adelino ângelo
3. a morte terapêutica
nesta
terceira
parte a minha dissertação incide objetivamente nos benefícios da aplicação da morte
terapêutica em mentes em avançado estado de instabilidade emocional –
recorremos então a algumas boas praticas já experimentadas na morte assistida e
transpomo-las para fórmula terapêutica – o que realmente torna interessante a
aplicação desta morte é a possibilidade de fazer falecer apenas o que nos magoa
– começamos por sedar a nossa existência.
aliviamos a dor. manietamos o
passado. silenciamo-lo. sitiamos a memória de longo prazo e
introduzimos na memória recente doses de elevada esperança – obviamente que
como em qualquer tratamento é necessário ter sempre em atenção as dosagens. foram muitos anos de sofrimento e o
corpo pode reagir negativamente ao excesso de esperança – a solução é a
prescrição de doses de baixo teor de felicidade. administradas sobre uma apertada vigilância – evitar recaídas é
fundamental – ao passado é-lhe finalmente oferecido uma morte controlada. boa. honrada e sem dor – claro que é necessário escolher muito bem o
que queremos realmente que faleça.
não se pode fazer falecer o coração.
nem os pulmões. nem o cérebro. nem
o que resta da vontade de viver – esta não é uma morte onde para falecer
baste um pouco de coragem e uma bala no tambor. não. não é – esta
morte. consiste em eliminar. silenciar ou simplesmente enclausurar. por um período de tempo estabelecido. uma determinada área do corpo. membro ou apenas um insignificante
sentimento – tomar a decisão de eliminar o que quer que seja num corpo
diminuído não é tarefa simples para o seu executor – não é fácil castigar um
corpo quando o que resta de motivação é praticamente nada – o momento é de
aflição para o carrasco – quando o corpo está doente a dor torna-se numa força
incontrolável. os sentimentos
desaparecem e automutilação toma posse do centro de comando cerebral – o
pensamento está refém do desespero – selecionamos então um alvo no corpo que
acreditamos estar possuído de um mal sem solução. desligamo-lo do suporte de vida libertando-o da teimosia de viver
em agonia – aos poucos a memória de longo prazo começa a desprender-se das
rotinas abandonando o corpo numa marcha de silêncio e paz – o silêncio. agora fúnebre. acompanha a saída das reminiscências numa viagem de aceitação. de perdão. sem castigo. sem remorso. sem medo que no dia seguinte o
passado ressuscite num dedo apontado à covardia – entramos então em modo
segurança extrema. sobreviver é a
palavra de ordem – personalizamos o nosso próprio plano de recuperação e com a
ajuda da esperança aplicamos o tratamento final da morte terapêutica – cortamos
a mão que escreve. substituímos uma
perna de carne e osso por uma de pau.
sacrificamos a ambição. matamos um
pouco da ternura. escondemos a
paixão e doseamos para o máximo o caudal da amargura. ameaçamos o sorriso com uma faca de dois gumes e garantimos uma
atenção especial ao corpo se este voltar a acreditar que ainda é possível refazer
a vida – aproxima-se o momento das decisões.
é fundamental eliminar o acessório e assim.
permitir que a vontade de viver se projete num novo espaço temporal – eisntein dizia que “o tempo não é aquilo que parece. Não corre em uma única direção, e o futuro existe simultaneamente com
o passado” – se o tempo não corre numa única direção então não há razão para ficarmos
presos ao passado – para grandes males.
grandes remédios. a solução passa
por aplicar a estratégia de terra queimada.
exterminar tudo que possa ser útil ao inimigo – um género de contrafogos que
mais não é do que uma “contra-morte” – se o que arde não volta a arder também o
que morre não volta a morrer – ficamos mais doentes quando olhamos mais para o
passado do que para o caminho que ainda temos a percorrer – a angústia apenas
consegue sobreviver se mantiver acorrentado a si o desanimo. a ansiedade e o medo – sobreviver é uma luta diária. um inferno. uma descarga elétrica contínua que nos amarra em cada dia do ano. não há férias. não há aniversários.
não há natal. não há desculpa para
nada. o que existe é apenas os dias
marcados a negro no calendário – um
corpo depressivo não vive. sobrevive
– o oposto da depressão não é a felicidade.
