.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/07/2011

cadáver





lucian freud





quando escrevo fico assim: sem alma. sem sorriso. sem olhar. sem saliva. só tenho ouvidos para  johann sebastian bach [orchestral suite no. 3]. a música antecipa a morte das palavras – sei que palavras morrem quando as separo do corpo que as guarda – escrevo como andorinhas fazem ninhos. uma palhinha daqui. uma folhinha dali. uma gotinha. um pedacinho de chuvinha. uma varanda protegida do vento norte e por fim o verão a dizer que tudo terminará com o outono – partem como palavras ao encontro de calor. de tempo. que se repete num outro lugar. uma outra varanda. um novo abrigo – a mesma forma de voar – na terra o mesmo jornaleiro. cava-a sem saber se planta uma semente ou a morte – encontrar palavras é dor – descobrir a palavra que é mais palavra deixa a boca sem ar. os dedos envelhecem. suspiram. suam. gritam. pedem clemência [não sou escritor]. agonizam. vomitam. depois caem as unhas. de seguida o cabelo. os olhos. a carne  e por fim surge um esqueleto que não conheço – sou eu nu. complemente nu e vocês a verem tudo em mim – eu sou como palavras mortas –



25/07/2011

a doença mental e a cura pela palavra





                                                    a extração da pedra da loucura
                                                              hieronymus bosch




arte. arte de escrever. arte. arte. arte. arte. arte. arte. arte. arte. arte. arte. arte. arte – com a minha arte de escrever quero dizer: estou esgotado da arte que não é feita por homens que comigo partilham todas as palavras. estou farto. [ilustre casa de ramires] – a minha arte só necessita de papel – escrever afinal é dizer coisas. coisas que encontro dentro do corpo e que. na maior parte das vezes. em pânico. deixo cair no papel – confesso que não me pertence esta vontade de escrever – escrever é uma purgação. forma de evitar o suicídio coletivo dos dedos. dos ouvidos. dos olhos. dos aromas e até a boca. possuída por uma alma errante perdida no caminho que a levaria ao eterno descanso. fala sem que ninguém a entenda – escrever é um estado maníaco-depressivo. sobrevive-me. dá sentido às palavras esquizofrénicas de um corpo são em mente louca – escrevo para me salvar – então parto como os cruzados no passado. também eu quero conquistar o paraíso; sei pela pouca lucidez que me resta que nunca terei setenta e duas virgens à espera no fim do texto - escrevo porque preciso de escrever. estou doente. diariamente injeto uma dose de palavras independentes do que há dentro de mim [da revolta. da amargura. da dor. da vontade] – escrevo sempre palavras livres. emancipadas e com tal vontade de queimar para sempre o papel que as guarda. ideias ácidas – mas a cabeça não está igual. esburacada. desfigurada para os amigos. bonita para os corvos. que com bicadas extraem o que resta do açúcar feito ao longo do tempo – bem queria ter o saber de escrever unicamente coisas boas. mas o que sinto dentro desta cabeça é fel. e não me larga – doente. penso então nos momentos em que sou capaz de dizer: não escrevas mais – mas não adianta. esta deformação cresce. não sei se algum dia será perigosa. talvez me espere um colete de forças e um par de paredes brancas com seringas penduradas no teto a baloiçar entre o cai e não cai. e a intuição é um homem vestido de branco a dizer: está na hora de tomar este acordo ortográfico. tome tudo de uma golada. ou sou obrigado a cortar o fio de uma destas seringas. e então nunca mais reconhecerá as letras. nem a vida. nem os amigos. nem aquela esperança de morrer voltado para o mar a olhar a sua gaivota cinzenta a cortar o vento norte definitivamente – sou louco por palavras que não significam nada para ninguém. são tantas que nem eu já as distingo. talvez por estar doente não quero parar de escrever textos que nunca acabam – quanto maior forem menos gente sabe que escrevo. e menos gente sabe que por detrás desta doença está o pior que há no homem: o egoísmo – sou egoísta. interesseiro. escrevo por mim. escrevo para ser feliz. escrevo para me sentir longe de todos aqueles que um dia passaram por mim e me disseram: bom dia. [qual bom dia. eu não quero um bom dia – quero raiva para poder dizer tudo que me faz falta. quero raiva para sobreviver ao pesadelo de uma morte que se repete dentro de mim. do funeral. das palavras da sagrada escritura. da cremação e das cinzas lançadas ao mar no meio de gargalhadas daqueles que. sem me lerem. foram capazes de saber que eu sempre fui louco por dizer coisas sem interesse para os que. de cabeça sã. sempre souberam apanhar o momento certo para o lugar certo – escrevo. não como vosso escravo nem como vosso dono. escrevo porque estou deserto e sempre que estou deserto sou feliz. não há nada para pensar nos desertos – todos aqueles que gostam de escrever sabem que só no deserto se é feliz. não há palavras. não há ideias. nem pessoas para me dizer: olha com atenção. ao fundo há um lugar certo que te espera e de lá poderás partir para onde quiseres] – chegou o homem de branco. e não traz pastilhas. talvez hoje eu esteja lúcido e as palavras não morram de loucura –



