.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/12/2019

quero muita merda para 2020











chegou ao fim mais um ano de trampa – venha lá esse 2020. venha lá uma nova fé ou fezada de que tudo. finalmente. vai ser diferente para melhor – esta esperança saloia que me impregnaram no corpo é mesmo de baixo teor encefálico – mas. que posso fazer eu. sou apenas mais um mortal fraco e cegueta a deambular pelos ponteiros de um relógio que me engana desde aquela passagem de ano. onde eu e mais dois amigos destemidos. nas traseiras de uma toyota hiace. gritamos urras. vivas e impropérios à chegada de um ano que acreditávamos trazer todo o futuro risonho do universo – foi a última passagem de ano em que não fizemos contagem decrescente. o barulho dos foguetes iluminaram o caminho de uma carrinha parada num descampado de adamastores – não temíamos nada. nem ninguém. éramos apenas crianças mascarados de mosqueteiros onde o lema de alexandre dumas se renovava com esperança e alegria às doze badaladas: todos por um. um por todos e feliz ano novo – que bonitos que éramos. não há nada mais bonito de que um corpo imaculado – juramos que um dia. num futuro muito rápido. voltaríamos a comemorar uma outra passagem de ano num rolls-royce branco. descapotável e flutes de dom perignon apontados às estrelas – pobre é assim. sonha – sonhar não custa dinheiro – pobre o que quer é pinchar e cantarolar aquela contagem decrépita do ano velho e comer uva-passa às manadas para que nenhum mês caia em desgraça – pobre fica tão entusiasmado com o fim de ano que até se esquece de gastar o último dia de dezembro. e quando acorda. já é janeiro e pede socorro jurando que lhe roubaram o ano que acabou de terminar – claro que estou a citar o caco antibes. quem melhor do que ele fala de pobres.  só o caco é capaz de me espremer o cérebro no último dia de 2019. entrar dentro do meu ouvido e suavemente. chingar-me a honra e a fé: pobre tem que ficar tudo socado no conjugado”. pobre vai à loja de 1.99€ e “compra tudo de prástrico – pobre é uma visão do inferno. faz a festa assobiando num apito que vai e vem e atira confetes ao ar acreditando que é o botão dourado do got talent e. como não quer perder pitada do réveillon. fica tão apertadinho que até faz xixi pelas pernas abaixo. eufórico e com as meias ensopadas de mijo berra e jura que o novo ano lhe vai trazer paletes de dinheiro. e as gajas da plaboy tocar-lhe-ão á porta doidas por uns preliminares com o novo capitalista – no meu caso. criado e ampliado com o pó de deus. substituo as gatas assanhadas das revistas de adultos por uma renovada esperança de que a minha companheira maria joão deixe de ser rabugenta e teimosa – pobre é assim mesmo. contenta-se com pouca coisa. é boa pessoa. mas estúpido como uma porta – mas não se aflijam porque já me tratei pior do que uma porta. talvez por ser fim de ano sinta necessidade de recuperar alguma tolerância para comigo – o ano não foi bom para quem ama – mas agora que renovei a fé em deus. estou mais crente do que nunca no aparecimento da bondade divina para com este seu pobre servo reconquistado pelos desígnios do senhor – só há uma coisa que não quero perder com a entrada do ano novo: a memória e esta saudade que carrego dentro de mim que me fere como se trouxesse à cabeça a coroa de espinhos da crucificação de jesus – são estes espinhos que me recordam que um dia ao pó voltarei e nada serei se não aceitar em mim tudo o que é invisível – sou uma criatura de deus. agora agradecido. sentimental e com a fé actualizada para nunca mais esquecer de que a morte mais não é do que o fim do corpo na terra – quero acreditar que um dia. num outro espaço temporal. a saudade que não sei escrever terminará com o reencontro de todos aqueles que partindo desta terra nunca partiram de mim – em 2020 quero continuar a ter saudades do meu pai. da sua leveza de espírito. da sua bondade. do seu sentido de justiça e daquele sorriso que era um abraço – quero ainda ter mais saudades de minha mãe e continuar a cumprir a sua última vontade. eu e os meus irmãos sabemos bem o seu último desejo – quero continuar a sentir-me mal por ainda não ter encontrado arte e engenho para escrever sobre uma mulher que foi o pilar da nossa família – a minha mãe tinha a força de quinhentas trovoadas e a doçura dos primeiros dias de primavera. devemos-lhe quase tudo – era uma mulher emancipada que lutou por tudo aquilo que diariamente conquistou. sem nunca se esquecer de que uma família para se eternizar precisa de amor – lutar. trabalhar. amar. lutar. trabalhar. amar até que o coração ceda de cansaço – foi assim que a minha querida mãe partiu – quero que os dias de sol me tragam de novo a minha cunhada – a minha zéza também era o sol da nossa / sua família – em 2020 não quero perder nada do seu legado: devolveu-me a fé e a certeza de que esta vida é apenas uma passagem e o mais importante é dizer tudo o que que nos vai na alma no momento certo – nunca deixes nada por dizer. amanhã pode ser tarde – a minha cunhada