.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

21/01/2024

tuning II e III





 


II.

as palavras deixaram de ser irreverentes. aceitam-me. e acomodam-se no lugar que lhe disponho. como se eu e elas fizéssemos parte de um banquete. e nos sentássemos à mesa. em família – quem nos lê não quer fast-food. quer um banquete de gala. requintado. luxuoso. elegante. sob holofotes. quer estar no centro de todas as atenções. quer os homens de smoking preto. sapato verniz. e camisa branca ornada com laço papillon – as senhoras de vestido justo. preto. de lantejoulas. salto alto de agulha. uma echarpe suave a tapar os ombros nus. e no colo do peito a maior esmeralda verde já alguma vez regurgitada por uma rocha – na mesa. o início da degustação gourmet. carne maturada ao tempo da arte. acompanhada por letras salteadas em perífrase. com alto teor de metáforas e hipérboles. tudo regado com um néctar de apolo – ao fim destes anos. vinte e cinco não é pouca coisa. as palavras tornaram-se divertidas. já não se mostram enfezadas. falam comigo. respeitam-me. insinuam-se. nenhuma quer ficar fora da história. tornaram-se mais tolerantes. sabem que não foi fácil artilhar o carro para chegar até aqui. mas agora. às portas de um novo genesis. querem mais. querem mais papel. querem mais conhecimento. mais arte. mais definição – eu também quero. mas o medo. essa coisa tantas vezes abstrata. essa dor que nos espreita por detrás de cada palavra… e nos magoa sem piedade – como se escrever pudesse merecer castigo – um escritor. por mais mau que seja. vive atormentado. o seu mundo está coberto de nuvens e homens maus. e ao fim da jornada. quando apagamos a luz. as palavras saem de nós para alimentar os demónios. e ali ficamos. em alerta. de espada na mão protegendo a nossa honra. evitando que alguma seja levada para o inferno – não há escritor que não tenha tido um motor partido. uma bomba de água entupida. os fusíveis queimados. e palavras atravancadas no nó da garganta – e o domar de letras petrificado. preso ao seu tártaro. ajoelhado. a pedir a são judas tadeu. o santo das causas impossíveis. que o proteja dos demónios críticos – a vida de quem escreve não é fácil. mas não mudaria uma vírgula do caminho que percorri. mesmo sabendo que não estou isento de imprecisões – mas se ficasse por aqui. se não escrevesse nem mais uma palavra. diria que já não foi mau. caminhei com o que sonhei. e a cada nascer do sol encontrei-me para ser um pouco melhor – nem tudo foi mal-acabado. eu e as palavras amparamo-nos. rimos juntos. choramos juntos. andamos por dicionários juntos. perdemo-nos juntos. viajamos juntos para lá das nuvens. às vezes até acampamos em estrelas e cometas. e as metáforas e hipérboles a nosso lado. ajudando-nos a criar ilusões. para não falar no sujeito poético que. com a mania de dizer tudo o que lhe apetece. escapa sempre às responsabilidades – foi uma viagem e tanto. bem sei que sempre exagerei com as figuras de estilo. mas que posso fazer contra isso. estavam mesmo à mão. e a mão daquele que escreve é incontrolável – ser escritor é um sacrifício medonho. só quem realmente gosta de contar histórias é capaz de sobreviver a vinte e cinco anos de anonimato – escrevi. e ainda hoje escrevo para não ficar doente. para sobreviver a este mundo terrível que sufoca a minha cabeça. e que todos os dias me atormenta com a vida de verdade. e tudo faz para que desista de procurar a cura pela estrada do papel – escrever é uma viagem alucinante. às vezes acreditamos que estamos a trabalhar para uma obra de arte. e dentro da nossa cabeça assim é. e no outro dia. despois de umas horas de sono. olhamos para o papel e interrogamo-nos: quem foi o monstro que escreveu esta trampa? e ali ficamos mortos. quase sem respirar. a perguntar se vale a pena continuar. e vamos buscar aquele bocadinho de forças para o momento em que estamos no cimo da ponte. entre o escreve. e não escreve. desiste. não desiste. e voltamos ao princípio. renascemos no caus. e mais uma vez com a esperança de que quando atingirmos o ponto final. nos sintamos geniais – e o medo instalado. a interrogar-se. será que não consigo chegar a um escritor de verdade? as palavras cada vez são mais exigentes. e às vezes não as sei entender. saber até sei. mas não consigo domá-las como desejava. é como se estivesse num fórmula 1.  com mais de mil cavalos selvagens a puxar por mim. e eu sem mãos para tanto power. para tanto cavalo bonito

 


III.

mas o que sei. e desta vez sei mesmo. será em 2024 que me tornarei pela primeira vez pai de um livro. finalmente escritor – não um livro qualquer. não. será o meu livro. o meu best seller. com a minha impressão digital. a vida escrita em papel. sem adornos. sem falsidades. sem imposturices. com honestidade emocional. intelectual também. sendo apenas eu em cada momento desse eu. às vezes no escuro. às vezes no nada. a soletrar o nome para não me perder. para não me esquecer. a lascar pedra – sem este outro eu. sei. agora. que não escreveria uma única palavra. não curaria nenhuma dor. não perdoaria nenhuma falha. não encontraria nada em mim que valesse a pena fazer existir. a mesmidade seria para mim uma doença incurável – o tempo passou. rápido creio eu. precisava de outro tanto para me tornar mais nobre. mais respeitado – veremos do que serei capaz – as palavras são sempre tão difíceis. tão desgastantes. tão rigorosas. sempre a imporem acompanhamentos diferenciados. exigentes na escolha dos ingredientes. alguns exóticos. outros raros. que desconheço. ou não sou capaz de trabalhar. – talvez queiram batata brava. e uma saladinha com todos. vinagre balsâmico e duas pedrinhas de sal a gosto – o meu livro será a gosto. a meu gosto – espero que a gosto de todos aqueles que me leem

