lucian freud
foto:
em cima de um banco de pedra a faca sangra. ao seu lado a língua jaz
reconheci a faca. usava-a sempre que não podia falar. com esta cortava a língua junto às cordas vocais. guardando-a depois no bolso da conversa de surdos – anémico pela repetição constante dos sons fónicos caía em silêncio – assassinado o ruído. entorpecia o tempo até que o sangue estancasse a morte – ali ficava. adormecido pelas ninfas da morte. ouvia os cânticos da vida dos felizes no reflexo da lâmina que polida e brilhante projectava imagens de gente que nunca cheguei a conhecer – o melhor era fingir que já não estava vivo. enganar o chamamento da morte por mais um dia. levar os sons a uma nova vida. dobrar o cabo das tormentas no fio da lâmina – as pestanas apodreceram. caíram perdidas no desejo de não ter mais surdos a meu lado – só eu sei que ainda não estou morto. só meus ouvidos morreram entre amigos – eram exclusivos estes amigos. eram meus: dizia a faca. muitos. chegados de todos os lados – sou apenas um. quase morto. sem olhos. a um pequeno nada de cegar – aninho-me. deixo o corpo entrar dentro do meu outro corpo. protejo-me – para trás ficavam as mãos amarradas à cabeça. os olhos quase mortos anunciam outras mortes à gargalhada – todos estaremos mortos. mais cedo ou mais tarde – enterrado entre o braço e antebraço a vergonha de ver o que nunca devia ter visto. apontava com o dedo indicador para dentro de mim: culpado – não havia piedade naqueles corpos. vaidosos. arrogantes. pretensiosos. presunçosos. elitistas. racistas e anormais de profissão – por fim parava o sangue com um garrote feito de coisas que ouvia. sem valor. nas veias deixava de circular tudo que era revolta. suspendia a respiração. enroscava-me na posição fetal e hibernava até a memória esquecer a existência dos pequenos nadas – ali ficava dia após dia – e a primavera chegou com palavras
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