23/07/2011

depois de ver josé e pilar









tal como saramago não tenho medo da morte - tenho medo do que deixo amarrado à vida. do que não disse nas folhas que comigo partem em branco - tal como ele. quero ainda tempo. vida - quero aprender a dizer o que não sei escrever ou escrever o que não sei dizer -




* josé e pilar - os dias de josé saramago e pilar del rio
     
     - filme de: josé gonçalves mendes



18/07/2011

há vida dentro de nomes





                                                          foto do euleuterio ramos




tenho vontade de matar complementos indirectos. atrapalham o andar pelo tamanho que ocupam – no bolso uma vida agarrada a palavras que nunca usei – há palavras que não servem para nada. nem como pedras que se arremessam – o embaraço é o de não saber desenvencilhar-me dos complementos que me entulham os bolsos. sem utilidade. nunca encontram a preposição: a ou ao. ficam sempre no eu – a vida não pára  – mascarados de probabilidade tornam-se complemento directo relevante. influenciam a forma como equilibro a serenidade do que antevejo. do que me faz sentir – fico aborrecido. impertinente. irritado. obrigado a fazer uso de um juízo cada vez mais escasso mas que ainda conservo e domina os impulsos irracionais – mas a vida está cheia de complementos que não complementam nada – ah! complementos que não complementam. ninguém escreve uma expressão destas num texto que quer falar de complementos indirectos que vivem sem nome para quem ouve. mas que dentro de mim gritam. como sinos que tocam quando alguém morre. até fazer sangrar os ouvidos de quem como eu conhece a dor de não ser ouvido – não tenho coragem para dizer nomes. ainda escrevo há pouco tempo e os nomes vêm de tão longe. fizeram comigo caminhadas. noitadas. gargalhadas. e houve dias que me abraçaram como se abraçam amigos. crescemos – há vida dentro dos nomes que não compreendo como imaginava compreender –  os corpos mudam de voz e eu mudei de ouvidos. é o tempo  – queria ouvir-me na boca dos outros – louco. desconhecia que surdos não reconhecem sons – muitas vezes não entendo tudo que gostava de entender. por defeito meu. não nasci para ouvir tudo de qualquer forma. há sons que não reconheço – é triste saber que nunca serei capaz de ouvir sons que todo o mundo ouve – é triste sentir as palavras chegar à boca sem força. e nos lábios. a medo. deixam-se cair como se só a morte fosse capaz de produzir o ruído certo. a ser ouvido por qualquer orelha – mas sei que a palavras não percebidas só lhes resta a morte – todas as palavras querem  som. todas as palavras querem sentido – todas as palavras querem honra – sou um estranho aos ouvidos de quem ouve – os nomes passam. param à saída dos bolsos curiosos pela quantidade de complementos indirectos ainda sem nome. debruçam-se. contam até três e partem com a pressa dos surdos – o mundo é um silêncio – impertinentes. pregam como se o que não ouvem não existisse – começo a acreditar que estes complementos talvez façam parte de mim. talvez tenham crescido com as pernas. com os bolsos das calças. talvez trocar de calças seja a solução – mas a vida está difícil – talvez a solução seja cortar-me pela cintura. deixar as pernas levar os bolsos e com eles toda a vida que juntei em volta destas palavras que não servem para nada – o tronco. os braços e cabeça descansariam então em forma de busto. cinzelado em granito preto repousariam em paz para sempre numa qualquer galeria de antiguidades perdidas. naquelas lojecas que mistura a verdade dos tempos com a mentira das imitações  – os bustos não falam e muito menos têm bolsos ou nome –



