais reduzida às mensagens light. tudo sem açúcar. sem calorias
para não engordar conversas. curtas. com frases motivacionais assinadas
por nobéis ou inventores de uma internet que se move à velocidade de um gigabyte
por segundo. tudo para durar um dia. como se fossemos borboletas – e o
batimento de asas cada vez menos capaz de mudar o mundo – os raios de sol pedem
aos pés uma sombra para descansar – estou cansado – não quero nada especial do mundo. tudo o que quero é um rádio a tocar uma valsa de viena – nunca
gostei muito dos austríacos. não
tenho nenhuma razão para não gostar para além da amizade que fizeram com hitler. mas gosto das valsas e gosto do seu
gosto pela música. pelas artes em
geral. também gosto do musical
música do coração que me faz chorar sempre que o revejo – quem não viu música
no coração? quem não deu um empurrãozinho para que o capitão von se apaixonasse pela maria
[julie andrews]. quem não temeu pela
vida dos miúdos quando os alemães irromperam pelo convento? todo o mundo viu
esta história de afetos e viu também o triunfo da música e do amor sobre os von
trapp. rendidos aos cândidos cantos
e encantos de maria – gosto de tudo neste
filme. gosto das letras. das músicas. dos ritmos. das coreografias. dos cenários. do capitão. das
crianças e da maria. gosto daquela cadência
acertada do assobio afetuoso e aquele chamamento carinhoso e preciso da
criançada. do maior para o mais
pequeno. e eles alinhados como se
fizessem parte de uma clave de sol – tudo me faz bem neste musical. tudo me faz acreditar num mundo bom. doce. com um amor igual ao tempo dos meus pais. amor do coração. para
sempre. meigo. tolerante e o final igual ao dos livros do júlio dinis. o triunfo do amor. a vitória dos bons sobre os maus – tal como dizia edmund burke:
“para
o triunfo do mal, basta que os bons não façam nada.” – eu não me calo. escrevo –
espero que a minha vida também triunfe
sobre todos os males que me acometeram – fazia-me bem. não pelo triunfo do que me lacerou o corpo. mas pela vitória do bem que resiste em mim – gosto de filmes que
me fazem chorar. o meu pai chorava. mexia-se na cadeira. mastigava em seco e só não entrava
pela tela dentro porque não podia – se o meu pai podia chorar então eu também
posso – mas lá estou eu a divagar. a
escrita é tramada. basta uma memória
e já temos uma resma de papel escrita – nem deveria escrever sobre a música no
coração. nem sobre coisa nenhuma que
me ocupe o coração. não é isso que
interessa ao leitor e muito menos para quem como eu se predispôs a escrever um
“tratado” sobre a escrita e o leitor – deveria estar a escrever coisas de
interesse primário para a este “tratado”.
deveria explicar o que me leva a escrever estas palermices e porque teimo em
escrever o que só meia dúzia de crentes leem – não sei. talvez porque sou um pateta.
um fantasista. um excêntrico – acredito
que no futuro. próximo ou longínquo. alguém da minha linhagem será um
escritor de verdade. e quando alguém
lhe perguntar como nasceu o gosto pela escrita possa responder: creio que vem do meu tetravô. adorava escrever – guardo comigo uns
quantos rascunhos escritos por ele.
passaram de geração em geração. era
um homem estranho. mas era também um
homem bom. escrevia com o coração. morreu a perseguir o sonho de escrever
alguma coisa de jeito – lá estou eu novamente a correr para onde ainda ninguém chegou: o futuro – tolo – acredito que à minha escrita acontece o mesmo que
acontece nos retrovisores dos automóveis.