disse-me as coisas mais bonitas que um homem pode ouvir. disse-o em saúde. sem medo. nos olhos. amarrando-me as mãos e com a bondade de um coração de ouro que imaginava viver para sempre – a minha zeza fez de mim um homem muito mais tranquilo e sereno. era a minha menina. era a irmã mais nova que nunca tive – para mim será sempre aquela miúda com cabelo aos caracóis. óculos enormes que escondiam uma vontade de viver celestial. envergonhada e giraça – conhecia escondida atrás das cortinas da sala a primeira vez que entrei na casa dos seus pais – não posso mudar o passado. mas posso e quero recordá-lo. quero recordar para sempre a minha cunhada feliz com o seu companheiro que agora guardo também no meu coração – a vida foi muito ingrata e injusta para este amor que só pecou porque o tempo se perdeu nos desencontros da vida – feliz ano joana e miguel. este ano roubou-te a pessoa mais importante da vida. mas não desistas de viver em alegria. vai por esse mundo fora e serás recompensada – a tua mãe estará de olho em ti – quero amar todos aqueles que vivem em mim. pouco ou muito. não importa. sem estas memórias não sou nada. e se não for nada não existo e quem não existe nunca saberá que o céu é a cobertura dos homens bons – sempre tive muita gente boa a meu lado. que sorte. uma graça que deus me concedeu – em 2020 quero a minha família e amigos mais perto de mim. todos. quero a vossa paz e a vossa bondade – não sou especial. mas sou lopes – em 2020 quero continuar a lembrar-me do tio joão. há dias que sinto tanto a sua falta. era um homem especial. inteligente e gentil. não merecia partir tão cedo. fez-nos muita falta – ficou a sua semente a confirmar que árvore boa não dá fruto mau – quero lembrar-me dos amigos que já partiram. do joquinha. do luís vieira e do sérvio. gostava de um dia voltar a falar com eles – em 2020 quero que os meus filhos continuem a crescer com honra. saúde. trabalho e bondade – quero que sejam destemidos no amor. amar sem medo é a melhor coisa do mundo. amem de qualquer das maneiras. quem ama não teme o próximo. nem o futuro. acreditem nas pessoas. ajudem sem olharem a quem. sorriam. vocês são homens fantásticos. são especiais. são únicos porque transportam a alma do vosso avô dentro de vocês – neste novo ano quero que as minhas noras sejam muito felizes. honradas pelos seus companheiros e gratificadas pela vida. vocês são as mulheres mais importantes do universo. são vocês que cuidam do nosso único tesouro. os filhos são a nossa luz – andreia. obrigado por esse sorriso com que carrega no peito o nosso luís. a andreia sabe como esse rapaz é especial. foi o meu primeiro desejo. ser pai do luís – não podia ter um filho melhor – obrigado também pelos nossos dois netos. tenho a certeza de que serão. um dia. miúdos grandes em virtudes e felizes – pedro não desistas nunca dos teus sonhos. a vida encontrar-te-á para o sucesso. não corras. mas não abrandes. tu és um bom rapaz. nunca me cansarei de acreditar no teu futuro. adoro-te – joão estamos muito orgulhosos de ti. este último ano confirmou o que sempre soubemos. tens tudo para ser feliz e independente – não te esqueças que foste ensinado a amar sem medo. aprende a sorrir e deixa-te ir pelo mundo fora. és excecional e com um coração enorme – um beijo muito especial para as futuras noras. bela e sofia. quero o melhor para vocês. mas também quero que não se esqueçam de fazerem os nossos meninos felizes. eles são meninos bons e gostam de amar uma única mulher – também quero para 2020 que a lurdes envelheça com dignidade. ela merece tudo de bom. os anjos não tem que servir de exemplo ao mundo – claro que um bom ano nunca poderia ser bom se a minha sobrinha e a sua família não chegarem em paz a sua casa. virá um anjo sentado na asa do avião – quero também para a minha irmã. irmão e famílias muita saúde e paz. serão sempre carne da minha carne e sangue do meu sangue – quero muito que a minha cunhada teresa não se esqueça da sua irmã neste novo ano. fazes muita falta á maria joão. e claro. muita saúde para toda a tua família – em 2020 quero o melhor da vida para a melhor companheira e mãe do mundo. são tantos anos a brindar a um novo ano – amo-te muito. mais do que a lua. o sol. o vento ou a chuva – o que seria de 2020 sem o teu sorriso – no novo ano vamos passear descalços pela praia. vamos ver o nascer do sol. vamos beijarmo-nos e renovar os votos do nosso casamento – preciso de me casar outra vez contigo – nunca tivemos medo de nos amarmos e assim será até ao fim dos nossos dias: prometo estar contigo na alegria e na tristeza. na saúde e na doença. na riqueza e na pobreza. amando-te até que o nosso mundo termine – espero que deus finalmente ouça as tuas preces e não deixe que o teu pai se esqueça de ti – sei que esse é o teu maior desejo para 2020 – e já que 2019 está prestes a terminar. peço que 2020 traga muita saúde para todos aqueles que me estimam como amigo. o que seria eu sem os meus amigos – devo-vos tanto. são poucos. mas são tão bonitos e bons – salve 2020