é a vontade de querer viver. a força. a determinação. a procura da liberdade – nenhum homem é livre quando a dor lhe
confisca todos os pensamentos – ninguém pode desvalorizar o silêncio de um
homem tomado pela dor. o seu
sofrimento é a sua impressão digital – este penar não se torna infernal apenas
porque desacertadamente. ou não. optamos pelo caminho errado. recusamos ajuda médica ou dizemos não
aos ansiolíticos – a dor nasce escondida no corpo. depois. depois começa
a gatinhar. de seguida aprende a caminhar. em bicos de pés. com a graciosidade de uma bailarina. e o corpo gargalha com a subtileza com que vai amargando. o que era em bicos de pés são agora
passos delicados. a fazer estrada
desconhecida. lentamente. tão lentamente que o corpo se vai alterando. adaptando. moldando. até que
chega um dia. sem que tenha dado
conta. cada passo é um compasso
entre caminhar ou apear – a dor já não engana. multiplicou-se em amargura. em angústia. em revolta. em intolerância. arrestando o corpo num desequilíbrio irracional. doentio. falso. e por fim. como todos os impostores. promete-lhe um precipício libertador –
o que cresceu como uma anormalidade dolorosa é agora uma normalidade consentida. aceite e autorizada a viver numa vergonha
silenciosa – a dor já não é estranha. é intima. próxima. carne da sua
carne. como se o tivesse acompanhado
desde o útero de sua mãe – a manifestação externa do sofrimento só se torna
audível ao fim de muitos e muitos anos de conflitualidade interpessoal – se por
um lado todo o corpo dói. por outro. estas dores são a razão da sua
teimosia em continuar com a vida – tudo que ocorre no nosso mundo solitário é
feito de sofrimento. de
interrogações. de dúvidas e de uma
cabeça que não sabe descansar para tornar mais fácil o que quase sempre parece
impossível – tudo acontece ao mesmo tempo e à mesma hora. o cérebro ora implode.
ora explode e uma e outra parte sem entendimento. sem tréguas – o descanso não existe para quem faz do seu dia a
dia um combate com as interrogações – acreditar que tudo tem uma razão para
acontecer é a resistir. encontrar
essa razão a causa de todos os problemas – infelizmente nem tudo tem uma razão. nem tudo pode ser explicado – claro
que ainda haveria sempre o recurso a um charro terapêutico. umas quantas passas distribuídas pelos períodos mais críticos do
dia como forma de aliviar as dores ou estimular o funcionamento dos órgãos
sensoriais para novas formas de luta – mas não. esta maleita dolorosa está muito para além do charro. da pastilha ou de um sono mal
aparelhado por uns quantos fantasmas erráticos – não. não é assim. esta dor cresce com o pensamento e distrai-se
com o sofrimento – todo o homem nasce com o entendimento natural de valores
negativos e positivos e uns e outros lutam entre si em busca de uma pacificação
natural entre o bem e o mal. o certo
e o errado – infelizmente nem sempre esta biossíntese é adaptável às exigentes
e naturais formas de vida que nos rodeiam – um dia. o corpo diz: basta. já não há razão que me faça ver
outras razões. chegou a hora –
usamos então todo o mal armazenado para um último momento e assim devolver
definitivamente a liberdade ao corpo – o que dói na pele ou na carne é
diferente do que dói no coração – há estradas que nunca nos levarão para lado
nenhum – volto a repetir a frase do mia couto acrescentando-lhe um novo ponto
final: “cada homem é uma raça” que
respira para caminhar e sempre que caminha aumenta a estrada para mais perto do
seu fim – a estrada não se escolhe.
nasce connosco – cada homem tem a sua estrada para a morte
- a quarta parte do texto
será dedicada à morte dolosa ou fraudulenta
- *título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu
peito não cabem pássaros
Sem comentários:
Enviar um comentário