11/07/2011

para sempre mãe. para sempre










1.


sem asas. preso ao destino. conto o tempo – o cheiro a mar do lado direito. na montanha do lado esquerdo as casas caiem em cascata – nascem as primeiras luzes. por dentro das janelas o vento. são luzes de gente que faz vida a olhar o mar - tal como o meu pensamento. também ele cria imagens em cascata. viradas para um mar que na maior parte das vezes ondula num imaginário que só eu conheço – o meu mar – dentro do corpo. real. só mesmo a gaivota cinza. corta o ar. nunca pára. nem quando pego no sono. e ao ouvido não se cansa de me dizer: sampaio o mar está no olhar. sampaio o mar está sempre no olhar – é uma amiga. uma amiga de sempre. tudo faz para me ver a escrever. para me ver feliz. sabe que gosto de escrever o mar em palavras – hoje tenho um mar de bem-querer dentro do olhos. todos os oceanos são minúsculos para este mar – a noite continua a cair. e eu cada vez mais dentro de mim. fico dentro das mãos. aqui tenho tudo o que tem valor. tenho tanto dentro destas mãos. tenho os dias que me trouxeram até aqui. que é como quem diz: tenho-me a mim. tão grande como pareço ser. mas não sou. o mar que trago no olhar faz-me tão pequeno. e não pára de dizer: sampaio escreve. escreve tudo que te falta. só as palavras saberão dizer o tamanho do mar que te está nos olhos – este mar que me abraça. é o mar onde nasci – que mar bonito. nunca vi um mar assim. talvez seja pelas casas caírem em cascata. para outro mar que não fala – há uma súbita calma que me mete medo. ouvi dos homens do mar que quando há na terra um silêncio maior que o do mar manso é prenúncio de tempestade – mas hoje. este mar. estas casas que caem. este silêncio tão silêncio talvez me faça escrever. escrever palavras singulares. palavras únicas. palavras que digam o que nunca consegui dizer com os lábios. estes lábios que sempre só souberam dar beijos. beijos para dizer tudo. beijos para dizer: gosto de ti – nasci sem boca. e estas mãos que me caem contra o papel. também não foram feitas para escrever – eu repito tantas vezes: sampaio os dedos são grossos. e os lápis são sempre tão frágeis – raios partam os lápis que se partem sempre que procuro palavras que não sei dizer com a boca que não tenho – que vergonha nascer sem boca. que vergonha não ter forma de juntar palavras aos abraços e dos braços deixar escapar-me para as mãos outras palavras que acabam em abraços – quando quero falar choro e quando choro quero sempre esconder-me dentro do mar. do meu mar. do mar que guardo para morrer – sempre o meu mar. nos dias em que o sinto. em que lhe deito a mão. quebro. como quebra uma macieira quando o peso das maçãs é maior que toda a terra que a sustenta – neste dias quero morrer por ter nascido sem boca – luto. desesperado mas luto. resta-me a gaivota malhada. que nunca pára de cortar o vento com asas de penas que juntou ao longo de toda a vida – há um mar que me pertence para sempre. tenho-o agora aqui. sei que existe porque todos os dias olho para este mar e choro pela outra metade que perdi num dia sem data – neste mar há um vento quente no olhar. neste mar há um abrigo que já foi meu. este mar é meu. este mar sempre será