sampaio rego – 31 de dezembro de 2019

ps. este texto foi escrito sem rede e a uma única mão – de que serviria corrigir?




29/12/2019

no meu peito já não cabem gaivotas*





imagem - google 




nota de autor.

vinte e oito meses depois resolvi terminar esta saga analítica de quatro tipos de morte – confesso-vos que a morte emocional e terapêutica me custou imenso a escrever. verdadeiramente. só agora estou a disfrutar dessa descida ao inferno – não foi fácil estender a escada para pular do mundo das dores. mas agora sei que o tempo é um erro.a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”*. o sofrimento esgueirou-se silenciosamente. e as palavras adocicaram-se é com esta memória persistente e resistente que aprendi a encontrar-me no hoje. quero-me em papel – sei agora melhor do que nunca. que qualquer uma das minhas mortes. num tempo que não sei contar. resolverá com crueldade esta minha forma de escrever o que sinto – aqui estou com a última parte. a morte dolosa ou fraudulenta e. ao contrário das mortes anteriores. onde tinha descido ao inferno. nesta. subi ao céu e diverti-me com anjos e querubins


 4. a morte dolosa ou fraudulenta

introdução.

finalmente uma morte que traz boa disposição – confesso que já sentia falta de uma escrita levezinha. tranquila. serena. uma escrita tipo chazinho de camomila – nesta saga analítica de quatro tipos de morte. a morte dolosa ou fraudulenta. que vos entrego. foge completamente ao estilo de escrita do sampaio rego. creio que é mais o género do joão surreal – mas não importa quem escreve. o importante mesmo é esta vontade de compor a vida que me sai de dentro. esta emoção. esta perturbação. este desassossego que me magoa e que simultaneamente me ilude com o tempo. faz-me viver. faz-me sorrir – meu deus. como sou feliz nesta busca incessante das palavras que nunca sei onde estão – hoje. graciosamente. trago-vos uma morte que é uma história embrulhada numa bela surpresa. com um final tipo alfred hitchcock – tentarei então fazer um embrulho com um laço bonito. quer dizer. um laço pomposo e misterioso. só espero que o papel chegue e a história no final mereça o vosso sorriso – vamos começar então


1.
um marido convencidíssimo de que a sua esposa o atraiçoa sente-se completamente desesperado. e de tal forma encasquetou que essa deslealdade era real que a sua vida se tornou num verdadeiro inferno – o ciúme passou a administrar totalmente a sua racionalidade. transformando-a numa irracionalidade absurda e absoluta – afogado nesse sentimento egoísta e incapaz de dialogar com a sua companheira. busca em si um motivo para essa traição. mas por mais que procure uma mingua de razão para essa evidente deslealdade. não a enxerga – está desesperado. sempre amou esta mulher. sempre foi um homem fiel. sempre viveu para a família – à falta de uma resposta que lhe alivie o sofrimento deixa-se tomar por uma raiva silenciosa e o desfecho é o colapso emocional – não quer acreditar que se tenha enganado a respeito de uma companheira que conheceu ainda adolescente. não quer e não pode. a mulher que um dia jurou amar pela santidade do casamento católico é o centro do seu universo – o que seria da sua vida sem a única pessoa que deu sentido à sua existência – com a psicose gravemente instalada. esta leva-o a um pensamento delirante. pouco lúcido. sistematizado pela negatividade e dotado de uma lógica errática própria de quem está doente – uma mente doente pensa doentiamente – a falta de confiança arrasta-o para uma agressividade interior perigosa e desgastante e a relação entra definitivamente num estágio dramático – o silêncio é agora o seu maior inimigo – o fim do seu casamento está por um fio. a angústia é contínua e as noites uma enfermidade dolorosa que o impede de descansar – deita-se infeliz e levanta-se ainda mais infeliz. sente-se o pior homem do mundo – inseguro e com a sua autoestima a roçar a lama. percebe que não aguenta muito mais esta sua indeterminação e. resolve partir em busca da verdade. doa o que doer – ele sabe que o tempo está contra si. este medo de perder a mulher que ama está a enlouquecê-lo – o coração está prestes a implodir de sofrimento. é hora de saber toda a verdade. é hora de saber se ainda é o homem que a sua mulher quer ter a seu lado para o resto da vida – chegou o momento de enfrentar o medo. é urgente saber a verdade. a sua amada tem que lhe dizer. olhos nos olhos. que o amor acabou. que foi bom. mas chegou ao fim – depois de muito ponderar concebe então um plano que lhe permita. objetivamente. aferir se as suas preocupações são reais ou apenas a alma doente – tem que saber se a sua esposa tem um caso ou não. se o ama ou não. meios termos já não são aceitáveis. a dor é colossal. insuportável. há que colocar tudo em pratos limpos – reconhece as suas fragilidades por que está a passar e reconhece também que só um amigo verdadeiro será capaz de o compreender e ajudar – está desesperado. sabe que o plano é arriscado e maquiavélico. mas parece-lhe ser esta a única solução capaz de lhe devolver a paz e o casamento