damos inicio a uma ultrapassagem. olhamos
e nada vemos. voltamos a olhar e
continuamos a nada ver e quando já estamos a meio da manobra ouvimos uma
buzinadela. voltamos a olhar e… porra!!!! lá vêm um automóvel – há um
ponto neutro nos retrovisores que nos esconde a realidade. apaga-a. ilude-nos. rouba-nos a verdade – é neste plano
do retrovisor que acredito para a minha escrita. neste ponto neutro. nesta
ilusão negativa. neste roubo da
motivação. do sorriso e quando menos
acreditas ali está o leitor em atenção.
a buzinar. a surgir de trás de um parágrafo. a reclamar a sua leitura com um like –
escrever é também acreditar no que não se consegue ver. diria. é fundamental acreditar
no que não é visível para se conseguir ultrapassar as desilusões. as dificuldades. o desânimo. a vontade
para atirar tudo pela janela fora e para domar a raiva de procurar uma palavra
que não existe – é preciso acreditar. é
preciso perder o medo – é com este medo que vivemos em cada frase que escrevemos. e pedimos a deus: protege-me bom senhor pois dentro de mim ainda tenho a tua
criança – e o tronco amarrado a uma cruz que nos deixa a cambalear. tonto. confuso e inseguro. já
não se sabe distinguir o verbo do sujeito.
o que está bem escrito ou o que nos leva para um pelotão de fuzilamento –
escrever é esconder os olhos atrás de uma venda e pedir para que a primeira leitura
nos atravesse o coração como uma bala e nos enterre para sempre no paraíso – para
quem escreve a morte está sempre oculta nas leituras – ninguém saberá se
morremos de sorrisos ou de azedume. só
o leitor será capaz de dizer que bala disparou – escrevemos amor mas o que dói
é o erro. escrevemos paixão mas o
que dói é a mediocridade. escrevemos
tolerância mas o que dói é a falta de bondade. escrevemos fé mas o que dói é a repetição dos dias. escrevemos vida mas o que dói é morrer
sem atingir os objetivos – escrevemos para enganar a dor do que não conseguimos
fazer – haverá um dia em que os
sonhos ruirão. as mãos mirrarão e a
falta de arte para escrever as coisas simples reclamarão a morte. será o momento certo para nos
enlaçarmos num verbo de transição e partir em silêncio – ninguém nos pode
roubar a dignidade da partida – não sei dissimular este meu medo da vulgaridade. sempre que disfarço a dor aumenta. os quadros caiem das paredes. as fotos desbotam e a memória confunde-se. começa a esbarrar com tudo que lhe
aparece à frente e também com o que estava esquecido. fico impossível para mim e para quem vive comigo. a minha casa ausenta-se e os corpos que
a habitam esvaziam-se de sorrisos – sento-me sozinho a uma mesa que era de oito. arrumo todos os talhares a norte. empilhados. os pratos ladeiros. um
pouco ainda mais a norte do que os talheres.
e à distância de um braço o jarro de
água quase vazio. um cinzeiro do
outro lado dos talheres está pronto a receber fumo e o meu corpo a pedir um último
cigarro – jurei que antes de morrer fumaria um último cigarro – um ex-fumador
morre sempre com um cigarro na boca – não sei de onde vem esta minha tristeza. das palavras que não escrevi ou. das que escrevi convencido que seriam
as melhores palavras do mundo – não sei. o que sei é que tenho os olhos a
rastejar pelo tampo da mesa e na mão
um copo em agonia. uma gota e
transborda – esta mesa de família deixa-me louco. herdei este lugar e agora não o suporto. não o mereço. quero
mudar de lugar mas não sei se
consigo. se mudo de lugar também
mudo a forma como me deixo ver. pode
ser pior a emenda de que o soneto – aguento – isto é uma trampa. crescemos em superfluidade – nunca
serei invisível. tal como o ar ocupa
espaço e não se vê também eu ocuparei um lugar nesta mesa mesmo que mais ninguém
repare em mim – viver. escrever e
morrer incompreendido – a minha vida confunde-se com o toque das fábricas. das produções em série. com a repetição das tarefas. sempre o mesmo parafuso para apertar. a mesma bancada de trabalho. o mesmo martelo e o mesmo gemido para
cada pancada. que monotonia. o desejo insatisfeito e o corpo a
arrebentar pelas costuras – não dá mais – e
em cada mil peças produzidas uma estragada – essa peça sou eu. fim da história para esta peça – não há clemência para quem escreve com defeito – tudo o que se
repete não tem valor – brevemente tudo se sobreporá num único movimento do
relógio. os ponteiros tocam-se e o
registo da hora da morte vigorará para sempre no óbito – quando não escrevo repito-me
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quando não escrevo repito-me – escrevo
então. imito os escritores e não sou
nem parecido aos que sabem escrever.
