II.
as palavras
deixaram de ser irreverentes. aceitam-me. e acomodam-se no lugar que lhe disponho.
como se eu e elas fizéssemos parte de um banquete. e nos sentássemos à mesa. em
família – quem nos lê não quer fast-food. quer um banquete de gala. requintado.
luxuoso. elegante. sob holofotes. quer estar no centro de todas as atenções. quer
os homens de smoking preto. sapato verniz. e camisa branca ornada com laço
papillon – as senhoras de vestido justo. preto. de lantejoulas. salto alto de
agulha. uma echarpe suave a tapar os ombros nus. e no colo do peito a maior
esmeralda verde já alguma vez regurgitada por uma rocha – na mesa. o início da
degustação gourmet. carne maturada ao tempo da arte. acompanhada por letras
salteadas em perífrase. com alto teor de metáforas e hipérboles. tudo regado
com um néctar de apolo – ao fim destes anos. vinte e cinco não é pouca coisa.
as palavras tornaram-se divertidas. já não se mostram enfezadas. falam comigo.
respeitam-me. insinuam-se. nenhuma quer ficar fora da história. tornaram-se
mais tolerantes. sabem que não foi fácil artilhar o carro para chegar até aqui.
mas agora. às portas de um novo genesis. querem mais. querem mais papel. querem
mais conhecimento. mais arte. mais definição – eu também quero. mas o medo.
essa coisa tantas vezes abstrata. essa dor que nos espreita por detrás de cada palavra…
e nos magoa sem piedade – como se escrever pudesse merecer castigo – um
escritor. por mais mau que seja. vive atormentado. o seu mundo está coberto de
nuvens e homens maus. e ao fim da jornada. quando apagamos a luz. as palavras saem
de nós para alimentar os demónios. e ali ficamos. em alerta. de espada na mão
protegendo a nossa honra. evitando que alguma seja levada para o inferno – não
há escritor que não tenha tido um motor partido. uma bomba de água entupida. os
fusíveis queimados. e palavras atravancadas no nó da garganta – e o domar de
letras petrificado. preso ao seu tártaro. ajoelhado. a pedir a são judas tadeu.
o santo das causas impossíveis. que o proteja dos demónios críticos – a vida de
quem escreve não é fácil. mas não mudaria uma vírgula do caminho que percorri.
mesmo sabendo que não estou isento de imprecisões – mas se ficasse por aqui. se
não escrevesse nem mais uma palavra. diria que já não foi mau. caminhei com o
que sonhei. e a cada nascer do sol encontrei-me para ser um pouco melhor – nem tudo
foi mal-acabado. eu e as palavras amparamo-nos. rimos juntos. choramos juntos.
andamos por dicionários juntos. perdemo-nos juntos. viajamos juntos para lá das
nuvens. às vezes até acampamos em estrelas e cometas. e as metáforas e
hipérboles a nosso lado. ajudando-nos a criar ilusões. para não falar no
sujeito poético que. com a mania de dizer tudo o que lhe apetece. escapa sempre
às responsabilidades – foi uma viagem e tanto. bem sei que sempre exagerei com
as figuras de estilo. mas que posso fazer contra isso. estavam mesmo à mão. e a
mão daquele que escreve é incontrolável – ser escritor é um sacrifício medonho.
só quem realmente gosta de contar histórias é capaz de sobreviver a vinte e
cinco anos de anonimato – escrevi. e ainda hoje escrevo para não ficar doente.
para sobreviver a este mundo terrível que sufoca a minha cabeça. e que todos os
dias me atormenta com a vida de verdade. e tudo faz para que desista de
procurar a cura pela estrada do papel – escrever é uma viagem alucinante. às
vezes acreditamos que estamos a trabalhar para uma obra de arte. e dentro da
nossa cabeça assim é. e no outro dia. despois de umas horas de sono. olhamos
para o papel e interrogamo-nos: quem foi o monstro que escreveu esta trampa? e
ali ficamos mortos. quase sem respirar. a perguntar se vale a pena continuar. e
vamos buscar aquele bocadinho de forças para o momento em que estamos no cimo
da ponte. entre o escreve. e não escreve. desiste. não desiste. e voltamos ao
princípio. renascemos no caus. e mais uma vez com a esperança de que quando
atingirmos o ponto final. nos sintamos geniais – e o medo instalado. a
interrogar-se. será que não consigo chegar a um escritor de verdade? as
palavras cada vez são mais exigentes. e às vezes não as sei entender. saber até
sei. mas não consigo domá-las como desejava. é como se estivesse num fórmula 1.
com mais de mil cavalos selvagens a
puxar por mim. e eu sem mãos para tanto power. para tanto cavalo bonito
III.
mas
o
que sei. e desta vez sei mesmo. será em 2024 que me tornarei pela primeira vez pai
de um livro. finalmente escritor – não um livro qualquer. não. será o meu
livro. o meu best seller. com a minha impressão digital. a vida escrita em
papel. sem adornos. sem falsidades. sem imposturices. com honestidade
emocional. intelectual também. sendo apenas eu em cada momento desse eu. às
vezes no escuro. às vezes no nada. a soletrar o nome para não me perder. para
não me esquecer. a lascar pedra – sem este outro eu. sei. agora. que não
escreveria uma única palavra. não curaria nenhuma dor. não perdoaria nenhuma
falha. não encontraria nada em mim que valesse a pena fazer existir. a
mesmidade seria para mim uma doença incurável – o tempo passou. rápido creio
eu. precisava de outro tanto para me tornar mais nobre. mais respeitado –
veremos do que serei capaz – as palavras são sempre tão difíceis. tão
desgastantes. tão rigorosas. sempre a imporem acompanhamentos diferenciados.
exigentes na escolha dos ingredientes. alguns exóticos. outros raros. que
desconheço. ou não sou capaz de trabalhar. – talvez queiram batata brava. e uma
saladinha com todos. vinagre balsâmico e duas pedrinhas de sal a gosto – o meu
livro será a gosto. a meu gosto – espero que a gosto de todos aqueles que me
leem