2.
o amigo dirige-se a sua casa. toca a campainha. aguarda uns segundos. a porta abre-se e dá de caras com a esposa do zé meireles que. surpreendida com a visita. lhe pergunta:
-- a esta hora aqui. aconteceu alguma coisa?
o amigo pesaroso e pouco à vontade responde-lhe a gaguejar:
-- si... sim há. nem sei como te dizer…
faz-se silêncio. os olhos da cutilde arregalam-se. o corpo entesa-se. as faces ruborizam-se enquanto a mudez é consentimento para que o amigo do seu marido diga rapidamente ao que veio – o jeremias entristecido. com os olhos encharcados de dor. a tremer e a gaguejar diz-lhe então:
- oo zé acabou de falecer. foi atropelado
.
[colocado num local estratégico. camuflado. mas com uma perfeitíssima visão para o patamar da sua porta. o zé tenta perceber nos meneamentos da sua querida esposa se realmente vislumbra algum detalhe de júbilo ou tristeza]
.
a cutilde estremece. bamboleia. como se também ela tivesse sido atropelada e. enquanto os segundos se multiplicavam por uma eternidade toda ela é tomada por uma dor paralisante. não consegue pronunciar uma única palavra – não se ouve um único som ao redor de si. parecia até que o mundo tinha acabado de falecer – o jeremias. em pânico. arruma-se igualmente dentro do silêncio. concentra-se e projecta os olhos para dentro da alma da cutilde – também ele quer saber se o seu amigo está. ou não. a ser enganado pela esposa – o zé meireles é o seu amigo do coração. cresceram juntos. fizeram a escola juntos. andaram nos namoricos juntos e quando um tombava com um copo o outro nunca ficava para trás. se tivesse que dar a vida por alguém. esse alguém. seria o zé – são mais do que amigos. são manos e o sofrimento de um mano não dói. mata-nos – a cutilde dá dois passos atrás. encosta-se à porta. percebe que está prestes a colapsar. e sem que o jermias lhe pudesse valer. o corpo desfalece e as pernas acabam por ceder – cutilde está prostrada no chão – o jeremias entra em pânico. pela primeira vez percebe que talvez o plano possa não correr como tinham planeado. dá-lhe duas bofetadinhas ao de leve. abana-a. chama-a pelo nome em desespero e. com custo. tempo e terror. a cutilde reabre os olhos – completamente desfigurada. rapidamente recupera a memória do drama que está a viver e. numa agonia de estraçalhar o coração. recusa a acreditar que o seu zé a tenha deixado ficar para sempre – a dor é insuportável. o coração está prestes a partir-se e o corpo a sufocar perde-se em lágrimas – completamente desorientada levanta-se. anda de um lado para o outro sem discernir o que realmente deve fazer. sente-se perdida e não consegue raciocinar – se por um lado quer sair a correr para abraçar o zé. por outro. recusa-se confrontar com a verdade – já ninguém tinha realmente dúvidas que a cutilde amava o zé. era fácil de perceber que a dor era genuína. saí-lhe da alma. o zé meireles era o único homem da sua vida – quem entrou em pânico foi o jeremias. também ele começou a sentir as pernas a desfalecer enquanto o corpo tremia como varas verdes – estava metido numa alhada e agora não sabia como descalçar a bota – com a voz trémula tentou rapidamente encontrar um paliativo para o drama. pelo menos adiar um pouco o que parecia já não ter solução – foi uma grande estupidez. diria mesmo. do tamanho da sé de braga – amarrou nas mãos da cutilde. olhou-a nos olhos e pediu-lhe para ter esperança porque. em boa verdade. ele não viu o corpo. apenas tinha recebido um telefonema do hospital a dar conta da tragédia. mas o melhor era realmente verificar se o falecido era mesmo o zé – lembrando-lhe um episódio recente que passara na TV. também anunciaram a morte de alguém que afinal não tinha acontecido – suplicou-lhe para que dentro do possível relaxasse e descansasse um pouco. em breve lhe daria notícias a confirmar ou não a morte do seu marido – a pobre mulher consumia-se em dor. mas percebeu que o melhor seria mesmo recolher-se um pouco e esperar pela confirmação do seu amigo – o momento era de solidão. precisava ficar só. libertar a sua raiva com deus. perguntar-lhe porquê o seu zé. qual a razão para lhe roubar o homem da sua vida


3.
o jeremias completamente tresloucado foi rapidamente ter com o seu amigo a um café nas redondezas – o zé já o esperava agitado e tomado por uma cor que prognosticava grandes sarilhos. tudo apontava para que fosse ele o próximo a desfalecer – o jeremias sem deixar que o zé dissesse uma única palavra disse-lhe: zé não tens razão nenhuma para desconfiares da cutilde. ela não só não tem ninguém como te ama perdidamente – os olhos do zé. momentaneamente.  encheram-se de alegria – mas agora te digo meu amigo. depois do que vi. creio que ela vai mesmo deixar de te amar – não sei como vamos descalçar esta bota. fizemos asneira da grossa – juro-te que não sei o que fazer para reverter esta palermice – o zé se por um lado se sentia feliz por saber que afinal o amor da sua mulher era realmente verdadeiro. por outro. compreendeu que a sua cabeça lhe tinha pregado uma partida – e agora o que fazer? o coração acelerou. o suor começou a escorrer-lhe pela face e o pânico tomou-lhe conta da emoção. estava como o burro no meio da ponte. não sabia para que lado se deveria virar – fiz asneira e vou perder a cutilde. desabafou o zé – desesperado mais uma vez pediu ao amigo para o ajudar a reverter a doidice em que se tinha metido. não podia perder a mulher que amava por causa de uns ciúmes estúpidos – e ali ficaram aquelas duas almas descarnadas a tentar encontrar uma solução para resolver o imbróglio. a preocupação era que a cutilde não desconfiasse que afinal tudo não tinha passado de um teste estúpido e doentio para aferir a sua lealdade


4.
a cutilde. afogada em dor. não encontrava justificação para continuar a viver sem o seu zé e. num ato tresloucado e desesperado. ingere um frasco de calmantes – a vida sem o seu grande amor não faz sentido. a solução é também ela acompanhar o seu marido na viagem final – tudo para ela tinha sido bem claro no dia em que desposou o zé. viveria a seu lado para o bem e para o mal. na saúde e na doença e até que a morte os separasse – sim. que a morte os separasse quando a velhice já não tem remédio. não assim. ainda se estavam a conhecer. eram umas crianças. dentro de poucos dias comemorariam o quarto ano de uma união sagrada – que deus lhe perdoe. mas prefere estar ao lado o seu marido no céu


5.
entretanto o zé continuava a discutir com o seu amigo a melhor forma de resolver o problema e. por mais voltas que dessem. rapidamente perceberam que a única saída para aquela palermice era regressar a casa. pedir perdão à sua mulher e esperar que ela compreendesse que esta loucura só aconteceu porque a amava loucamente e não a suportaria perder por nada deste mundo – assim fez. encheu-se de coragem e pôs os pés rapidamente a caminho. quanto mais depressa resolvesse esta sua triste história mais depressa a sua vida voltaria à normalidade – entra em casa e depara-se com o corpo da cutilde estendido no chão da entrada do quarto – toma-a nos braços. e em desespero. abana-a. chama pelo seu nome umas quantas vezes. pousa o ouvido no seu coração e rapidamente percebe que a cutilde já não pertence a este mundo – senta-se no chão e com a sua amada nos braços aperta-a contra o seu peito e ali fica em silêncio a embalá-la como se estivesse a dormir – revoltado com ele mesmo. percebe tarde de mais que foi a sua insegurança que acabou por lhe roubar o seu grande amor. tinha estragado tudo e ele era o único culpado do que acontecera