mas escrevo. bracejo ideias para um
teclado negro enquanto os olhos expulsam de si uma luzinha hesitante. quase intermitente. como se fossem faróis abertos a
tempestade – escrevo protegido por uma persiana que do dia faz noite: luz acesa. quatro lâmpadas das mais modernas. de baixo consumo. iluminam
um silêncio-total. num [quase]
quadrado triste e aflitivo – atrás de uma
escrivaninha uma cadeira de napa
negra segura duas mãos dependuradas.
desarrumadas e despojadas enquanto o corpo cismático oscila na procura das palavras. num cai não cai intranquilo. receoso e medroso – não é fácil
escrever – escrevo. procuro-me para fazer
uma história – esfrego a manhã nos olhos.
estou cansado. os verbos de
movimento parados numa indecisão rebelde:
contínuo ou não a fingir que é noite – movo-me na cadeira. os verbos também. querem-se fazer sentir.
estremeço. o pensamento estremece
comigo e com os verbos. chegou a hora
da luz. o quadrado entra em declínio. desaba. em confusão acelerada a
ideia. eu e a cisma – uma cisma é pior do que uma doença –
a manhã explode pelas frinchas enquanto uma ideia protegida no interior de um
parênteses implode – o que era para
ser história é agora entulho – da
noite. não sobrou palavra sobre
palavra – e o “delete” a pedir um impulso suicida – que se dane. afinal tudo não passou de uma ideia. nenhuma ideia é boa até ser história
– contínuo preso ao interior das lâmpadas.
ao sarro da boca. ao mau hálito e a loucura trepa pelas paredes com a
chegada da manhã – fora da proteção.
um número infindável de vizinhos a correr de um lado para o outro. a hora da utilidade está a chegar – todos
os homens deveriam ter pelo menos uma utilidade – escrever enlaça-me ao tempo. mesmo ao que já passou. porque tudo passa. a vida passa. os
amigos passam. a juventude passa. os filhos passam para outra vida que
já não é a nossa. os livros passam
de mão em mão e as palavras cada vez mais estranhas e mais difíceis de escrever
passam sem deixar rasto – escrevo para me afastar de mim. e saio por aí ao encontro de quem me quer assim como sou nestas
palavras que vos chegam como chega o ventinho norte: frio. inconstante. triste e descuidado – e eu.
perdido de mim. a matar-me devagarinho
por um substantivo coletivo. uma
comuna minúscula que fantasio grande.
silenciosa. com mais de sete pés de
fundura. quase chega à china – sentado
nesta cadeira retirada do mundo saio de mim.
sinto o vento norte a latejar baixinho.
fresco. sem ponta de humidade. talvez tenha passado por áfrica. a caminhar lentamente. como se não houvesse matéria para
comprimir. só imaginação destroçada. a instalar-se nos ossos. num desinteresse brutal. até do que escrevo – e eu a sonhar
com a melhor palavra do mundo. exposto
a este vento que me mata com um vagar destrutivo. sem misericórdia. num
silêncio que as palavras não sabem escrever.
talvez… um silêncio magoado – e o buraco dos sete pés a reclamar carne para decompor
e tudo o que me suporta para a vida envelhecido. desmembrado.