 



15/01/2024

andam por aí





Não vou aos cemitérios porque não está lá ninguém

e ao perguntar-lhe

– Então estão onde?

o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a cara toda, explicou

– Andam por aí.

e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento

 

antónio lobo antunes


eu digo mais.

a minha cunhada zeza anda por aí

o meu sogro joão anda por aí 

o meu tio joão anda por aí

 

 

10/01/2024

tuning






 

I.

será que atingi a maturidade a escrever? será que a idade sénior me protegerá de escrever tontarias? não sei. gostava de ter uma bola de cristal. mas não tenho – a minha dúvida é que seja uma espécie de automóvel tuning. que vai sofrendo alterações. às vezes para parecer mais bonito. noutras. mais competitivo – comecei por aparelhar umas jantes mais largas. para me amarrar melhor às palavras; depois. abri um teto para mais facilmente ser ouvido quando peço perdão; não satisfeito. meti dois faróis xénon para não me voltar a enganar no caminho – medroso. alterei a suspensão para aguentar os solavancos gramaticais. e para me defender. comprei um rádio com colunas a debitar 1000 decibéis. às vezes precisamos de calar o mundo – por último. mandei apetrechar dois “bofantes” cromados para impressionar. tipo carro de corrida. mas que não corre para lado nenhum. faz barulho por ter o escape roto – lembro-me do dia em que comecei a acelerar. e fui pela vida da escrita. ganhando coragem a cada passo. a cada quilómetro feito de passos. e um dia distraí-me. e quando olhei para o conta-velocidade tinha ultrapassado os cem quilómetros horários – que loucura. vidro aberto e aquela sensação incrível do vento a misturar-me o léxico. as palavras a esvoaçar. e o cérebro em êxtase aos gritos de aflição. anunciando a todo momento a fusão de um punhado de vocábulos. o nascimento de um grande texto – o ponteiro do velocímetro a trepar incrédulo pela potência. o cabelo a imitar os braços do boneco da michelin. e os óculos ryban. a sorrirem para o retrovisor. e os lábios a sublinhar suavemente o pensamento: nada do que escrevi merece recordação. para a frente é o caminho – vivia um tempo feliz. excêntrico. acreditava que um dia deixaria de ser carro tuning e passaria a um avião de combate. um F16 – depois. passei os cento e vinte. e comecei a olhar para trás à procura da brigada. e a perguntar-me. será que algum critico literário ou apenas leitor. mandar-me-á parar? talvez um dia aconteça. é inevitável. quem anda à chuva molha-se – mas o que me preocupa não é a chuva. é se um desses entendidos me disser: -- o cavalheiro fica sem carta definitivamente. é um perigo para a arte. o melhor para si. e para todos os que gostam de ler. é confiscar-lhe o lápis. obrigá-lo rapidamente a parar de escrever – continuei a acelerar. e a escrita cada vez mais em pânico. sempre que passava por um radar sorria. ficar bem na fotografia é o desejo de todo escritor – sorrindo talvez apanhe apenas uma contraordenação primária. uma advertência. ou trinta dias de suspensão – quando escrevemos tornámo-nos vaidosos. e acreditamos piamente que um dia podemos ter uma pontinha de sorte. e quem sabe. tornarmo-nos no melhor escritor da nossa rua – palerma. estou farto de saber que a sorte dá muito trabalho – no entanto. a ingenuidade alimenta a criança que teima em viver no meu corpo adulto – continuei a acelerar. quem não gosta de andar depressa com as palavras? encosto aqui. para-choques a raspar por ali. arranhão acolá. mas sempre a teimar. pensava para mim: enquanto não capotar o caminho é para a frente – comecei de triciclo. virei de pernas para o ar centenas de vezes e nunca desisti – depois. passei para a bicicleta. e as marcas de lamber o alcatrão cravaram-se-me no corpo. mais uma vez recusei resignar – agora. que tenho quatro rodas. um travão servofreio com sensores ABS. cinto de segurança em diagonal. e airbags duplo frontal. também não vou abandonar as palavras – passaram vinte e cinco anos. as palavras estão mais maduras. eu também. já não estou tão vaidoso. e na minha simplicidade. quero acreditar que atingi a velocidade do som. claro que ainda não sou F16. muito menos um foguete capaz de me levar ao espaço. mas labutei-me muito por dentro. afinei-me para corridas trabalhosas. acredito que um dia chegarei a um paris-dakar – não sei. mas que importa. chegarei onde tiver que chegar – também aprendi a colocar o ouvido nas palavras. e agora ouço o seu trabalhar. como quando o médico coloca o estetoscópio sobre o coração. e diz: -- respire fundo – e máquina a trabalhar ao ralanti. num batimento certo. e as palavras a trabalhar dentro dele. e eu com as mãos ansiosas por mais prazer. com as palavras presas às pontas dos dedos. excitadas. os dedos também. e no cérebro hauser a tatear um noturno em dó sustenido menor de frédéric chopin. e o papel branco a desenvolver-se. a sonhar com uma história de amor correspondido. a oferecer-se ao escritor