6.
entretanto a cutilde chega ao céu e a primeira coisa que faz é perguntar ao s. pedro onde está o seu zé. e quando não é o seu espanto quando ele lhe diz que a morte do zé foi um embuste. infelizmente para ela o zé não faleceu. mas pode ficar tranquila. o seu amor por ele foi altamente recompensado. o zé ficou com a casa e o carro pagos ao banco. para não falar nos milhares que vai receber do seguro de vida


7.
moral da história: não acredite em tudo que lhe dizem – antes de tomar uma overdose de pastilhas. atirar-se de um penhasco ou dar um tiro na cabeça. verifique com os seus olhos se ninguém o aldrabou – e mais um conselho senhor leitor. tome muito atenção à vida. na maior parte das vezes é mesmo essa ordinária que nos engana. amámo-la e em troca faz-nos um manguito – mas no meu caso. que sou o contador da história. aviso-vos desde já que não tomo pastilhas. excetuando as que me aliviam o relinchar dos bicos de papagaio – pobre cutilde


- *título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu peito não cabem pássaros
* albert einstein




16/12/2019

até o ferro apodrece





imagem google




não sou do CHEGA – não sou de partido nenhum pois cansei-me de grupos organizados de políticos não sérios e mentirosos [com pequeníssimas excepções] – mas sou do tempo em que a UDP. de mário tomé. chegou ao parlamento e. nesse tempo novo para a recentíssima democracia portuguesa. lembro-me de me regozijar e celebrar a sua chegada à casa da democracia – mesmo não partilhando os valores daquela esquerda ou da terrífica extrema esquerda. quem não se lembra dos comunistas que matavam os velhinhos. acredito que foi o primeiro grande teste à pluralidade no parlamento depois do 25 de novembro – eu gosto de vozes discordantes – gosto de quem agita os consensos podres dos partidos da área do poder – gosto de gente que não tem medo de apontar o dedo. e talvez por isso. fique satisfeito com a eleição do grupo parlamentar numeroso do bloco de esquerda. do PAN e mais recentemente do CHEGA. LIVRE e INICIATIVA LIBERAL.  e para que não fiquem dúvidas. por cauda das más línguas. nunca votei no BE – nasci em ditadura. mas cresci em liberdade – amo a liberdade. sou e serei sempre um homem grato aos capitães de abril – foi essa liberdade dos cravos que me permitiu crescer como cidadão do mundo. um país livre não tem fronteiras. não tem muros. nem dogmas – um homem livre tem dentro de si um pensamento livre – por isso é que não posso admitir. ou tolerar. que um órgão de soberania. eleito em eleições totalmente livres. recupere tiques estalinistas ou fascistas – o sr. presidente da assembleia da républica. dr. eduardo ferro rodrigues. não tem o direito de se dirigir a um deputado eleito democraticamente pelo povo português. e digo novamente. em eleições livres e democráticas. naquele tom esdrúxulo. pantomineiro e desrespeitoso – a liberdade individual do deputado andré ventura. mas também a liberdade coletiva de todos os cidadãos portugueses representados naquela assembleia por força do seu voto livre. fui violentamente atacada nos valores conquistados de abril – a casa da liberdade não pode aceitar que deputados batam palmas a quem se esquece e não respeita o artigo 11 da constituição portuguesa:

Artigo 11.o - Liberdade de expressão e de informação
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.