desfigurado. a cair dos ganchos – para
sobreviver terei de encontrar um denominador comum entre o que digo e o que
querem que diga – resisto – nem sempre digo o que esperam de mim – escrevo. escrevo e não sou de ferro. escrevo e choro. escrevo esta melancolia que me ameaça diariamente com um murro no
estômago – como se a minha vida dependesse unicamente do que escrevo – em
tempos não dependeu. hoje. escrever. é o que me resta para continuar a sair de mim – e a noite dorida
espera pelo dia incansavelmente. não
há forma de me esconder da claridade.
também não quero. acredito em
recomeços. acredito que cada raio de
sol traga consigo novos desafios. novos
propósitos. outra existência. ou outro sorriso. ou outra forma de falar sem escrever. sei lá. qualquer coisa
diferente. talvez… talvez traga uma chuvinha miudinha para lavar a alma. ou uma banheira cheia
de água. e o corpo a boiar. inerte. apático. sem procurar
uma única palavra para voltar a respirar e a água cada vez mais preta. de luto. a cheirar a morte e os verbos escritos no futuro gritam liberdade
e eu finalmente defronte de mim. a ser
o que ninguém consegue ver – escrever é a negação do céu. é insatisfação coletiva dos órgãos. hoje uma dor num pulmão para no dia seguinte doer o coração. e depois. depois chega a falta de ar.
a falta de olhos. a falta de
qualidade. a falta de sentido de
humor. e a lágrima. e o riso sem sentido. e o corpo frio e quente conforme a
palavra que escolhemos para louvar a vida mesmo quando sabemos que já estamos
meios mortos – escrever é separar os amigos.
para o lado de dentro os que sabem ler.
os que podem magoar. os que nos
dizem: não escreves um caralho. ou então dizem quase não dizendo: às vezes leio algumas coisas tuas. mas são tantas folhas. tanta palavra fria. tudo parece inverno. parece genebra ou coisa rara. e cada palavra entregue é uma viagem
para moscovo e pelo meio as recordações da minha infância. dos assados de domingo.
do peditório na igreja do carmo. dos
amigos pregados ao peito e o meu pai defronte ao espelho a desfazer a barba. o homem da minha vida. feliz. a fazer correr a lâmina a favor de mim. e eu a subir a vida de três em três degraus e aquela mesa bonita
para caraças. com os pratos todos ao
seu redor. brancos com uma risquinha
azul e os talheres ordenados como manda a etiqueta e tudo tão bonito. a minha irmã. jovem. o meu irmão. jovem. a minha mãe. jovem. e o senhor meu pai à cabeceira e
aquela luz celestial que descia diretamente duma clarabóia com vista para o céu
a iluminar divinalmente tudo que era meu – meu deus. como envelheci. que
saudades – a vida tornou-se numa ferida enorme e eu parado entre moscovo e jerusalém. sem saber que lugar ocupar. e o autocarro para monte d`arcos não
para de apitar – mas ainda não é a hora.
se abrimos os olhos é porque não queremos desistir – escrever é a única
linguagem inteligível que me permite falar – necessito escrever. é com as palavras que escrevo que saio
de mim e quando me apercebi. estava
de regresso à minha terra. esqueço
novamente jerusalém. e o autocarro
cheio de almas danadinhas apita mas não para – amo a prosa – raio de estrada
esta que vem de moscovo e não para na casa do poeta. por mim parava e levava tudo que é poeta mijinhas. picuinhas. rococó. aquele que só
gosta de falar de amor. de florzinhas. de beijinhos. de migos e migas. e
péu péu. e a vida é bela. e péu péu. e o sol é lindo. e péu
péu. e quimeras para todos. e péu o raio que o parta – a vida é
quase sempre uma merda. ingrata e
injusta e ponto final – bem sei que a vida não se torno melhor com o que
escrevo. nem mais justa. mais doce. ou com mais imparcialidade.
