francisco sousa
tenho a
certeza de que é sábado apesar dos raios de sol me parecerem diferentes daqueles
que me abordaram há oito dias – há nestes raios de sol um calor desigual. menos envolvente. menos sedutor. mais
divergente. egoísta. em total contramão com o ideal de todos
diferentes. todos iguais – este sol
acordou num formato de apatia discriminatória. mais seletivo. só
aquece o que quer. elitista. sem equidade. sem passar cartão. diria. xenófobo – sinto o corpo a tremer.
a pele pálida. enquanto os ossos
engastalhados seguram. em
dificuldade. as mãos a pedir um novo
desafio – a vontade de escrever está cada vez mais intrincada. o sol. hoje. não aquece – os
pés rasos fogem do corpo a sete pés.
enquanto este. em esforço. não para de os importunar – já compreendi
que não adianta fugir do que o destino emparelhou – como disse. sinto o corpo diferente. assim como se me fosse desconhecido. estranho. sem nome próprio. marginal – se fosse uns sapatos diria que eram
novos. novos em folha. a estrear no mundo dos caminhantes. nas primeiras passadas. vaidosos por ostentar uns calcantes a
inaugurar caminho. acontecem os
primeiros obstáculos: duas
belíssimas bolhas nos calcanhares. vermelhas como um pôr-do-sol
escaldante. zangadas. obrigam o corpo a caminhar tombado
para o lado do desespero – o primeiro sinal de que não há caminhos sem compromisso
– tudo que é novo tem que ser aprovado pelo corpo. primeiro desconfia. rejeita. com o tempo tolera. suporta. admite com condições e
finalmente. com o tempo. adapta-se ao molde ou obriga o molde
a adaptar-se a ele – sei apenas que esta sensação de calor. de quentura. agora
mais abrasamento. talvez aconteça
para me fazer perceber que não há dois dias iguais – vivo este sábado como se
fosse o primeiro da minha vida. com
medo – com a idade vamos querendo ver morrer algumas partes do corpo de que não
gostamos. já não achamos piada ao
molde. queremos parti-lo. esborracha-lo. esmagá-lo e esconder
os cacos do mundo – é sábado. o sol
apanha-me de frente. forte. a expulsar as sombras para norte
enquanto o passado. incrédulo. não sabe como se abrigar da luz – fujo sem sair de dentro de mim – o silêncio perde-se nos raios de sol. coloco-me de lado. de perfil não existo. estou meio escondido e o outro meio é
apenas mistério – só meio corpo apanha uns quantos raios de sol – excesso de
luz faz mal à saúde. envaidecemo-nos
e deixamo-nos encandear. cegamos com os olhos abertos – tudo que é em demasia
acaba por fazer mal – não sei muito bem decifrar este calor. um calor-fogo que não é explicável. talvez transpiração. aflição. talvez premonição. talvez uma maloqueira que ultimamente não consigo tirar dos meus delírios
– estou no meu velório e não sei como dizer ao cangalheiro que me leve com
urgência para o crematório – as obséquias deixam qualquer morto à beira de um
ataque de nervos – já não há paciência para tanta merdice sentimental – em boa
verdade. o que se aproveita de estar
morto é o silêncio – apesar deste descanso eterno me confortar preocupa-me não
ver ninguém a chorar – devo ter tido
uma vida de merda – não deixo saudades a ninguém – mas também estou a ser ridículo. enquanto estive vivo nunca me
preocupei com estas coisas do choro e agora porque estou morto sinto falta – razão
tinha a minha mãe quando dizia que a velhice é ingrata. o que não fazes de novo dificilmente farás em velho – se tivesse
feito um pé-de-meia de amigos de peito teria hoje ao meu pé uns quantos em lágrimas – não fiz. agora nada feito. o
que não tem remédio. remediado está
– sou muito pateta. afinal sempre
soube que seria assim – nunca fui
capaz de fazer amigos de conveniência – não quis viver em mentira para morrer
em verdade – deveria ter deixado ordens para que me contratassem uma dúzia de carpideiras. não umas quaisquer. umas com provas dadas em velórios complicados –
evitar vergonhas à família é fundamental – talvez seja melhor assim. sempre gostei do silêncio. o homem só cresce verdadeiramente em
silêncio – mas a realidade agora é
outra. depois de morto já nada
cresce. que se dane. afinal estou morto – o melhor mesmo é
continuar neste meu choro interior. este
choro que é só meu. mereço-o. mesmo que ninguém o ouça – sou digno deste silêncio – as
pessoas entram todas esbatidas pelo velório adentro. com ar de quem sofre.
mas mal se começam a aproximar do defunto deitam os olhos ao chão. fazem o sinal da cruz e pernas para
que te quero – para algumas criaturas acredito que esta fuga não é por mal. não lidam bem com a morte e não
gostam de gente que já não respira – mas para outras alminhas a questão é
diferente. têm medo que o defunto lhes pergunte: que raio está tu aqui a fazer? e elas
a fingir que são surdas. a assobiar
para o lado enquanto percorrem os bolsos à procura de um lenço que nunca assoou
nada – mas também não consigo encontrar explicação para terem estes medos. afinal de contas o morto nunca as
tratou mal em vida não seria no velório que lhes pediria satisfações – mesmo
que me apeteça não posso chorar. não
posso mesmo. pode entrar alguém que
não me conheça bem. só os amigos me
viram chorar. não é depois de morto
que vou dar esse prazer a quem não me conhece – um homem não deve chorar em
frente a desconhecidos nem que esteja com as tripas na mão – é sábado. está sol. talvez este calor que desconheço me
tenha assolado a moleirinha. talvez
não esteja a bater bem dos carretos. talvez… talvez tanta coisa – aos sábados
costumo estar sempre mais morto do que vivo – para todos os efeitos ainda não
estou morto. estou a escrever e nenhum
morto é capaz de escrever – escrever só mesmo os moribundos
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