foi uma vergonha sr. eduardo ferro rodrigues. foram vergonhosas as palmas dos senhores deputados – estou farto desta gente que vive da política. daqueles que se servem dela para melhorarem substancialmente a sua forma de viver. e. principalmente. daqueles que fazem da política um tacho coletivo onde tudo é permitido aos da sua cor e nada é consentido aos que estão na oposição – nunca vi o sr. presidente da assembleia da républica. dr. eduardo ferro rodrigues. indignar-se contra os abusos de poder do seu colega de partido eng.º josé sócrates. entre muitos outros que por falta de tempo e espaço me abstenho de enumerar – o voto é sagrado e a assembleia da républica o local certo para que os seus deputados. de todos os partidos. honrarem a constituição portuguesa. lei suprema do país. aceitando-a defender. respeitar e fazê-la cumprir. mesmo quando essa violação parte da segunda figura do estado português. com assento no conselho de estado. e que tresloucadamente. no decorrer do debate parlamentar. se permitiu a tão papel ridículo. só com paralelo quando se insurgiu contra o antigo presidente do sporting. dr. bruno de carvalho – o segundo cargo na républica requer elevação e recato – senhores deputados e deputadas do partido socialista. as vossas palmas foram uma vergonha. foram vergonhosas. confesso-vos que também senti vergonha por vós – os senhores deputados. têm o dever e obrigação de garantir e proteger a liberdade de expressão dentro e fora da assembleia da républica. a PIDE e a censura extinguiram-se na madrugada do 25 de abril. a liberdade nunca poderá ser partidária – é completamente indesculpável e intolerável que o sr. presidente eduardo ferro rodrigues se dirija ao deputado andré ventura com aqueles termos inapropriados e desrespeitosos de “então diga lá o que tem a dizer” – a palavra “vergonha” ou “é vergonhoso” não só não é ofensiva. ou mesmo vergonhosa. como na maior parte das vezes fica aquém na forma e no conteúdo do que os sucessivos governos do PS e PSD merecem ouvir – a governação destes partidos tem sido. ao longo da nossa democracia. uma vergonha ou vergonhosa – o sr. presidente da assembleia da républica recuperou os tiques de poder de antigos dirigentes do partido socialista. quem não se lembra dos tiques soaristas ou mais recentemente dos tiques socráticos – o sr. deputado eduardo ferro rodrigues representa a velha guarda de um partido que sempre teve dificuldade em aceitar todos aqueles que corajosamente foram capazes de denunciar os compadrios / corrupção existentes dentro do PS – basta recuar ao governo do eng. josé sócrates e lembrar todas as tentativas para manipular e silenciar a comunicação social – não me lembro de ver o dr. ferro rodrigues ou o PS indignados com as palavras com que o seu colega de partido atacava a dra. moura guedes ou o correio da manhã – mas nem precisámos de recuar tanto na história do partido que sentou o sr. deputado ferro rodrigues na cadeira da presidência da assembleia da républica. bastava que este ilustríssimo político se insurgisse contra o seu último presidente parlamentar. sua excelência dr. carlos césar conseguiu empregar toda a sua família em instituições do estado. e pasmem-se. até esteve quase a colocar um seu familiar numa comissão de socialistas para dinamizar os cemitérios de lisboa. ele e mais uns quantos seus correligionários – é obra dr. césar. isto sim é uma vergonha que nunca ouvi o militante socialista ferro rodrigues insurgir-se. indignar-se com mais esta vergonhosa matilha de delapidadores do erário público – diz-se por aí. pelos corredores da assembleia da républica também. que a figura de sua excelência dr. eduardo ferro rodrigues substitui aqueles famosos três sábios macaquinhos japoneses que tapa os olhos. a boca e os ouvidos sempre que se trata de recriminar o seu partido empregador – mas desta gente dos partidos já pouco ou nada espero. da direita à esquerda – o que me incomoda é o quase silêncio dos srs. jornalistas. dos opinadores da política. dos comentaristas. dos analistas e dos colunistas. sim. esta ilustríssima gente também vive da política. também são conhecidos por causa da política. também aparecem nas televisões pela mão da política e também são estimados pelos políticos sempre que necessitam deles para difundirem as suas doutrinas – assim sendo. deveriam ser estes senhores os primeiros a barricarem-se contra a tentativa de manipulação da liberdade de expressão. deveriam ser os primeiros a cerrar fileiras contra qualquer tentativa de desvirtuar ou condicionar um deputado na sua oratória política. mesmo que esse deputado seja da extrema direita ou extrema esquerda. mas eleito em democracia – afinal também vivem da palavra livre ou será que a vossa liberdade é igual à do sr. presidente da assembleia da républica… tem cor




13/12/2019

eu. os pés e a cabeça






pintura - rené magritte





ninguém sabe exatamente o que sou – às vezes sou uma coisa sem pés nem cabeça. outras vezes. tenho uma cabeça que não me leva a lado nenhum. e nos dias em que a cabeça sabe para onde ir. faltam-me os pés. por isso fico onde estou – quando me aborreço de ser uma coisa sem pés. nem cabeça. sou o que encontro à mão: sorrio. canto. danço. leio os astros. deito cartas do tarot. faço serenatas à lua e. nas noites de lua cheia. uivo e suplico aos morcegos para me purgarem o sangue do sofrimento – gostava de ser um transmorfo e. quem sabe. transformar-me numa dessas criaturas que não tem alma e se alimentam dos espíritos desassossegados. mas não sou coisa nenhuma para além de não saber o que sou – talvez por isso. por não me transformar em coisa nenhuma. os “outros” entendem que sabem tudo do que sou – que palermice – esquecessem-se eles do que são e. sem se aperceberem. transformam-se no que não é bom – desses “outros” nada sei.  às vezes acredito que são como são porque. infelizmente. nada podem fazer para não serem assim como são. mas confesso. não são como eu gostaria que fossem – reconheço que não sei nada de ninguém. houve tempos em que também acredita que sabia quase tudo do mundo e dos “outros”. agora. com o tempo a esgotar-se. percebo que quanto mais envelheço menos sei do mundo. dos “outros” e também de mim – não sei nada de nada e mesmo que pudesse saber não queria. perceber o pouco que sei de mim já é coisa séria e complicada – sou um ignorante ingénuo. um analfabeto que sabe ler e escrever e que. com o tempo a gastar os minutos. atrás de minutos. reconheço. agora. que apenas o que faço com o meu destino me preocupa – todos temos uma missão a cumprir nesta passagem efémera pela vida. tristemente e quase em agonia. eu ainda procuro a minha – quando os “outros” creem que sou o que não sou. olho para o céu. abano a cabeça. rezo um anjo da guarda. invoco os meus santos protetores. são três: o velho s. judas tadeu que controla tudo que são causas difíceis; stª bárbara porque sempre tive medo das trovoadas; e stº estevão que em miúdo fez o milagre de me tirar uma dor de dentes e. porque quero muito acreditar nesta fé invisível. a troco de umas quantas orações. suplico-lhes que me aligeirem a carga dessa gente que me pesa – mas quando essa malta me aborrece mesmo muito. e não quero maçar os meus benfeitores. saco da flauta mágica e disfarço-me de hamelin. e tudo que rasteja levo para desaparecer e o que é exasperação deixa de ser – estou demasiadamente ocupado com esta nova certeza de que estou mesmo a envelhecer.  não posso. não quero e nem necessito de me aborrecer com o que não me pertence – de seguida invoco o destino e renovo-lhe a minha lealdade ao caminho traçado: sou o que sou e assim será até ao seu final – por mais volta que deem à balança ela tombará sempre para o meu lado. tranquilamente e em serenidade – no entanto. nem sempre estou no mesmo lado do equilíbrio. às vezes estou do lado da razão. outras da emoção. mas na maior parte das vezes. estou no outro lado de mim. no escuro. no silêncio. onde o medo acontece e os pecados se espiam – só eu sei onde centro a coerência. sendo eu um homem com valores renascentista recordo leonardo da vinci num dos seus muitos pensamentos: “é preciso deixar a sua marca na história. fosse em que campo da existência fosse” – é neste caminho. que é só meu. que tudo faço para me tornar mais indulgente. tolerante e condescendente com o que os “outros” pensam que sabem de mim – continuo a ser como sou. continuo à procura do melhor em mim e para mim. contínuo à procura de fazer o que ainda não consegui fazer. encontrar a minha marca para a minha história. para o meu bem-estar. que bem pode não ser o vosso – termino com duas anotações de leonardo da vinci