mais isenção ou até menos ingrata. mas
não quero saber. não tenho que saber. não nasci para ter que saber tudo. estou-me nas tintas. pago para não saber – só quero
existir. quero existir como existem
as gaivotas. livres. a viver no vento. sem nome. sem passado. sem vírgulas ou pontos de
interrogação. quero existir assim
como sou. a respirar o que respiro e
a amargar o que amargo. estou
habituado. e quando alguém me quiser
chamar que seja pela matrícula de identificação. o apelido é só meu – nunca decorei a minha matrícula de
identificação. só decora quem é
importante. chega ao notário e perguntam-lhe: por favor. a sua matrícula. e a
pessoa importante dispara a matrícula que nem bala de canhão – quando me
perguntam pelo meu número de matrícula.
quase sempre para preencher um talão que confirma a inutilidade da coisa. eu respondo: tenho que ver no bilhete de matriculação. não sei de cor – o sujeito olha de soslaio. acerta os olhos com os meus.
bota subtilmente um ar de gozo cuidado.
irrepreensível para permitir o pedido do livro de reclamações. e eu a ler nas entrelinhas o seu
pensamento: mais um borra-botas – não
sei porra de nada de mim. nada em
mim é suficiente importante para decorar – o mundo dividido entre os
importantes dos não importantes. os
bons dos maus. os ricos dos pobres e
finalmente. os que leem dos que não
leem – os que não leem não sabem magoar.
vivem do lado de fora do corpo.
ausentes das palavras. dos livros e
dos que gostam de escrever. não se
incomodam com nenhum tipo de concordâncias.
misturam o passado com o presente e acrescentam duas pitadas de um futuro com
melhores dias – para quem vive do lado de fora tudo bate certo. mas se por arte de um demónio não der
certo. a resposta também é simples: é o destino. ninguém consegue mudar o destino – e pronto. e a vida continua a sua viagem – a verdade é só uma. não há um único caminho para se ser
feliz – estes amigos que vivem do lado de fora são gente boa. senão vejamos: para cada lágrima encontram sempre mil sorrisos. falam ininterruptamente mas nunca um
peixe lhes morreu na boca. estão
molhados dos pés à cabeça e nem atingem que está a chover. correm para caraças para não chegar a lado nenhum. rezam mas não questionam deus. para quem vive do lado de fora tudo
se resume a viver. a gastar o tempo – o importante mesmo é casar. comprar casa. carro. um LCD de sessenta e quatro polegadas com um comando carregado de pilhas
alcalinas. sofá e a telenovela das
vinte e duas horas da TVI. tudo é perfeito. e se juntar uma ranchada de crianças lindas
é a cereja no topo do bolo – quanto ao erro.
existe porque existe. deus assim
entendeu e mais nada interessa para
além da vontade de deus – queria tanto ser assim. juntar-me a este lado bom e tornar-me num deles – mas não sou. e também não sou comprador de nada. nasci sem ambição para comprar o que
quer que seja. quer dizer. gostava de comprar uma editora. escrever um livro e entregá-lo porta a
porta. olhar olhos nos olhos o leitor
e abraçá-lo num aperto. grato. e dizer-lhe: “Não vale a pena ter vaidades no processo, porque o que existe de
facto é [ele] o leitor” – um escritor sério quer-se grato. afinal quem faz o escritor é o leitor – findas as entregas. sentava-me num varandim virado a sul. junto ao mar. junto às minhas gaivotas.
a escutar as marés e a morrer devagarinho.
num silêncio bom. até que os sonhos
se esfumassem da memória – meu deus.