meu. permanecerá em sossego até ao fim. e no adeus. no dia em que gritar. as casas continuarão a cair em cascata. mas as janelas estarão vestidas de luz negra. não haverá mar luz. não haverá mar nos meus olhos. este que só eu vejo. este que guarda o vento quente onde a minha gaivota malhada voa – este mar é tão bonito. este é o mar da minha vida. ai se eu tivesse o resto do mar. a outra metade que falta. talvez desaparecesse. talvez quisesse acabar para sempre. talvez morresse dos gritos – sempre que choro grito – este mar é meu e dentro dele aprendi a falar. bem sei que apenas falo com a minha gaivota malhada. só com ela falo e choro ao mesmo tempo. só com ela sei abraçar – chorar. abraçar. e quando o vento está menos afoito até sou capaz de juntar sorrisos aos abraços – somos amigos. só ela me trata pelo último nome quando me quer dizer que somos para sempre. somos eternos. nunca saberemos viver um sem o outro. só eu tenho um mar que vive em todos os oceanos. o único mar onde ela sabe voar – neste mar existe apenas o que é meu. e do que é meu só reconheço uma pedra onde me sento para descansar. é aqui que penso. é aqui que vejo a minha amiga a voar – olho o mar e as cascatas de casas continuam a cair cada vez com mais luz. há mais silêncio do que luz. sei-o – sobrevive nele o olhar. olho. é tempo de não falar. não quero assustar o silêncio. é sumptuoso. tudo à minha volta é subitamente o silêncio de quem é rico. muito rico – há dentro dos olhos uma calma que não sei explicar. só a conheço em gente rica. gente de sangue azul. gente onde o amor nunca é posto em causa pelas desgraças. nascem e morrem assim. sem discutirem silêncios – talvez este silêncio me permite ver como nunca vi. olhar como nunca olhei. escutar o que nunca quis ouvir – estou feliz. estou tão feliz que descobri que é possível doer-me este olhar. onde vejo dor. olho dor. sinto dor. e no entanto estou a cada momento mais feliz em silêncio. quero ainda mais desta dor. quero mais. quero muito mais. bem sei que esta é a dor que mata todos aqueles que escrevem. mata escritores. não há nenhuma forma de escrever esta felicidade que dói. não há tamanho para esta dor. as palavras não chegam e o sofrimento é como o amor de camões – dói sem doer – dói. dói muito. mas escrevo. escrevo porque uma gaivota teima o voo dentro dos meus ouvidos a gritar: escreve. deixa de ser cobarde. escreve. aproveita o vento. deixa as palavras partir. as palavras voam com o vento. escreve – fecho os olhos. com força. com muita força e deixo-as voar. há um vento que desconheço. alguém abriu todas as janelas de todas as casas que vivem voltadas para o mar. este vento morno não desceu do céu. é o meu mar a abraçar-me – tenho medo – tenho sempre medo do que é bom demais. nunca me achei merecedor do que é excepcionalmente bom. estou habituado a ficar contente com o que é razoavelmente bom – o mar está tão calmo. tão sereno – tenho medo. tenho medo que as palavras caiam por terra. nesta terra que existe para dias como este em que o mar ficou em silêncio para ouvir os corações bater. bater como batem os sinos das igrejas quando chamam os anjos que povoam os ventos mornos que dormem em casas voltadas para o mar –