“Posso sorrir, e matar enquanto sorrio,
E proclamar-me feliz com o que me aflige o coração,
Molhar as minhas faces com lágrimas fingidas
E acomodar a minha cara a todas as ocasiões...
Posso acrescentar cores ao camaleão,
Mudar de forma mais depressa que Proteu
E mandar para a escola o sanguinário Maquiavel!”

                              //

“Vede aqueles que podem ser chamados
Simples condutores de comida,
Produtores de estrume, enchedores de latrinas,
Pois deles nada mais se vê no mundo
Nem qualquer virtude se observa no seu trabalho,
Nada deles restando além de latrinas cheias”





27/11/2019

chegará o dia









chegará o dia em que direi:
que se foda a respiração
e todo este corpo
que mais não é
do que carne alimentada por dois pulmões
que respira mortalidade
ou vida estúpida
ou fuga à morte
ou outra coisa qualquer
que nos mantém ligados às ruas
aos sinais de trânsito
aos mercados com as suas vendedoras
às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade
como se um mar se guardasse num charco
e ao pequeno almoço que é quando começa o dia
e o corpo curvasse ao café expresso com fé
que a sua cafeína seja a força motriz
para levantar voo até saturno
mas se não houver espaço
estrelas ou cometas
que as borras do café se transformem em raiva
para levantar o mundo
que tenho dentro de mim





20/11/2019

eu. os peixes e o cloro











em dezembro de 2010 resolvi trazer para casa um aquário e cinco peixes miscigenados na raça e na cor – instalei a caixa de vidro num local aconchegado e protegido das correntes de ar. forrei o fundo com joguinhas brancas. encalhei uma nau naufragada do tempo do vasco da gama. plantei umas algas verdes fofinhas para que os guelras pudessem jogar ao esconde esconde. encrostei uma ânfora que borbulha bolhinhas de oxigénio e. mais uns quantos bisegres para que o fundo da caixa reproduzisse. dentro das inúmeras limitações. o fundo do oceano – depois de tudo devidamente preparado e ornamentado inundei a caixa de vidro com água da companhia – delicadamente. abri a saca de plástico transparente. que me permitiu transportar os guelras da loja até casa e. um a um. com delicadeza. operei o transbordo para o meu oceano pacífico privado – e ali fiquei a apreciar os meus novos animais de estimação. quer dizer. os meus novos guelras de estimação e. rapidamente percebi. de que os peixes e as crianças têm uma característica em comum. só precisam de liberdade para serem felizes – ali estava eu parado. também imerso em prazer. a degustar o meu novo e excêntrico “affair” hídrico. suplementado com uma convicção firme de que tinha acertado no escolhimento dos novos inquilinos para o meu exótico aquário – os guelras estavam felizes e confiantes no seu novo habitat. estavam enérgicos. corriam como loucos. davam piruetas com curvas e contracurvas. faziam bolhinhas pela boca e as barbatanas não paravam de bater. mais parecia o voo das andorinhas a anunciar a primavera. tal era a velocidade e alegria com que se moviam de um lado para o outro – estávamos todos felizes. eu. os peixes e o max. que ao meu lado. intrigado com a singularidade dos feitios e cores dos novos amigos. não parava de abanar a cauda – estava tudo a correr dentro da normalidade perspetivada pela vendedora. especialista em animais de todas as espécies. quando me apercebi que algo estranho estava a acontecer. os guelras estavam tremulosos e. os olhos esbugalhados não paravam de piscar – esta altercação não estava prevista no manual de boas práticas de manuseamento e bem-estar de peixes ornamentais – entrei em pânico. não sabia nada da anatomia de peixes. em toda a minha vida só com cães tinha partilhado afetos. não fazia a menor ideia de como se tratava um peixe e muito menos avaliar a gravidade dos seus sintomas – será que estavam todos a ter um AVC por intoxicação da água? ou seriam apenas pequenos espasmos nervosos de adaptação ao seu novo lar? o que me desassossega. é que para o bem e para o mal. sou eu o único responsável pelo seu bem-estar – estamos numa época em que não se pode facilitar com os cuidados aos animais. ainda me culpam de maus tratos e quem sabe. acabo em tribunal acusado de negligência – e pior. estou sujeito a que a qualquer momento me toque a campainha e me apareça à porta a CMTV acompanhada pelo PAN [partida das pessoas. dos animais e da natureza]– comecei à procura do que poderia estar a causar aquele pisca pisca e pensei: será que os peixes estão nauseados com o cloro da água da companhia? é bem possível. a água ultimamente não tem andado grande coisa – se fossem humanos. percebíamos com facilidade se o problema recaía sobre a má qualidade da água. reviravam os olhos. esfregavam-nos e logo concluíamos que a maleita passaria com umas gotas oftalmológicas – mas a verdade é que os guelras não tem mãos e as barbatanas são curtas. creio que nem esticadas chegam aos olhos. que chatice. nem uma comichãozinha podem ter – deus lá teve as suas razões para que na sua infinitude sabedoria não lhes desse mãos – mas a verdade. é que se lhes tivesse implantado umas mãozinhas. tinha-me aligeirado a resolução do problema. misturava na água umas gotinhas para a conjuntivite e logo via se o pisca pisca diminuía – vá-se lá entender deus e os peixes – mas o melhor é meter a viola ao saco e calar-me. não vá o todo o poderoso aborrecer-se com este meu palavreado e ainda lhes desarranja os intestinos – já deveria saber há muito que os desígnios de deus são insondáveis e nunca questionáveis – começo a ficar preocupado. sinto que o pisca pisca está mais intenso e também os sinto mais paraditos – pudessem ao menos chorar para eu perceber a gravidade do piscar do olhos – mas como se veria uma lágrima no meio de um oceano? os peixes são uma dor de cabeça – pensando bem. talvez nesta coisa das lágrimas a minha preocupação seja uma tolice. os peixes não choram não por não terem lágrimas. mas porque não tem sentimentos – a verdade é que também conheço muitos humanos assim. sem lágrimas e sem sentimentos e não vivem no meio do oceano – quem sabe se deus quando criou o mundo animal tenha concebido os peixes propositadamente assim. diferentes de todos os outros animais – talvez quisesse um animal que não fosse bem animal. distinto de tudo o que tinha criado até ao momento. distante dos homens. escamado. com guelras para sobreviver escondido na água. frio. sem sorrisos. com mau feitio e indiferente a tudo que existe fora do mundo aquático – e por mais tentativas do homem para influenciar o seu modo de viver. domesticar. ou até mantê-los em cativeiro. a resposta seria sempre um desapego silencioso por tudo o que o rodeia. sem emoções. sem latidos ou abanares da cauda. sem rosnar. sem miar. sem asas e sem sonhos – tudo o que este animal marítimo traz ao mundo dos humanos é um alheamento sincronizado do movimento das barbatanas com o abrir e fechar das guelras. abana o rabo e pisca os olhos para assinalar a marcha pela profundeza dos oceanos – deus substituiu-lhes então as mãos por guelras para que não pudessem abraçar. de seguida. tirou-lhe a voz para que não pudessem dizer: gosto de ti e ainda insatisfeito. trocou os pulmões por guelras para que não pudessem arfar quando se apaixonassem – por fim. meteu-os nos oceanos e mandou-os multiplicarem-se. dizendo-lhes: vocês serão o maior desafio para a humanidade – os homens nunca compreenderão a vossa indiferença. nem tão pouco aceitarão a forma como vos amais – e assim se fez a vida dos peixes desde a criação do mundo até à compra do meu aquário – a vida dos animais com guelras é realmente muito complicada e insípida – foi quando pensei como a criação do homem foi especial. como é bom dizer a alguém gosto de ti. abraçar e sentir o calor da retribuição. o carinho de um abraço. um sorriso. uma palavra ou uma lágrima – deus fez um grande trabalho – enquanto me inebriava com as correrias dos guelras. sentado a meu lado o meu cão seguia atentamente as acrobacias dos seus novos camaradas com espanto. percebi no seu olhar que estava feliz. não sei se por achar que teria ganho mais cinco companheiros. ou apenas porque estava solidário com a minha alegria – a vida só tem sentido quando não desistimos dos afetos. mesmo quando esses afetos são difíceis de alcançar. como com os peixes – encostei a minha cara ao aquário e com um sorriso de quem gosta de fazer novos amigos apresentei-me: sou o sampaio. muito gosto. sou o vosso encarregado de bem-estar. espero que se sintam confortáveis na vossa casa. que também é a minha – fiquei à espera de uma resposta emocional. um olá. uma cambalhota com um mortal à retaguarda. um borrifo de água. mas nada – foi quando fui levemente surpreendido. depois da apresentação fiquei com a ideia de que já não piscavam os olhos e. estava para jurar. que até sorriam – fiquei em paz e resolvi não mais questionar ou mudar o que deus fez – olhei novamente e decidi batizá-los. escrevi o texto: aquário