como estou velho – preciso um livro para voltar a sorrir. para que este cheiro a morte se desprenda do corpo e parta como
partem as gaivotas sempre que o mar chama tempestade – não tenho para onde ir. nem para onde fugir. tirando o buraco de sete pés não tenho nem um palmo
de terra para habitar – é a idealidade que me alimenta a vida retardando este partir
sem partir. este cai não cai. esta dor que dói sem se ver – é este equilíbrio
desequilibrado que me agonia. que me
apodrece as mãos num vagar que me mata sem matar – o equilíbrio é arte dos
espíritos bons. a arte de nada
estrambalhar quando tudo aponta para o desastre total – e riem-se os amigos do
lado de dentro e os que estão do lado de fora também. e perguntam em uníssono [finalmente uma concordância]: como é que ele se aguenta neste
equilíbrio tonto das palavras? como é que ainda tem coragem para escrever? e o
corpo treme como treme a terra para agitar a poeira e assentar tudo numa nova
ordem sem nada se estrambalhar – ganho mais um dia. escrevo mais uma folha.
digo olá mais um vez. abraço. abraço. abraço – adoro abraçar – não sou escritor. imito os escritores. o
que faço é arremessar as palavras contra o papel e esborrachá-las como se fossem
mosquitos. com uma raiva boa. uma atrás de outra. e a baba a escorrer pelo canto da
boca. e mais outra. e mais baba. e outra. e as manhãs
começam numa carnificina. e no ar
mais de um milhão de palavras pedem clemência. e os braços cansados de tanto genocídio. e as folhas em marcha de guerra gritam morte aos poetas. vida eterna aos prosistas – que
loucura. que idiotice. “ser poeta é ser mais alto, é ser
maior”. só florbela espanca seria
capaz de escrever uma frase destas – gosto de escrever porque gosto de mim. gosto de escrever porque gosto de
quem me gosta de ler. sempre que
escrevo ilumino a minha vida.
esqueço os fantasmas do passado e as ruas que me fizeram crescer. esqueço raios e trovoadas e todas as
mãos que me sufocaram. esqueço e não
me quero lembrar – um dia atiro-me ao mar amarrado a um livro âncora e mesmo
que a maior onda do mundo me queira trazer à superfície mergulharei ainda mais
fundo – desapareço para sempre e nunca ninguém saberá se morri ou acasalei com
uma sereia e fui feliz para sempre.
ou então. desapareço num dia de
nevoeiro. desapareço para que os
meus amigos não fiquem à espera do que não vale a pena esperar. não sou el rei d. sebastião – escrevo.
escrevo porque gosto de mim. escrevo
porque tudo que escrevo é um bilhetinho que podes encostar ao coração. ou trazer no lenço da mão. ou no bolso pequenino das calças. ou então. uma recordação para os dias em que sentires saudades minhas – será
que cheguei ao fim da palavra? será que cheguei ao fim da minha estrada? não
sei. não sei se a estrada é feita de
palavras ou as palavras me fizeram a estrada. não sei. não sei tanta
coisa que gostaria de saber – não sei.
mas sei que gosto de escrever porque gosto de mim. e gosto de quem me procura para ler mesmo que traga as mãos
vazias de abraços – sou o que sou e mais nada poderei ser além do que sou
porque para ser outra coisa qualquer necessitaria de tempo e tempo é o que já
não tenho – estou gasto de me procurar e gasto de me encontrar onde não quero
estar – onde houver um folha em branco eu escreverei o que for preciso para me
fazer existir e se tiver que morrer na folha também morrerei porque só quem
escreve poderá um dia ser recordado.
só quem escreve poderá ressuscitar. só
quem escreve poderá entregar o corpo ao diabo e a sua obra a deus
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“Não vale a pena ter vaidades no processo, porque o que existe de facto
é o leitor” – é verdade. o josé
torres nunca teve tanta razão – é por esta razão. gigantesca. que
escrevi estas vinte e cinco páginas e decidi reconhecer [para sempre] que todo
o leitor necessita de papel nas mãos – assim farei. assim me farei papel – prometo – como será ainda não sei. mas tenho umas luzes em que acredito
– mas. nunca jamais poderei [vocês
também] esquecer este meu amadorismo – tudo farei para não vos embustear ou
desapontar. tudo farei