2.
aqui estou. parado. a olhar para os anos nos olhos de quem me gosta. e gosta há tantos anos dentro deles – como é possível gostar de alguém como eu durante tanto tempo. dizem que é amor. dizem que gostam de mim por amor. e eu a olhar o mar e as casas com luzes e gente dentro que nunca vi – saio de dentro das luzes da gente e apenas fico próximo do que tenho de mais belo: o meu mar. um mar que não tem fim – olho. sei que só este mar gosta de me ver. gosta dos meus olhos assim como são: quase redondos. quase castanhos. quase transparentes. quase pêndulos num corpo que não cai. um mar que me ama mesmo quando fecho os olhos por ter medo do que sempre vejo sem querer – estes olhos são castigo de deus. nunca estão em silêncio. engolem o futuro. dobram o corpo para um tempo que ainda não chegou. tornam tudo em hoje – o mar está em silêncio. os mares sempre estão em silêncio. as bocas fechadas guardam as últimas palavras que nunca foram ditas. temos só os olhos que falam devagar para enganar o tempo. para enganar as pálpebras. para enganar todas as noites que ainda faltam. para enganar os gritos há tanto escondidos. ninguém chora de olhos abertos. ninguém chora com olhos feitos palavras que nunca o foram – ouço-me a crescer nas marés do tempo que me trouxe até ao dia de hoje – porque hoje é o dia perfeito para se ouvir tudo. até o silêncio deste mar – ouço o primeiro choro. a primeira palavra. a primeira fita. o primeiro medo. a primeira oração. a primeira reprimenda. a primeira bênção e o tempo sempre a ir e a vir com mais palavras. tal como as marés – dentro deste ir e vir o tempo: implacável. inflexível. imperturbável. inalterável. nada do que está feito pode ser refeito. nada do que está dito pode ser apagado. nada do que me trouxe aqui poderá voltar para dentro deste mar para voltar a nascer – assim sou feito de água. sal e olhos castanhos seguros ao tempo que não foi capaz de construir os corpos por onde passei. tal e qual um corsário do passado. roubo os lugares na procura de tesouros que nunca encontro e pela noite. guiado pela estrela polar. parto vazio para uma imensidão de estrelas que não conheço – cambaleio dentro de mim. o mar está ali. tudo sempre esteve ali. eu estou ali. dentro dos olhos que reluzem como reluzem todos os tesouros – olho. hoje teimo o olhar. o mar está tão calmo. tão sereno. tão particular. e eu ali completamente perdido dentro de tudo o que os olhos vêem – os olhos são agora pequenos para tanto mar. e eu ali. preso a um corpo que não pára de crescer. dentro daqueles olhos. sinto-me enorme – a noite continua a cair. e os meus olhos sempre a ver o que nunca viram. de outra forma que não sei dizer. há agora pequenas coisas para contemplar. vejo as mãos enrugadas. a descansar nas pernas. o corpo curvado teima em descobrir no chão ainda caminho para fazer. longe. e na cara redonda cruzam-se pequenos caminhos feitos pelo tempo de quem sabe que é assim que a idade embeleza a face – os olhos. ali. mesmo ao pé dos meus. redondos. transparentes. feitos de sol. deixam cair palavras como gotas de orvalho. numa manhã de primavera – nunca tinha visto olhos chorarem assim palavras que são abraços. beijos. carinhos de mãos que me apertam. sufocam e chamam: filho estou feliz. e eu agora preso para sempre a um tempo que nunca mais terá futuro. vou ficar aqui para sempre. não quero nunca mais o amanhã nem outro hoje – oh meu deus. como o mar hoje está bonito. espelham os olhos mais bonitos do mundo e na dor do tempo teima em levar para o amanhã um sorriso que não quer acabar nunca – sorrimos os dois. hoje somos um sorriso que nos abraça para sempre – estou feliz. sinto-me a crescer. cresço sempre que aquelas mãos afagam as minhas mãos. estas que guardam dentro de tudo o que tenho – sinto-me tão grande por saber guardar estas mãos dentro das minhas – já não me lembrava do dia em que pela primeira vez guardei aquelas mãos dentro de mim – há agora um outro tempo. ainda que as casas caiam em cascata e a luz seja cada vez menor. apesar de já só haver luz dentro das janelas. é noite. nascem as estrelas e a escuridão deixa de ser escuridão. também em mim a noite tornou tudo mais claro. tenho estas mãos dentro de mim e nos olhos um mar que não termina nunca num dia de abril. sou rosto. sorrio. nos olhos o peito do mundo. o meu. e o leite corre. corre por cada canto. e os olhos sempre a encontrar os olhos que me dizem: és meu. e eu sei que sou desses olhos porque os olhos riem. riem porque sou para toda a vida – num dia de abril tornei-me sou – palavra mais estúpida – sou – sou porque sou tudo para os olhos que gostam – sou. como é bom ser apenas um ser que é mais do que uma palavra. um ser que ainda não disse nada. só chorou. e já sou tanto aos olhos de quem me vê. sou para sempre – agora sei: nesse tempo apenas os olhos me viam pequeno. mentiam. e eu sempre disse que os olhos não mentem. errei. aos olhos de uma mãe mentem. sou grande. de um dia para o outro deixei de caber na barriga de onde nasci – ao meu primeiro choro cresci. ao meu primeiro gesto cresci. ao meu primeiro banho cresci. ao meu primeiro sono cresci. depois toquei a pele. cresci. o primeiro leite. o primeiro abraço. o primeiro sorriso. a primeira palavra e eu sempre a crescer. sempre a crescer. cresço sem nunca parar. cresço e sou. sou único aos olhos de quem me quer assim como sou – os corações batem. sinto-os. batem como se fossem um só. com a mesma força de viver todo o tempo que resta – preciso de ouvir este bater. toda a minha descendência precisa de ouvir este bater. este caminhar para a frente. este arrastar da vida na nossa vida –