sampaio rego 20 de novembro de 2019

aquário
os meus olhos encheram-se de peixes – eugénio. amarelo. explícito na sensibilidade – camões. nos olhos a sua marca – excêntrico. chama-se dali. são cores – torga. veste-se de negro. talvez saiba da morte – pessoa. sempre ele. um vira casacas. à noite caeiro – eu sou aquário de ascendente [hoje]. mas só depois de carneiro

sampaio rego 20 de dezembro de 2010



11/11/2019

serei o quê?










um dia serei o quê?
um abraço
uma voz
um amigo
um inimigo
um viajante
um bobo
um escritor
um poema
um caminho
uma forma de andar

um dia serei o quê nesses vossos olhos?
um sopro
um lenço de mão
uma palavra
um beijo
uma forma de rir
uma lágrima.
uma fotografia
um momento
um sol
um dia que se cruzou numa rua

um dia serei o quê nessa vossa boca?
uma oração
um pecador
um sedutor
uma flor
um gesto
uma fé
um sorriso
um teimoso
um sonhador
um carro de velocidade


um dia serei o quê nessa vossa recordação?
um arrependimento
um azar
um desastre
um amor
uma paixão
um pai encantado
um filho extremado
um marido apaixonado
um avô história
uma saudade que não passa

um dia serei o quê?
serei o quê nessa vossa vida?
serei para vós o mesmo quando o inferno me pungir a alma?
serei para vós o mesmo quando o céu me postular não o que vós pensais. mas o que as mãos carregam?
serei adeus ou serei goodbye
serei lágrima ou serei silêncio
serei saudade ou serei vai com deus
serei cerimónia fúnebre ou serei cerimónia de conciliação
tudo o que sou será pertença de um único dia: o dia do juízo final
e então… nesse dia estúpido
serei o quê nesses vossos olhos?
serei o quê nessa vossa boca?
serei o quê nessa vossa memória?
alguma coisa sei que serei
porque ser nada
seria castigo que não mereço