 

3.

amarro as mãos e sinto o coração a bater e eu ali a olhar para os anos. anos de gostar. anos de orgulho. e eu apenas filho. ali. de mão dada. a equilibrar-me para não cair. como se estivesse a dar os primeiros passos em caminhos que ainda não foram feitos. só me restam os olhos – mergulho pelo tempo. o passado acontece como se tudo sobrevivesse naquele olhar – ao lado. ali sentado o meu pai sorri. só lhe faltam as palavras. está ali. tudo o que eu sabia dele está ali. o cair de ombros da idade. o braço que deixou de acenar. e até aquele sorriso que nunca desaparecia continua preso àquele bigode que é apenas uma linha branda a dividir a boca que se fechou com a dor dos olhos que falam esperança – apetece-me ficar aqui para sempre. tenho aqui tudo. até o que pensava ter perdido para sempre está novamente aqui. junto ao corpo que também envelheceu com a saudade dos abraços que deixei para trás. das palavras que desistiram de viver e já nos lábios voltaram para dentro da boca. não sabiam ainda que o tempo também se acaba – tudo acaba. agora sei que tudo acaba. e até este momento vai acabar – aperto as mãos com força. sei que um dia já aqui estive. conheço estas mãos. têm a forma de quando me agarras-te nos primeiros dias da vida – um dia acordei não as vi. estavam a trabalhar e eu sem saber parti para dentro de mim. sabia que era dentro de mim que havia um lugar onde podia falar sem ninguém me ouvir. um lugar que doía por nascer assim: sem ser nada de especial. era apenas mais um menino que falava sem querer ser ouvido. sabia que não podia dizer: sou teu filho porque fiz isto. não. não tinha nada para mostrar. não tinha nada para dizer. só tinha este sorriso que ninguém via por estar dentro do coração que escondi porque sangrava – sabes mãe. este coração está sempre a doer. não há nenhum dia em que não doa. um dia dói por ti . outro dia dói pelo pai. outro dia dói porque preciso lembrar que mesmo assim sou vosso. preciso resistir à tentação de esquecer a dor. há outros dias que dói por tu já teres netos. bisnetos. teres uma família. a nossa família mãe. os meus irmãos. os meus sobrinhos. a tua companheira da vida que está aqui connosco. e os teus filhos. nós mãe. o meu irmão e a minha irmã. nós todos. nós todos que fazemos um nome que me dói por não saber soletrar como sempre quis – perdoa-me mãe mas não sou capaz. não fui capaz de aprender o que tu aprendeste. o que tu fizeste. o que tu sempre me tentaste ensinar. nasci diferente. ando por aqui ainda sem saber como ser filho. bem sei que para ti não é importante. sempre irás encontrar uma razão para dizeres com esse olhos redondos iluminados: é meu filho e eu gosto dele assim. mas mãe há os meus filhos. e estes precisam de saber que o teu filho não soube dar à boca tudo o que tu merecias. eles precisam de saber que os avós foram a única razão para hoje terem um nome igual ao teu – prometo-te que um dia saberão dizer o teu nome e saberão sempre dizer: chamo-me assim porque os meus avós se chamavam assim e os pais dos meus avós também se chamavam assim. e só nós nos chamamos assim porque somos uma família. prometo – mas a tua carne já não resiste como antigamente. já não é igual. está cansada do tempo. está ali apenas para te proteger os ossos que já não são ossos. são raízes amarradas ao ar que respiro. e eu respiro devagar. não quero que saibas que o tempo passa a respirar. não quero que descubras que o tempo se faz das batidas do coração. quero sentir as tuas mãos dentro das minhas. quero amarrar-te para sempre dentro destas mãos que estiveram tanto tempo sozinhas. quero afagar a tua pele que é também a minha. e ver no olhar que afinal as dores que te dizem que estás a envelhecer não existem quando as mãos se amarram à vida – não desistas mãe. não expulses o tempo. ainda quero dizer-te outras coisas. coisas que ainda não aprendi a dizer. preciso de envelhecer um pouco mais. e tu também ficas mais bonita sempre que envelheces. e as palavras gostam sempre de se amarrar a gente bonita e o tempo está sempre a trazer conhecimento e talvez então aprenda a escolher as apalavras correctas. aquelas que não temem a voz. aquelas que querem uma última oportunidade para se tornarem palavras ouvidas – sinto-me diferente. olho para dentro dos teus olhos e quero ter coragem para te dizer o que sinto por ter as tuas mãos dentro das minhas. mas o coração bate tão depressa e as palavras são tão pequenas para tudo o que estou a sentir – não entendo. parece que um filho só sabe falar quando o coração deixa de bater – gosto do que sinto dentro. nunca o irei saber escrever – encosto a cabeça no teu ombro e ouço o nosso sangue a correr. corre como se dentro do corpo houvesse uma festa. agita-se. a pele treme. recebo um beijo. ouço: deixa cá ver um beijo meu filho. morro todo por dentro. caio para dentro de uma agitação de sentimentos e volto a ser quem sou. apenas um sou grande. só que agora já conheço o sorriso. e os olhos já não querem partir – encostei a cabeça. apenas uns segundos. não tive coragem de dormir com a cabeça no teu colo. tive medo de que quando acordasse não lembrasse mais as tuas mãos. ou então que alguém me acordasse a dizer que tudo não passava de um sonho – não queria dormir nunca mais. queria ficar ali até que o sol mostrasse um novo caminho para outro mundo onde não existisse dor. nem partidas. nem beijos por dar ou palavras por dizer – ainda tens tempo para me ensinares a dizer todas as palavras que mereces – foram tantos anos mãe e eu sempre imaginei que os corpos não partem. e as palavras não faltam e o tempo resiste. é tudo mentira mãe. a vida mentiu-me e aqui estou também eu a envelhecer. e nem sei o que fazer ou como dizer agora tudo o que falta. e eu desesperado – voltamos para casa de mão dada. deixei o meu coração no teu corpo a bater. o mesmo sorriso. afinal estávamos nas nuvens. voávamos junto ao céu. tu e eu juntos para sempre – esta viagem não tem fim. ficará sempre no céu. mesmo depois da terra alcançar os pés – e para sempre guardarei a tua forma de dizer: estou feliz. esta viagem nunca acabará – a forma de dizeres que ficaríamos para sempre no céu. nenhum escritor. por mais famoso que seja. será capaz de o dizer como tu disseste - - quando deus me levar. quando estiver de partida para o céu vou pensar que estou a voar. a andar de avião – eu também mãe –



04/07/2011

Eugénio de Andrade : Poema à mãe









No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.