.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

18/09/2017

o homem só cresce em silêncio




francisco sousa



tenho a certeza de que é sábado apesar dos raios de sol me parecerem diferentes daqueles que me abordaram há oito dias – há nestes raios de sol um calor desigual. menos envolvente. menos sedutor. mais divergente. egoísta. em total contramão com o ideal de todos diferentes. todos iguais – este sol acordou num formato de apatia discriminatória. mais seletivo. só aquece o que quer. elitista. sem equidade. sem passar cartão. diria. xenófobo – sinto o corpo a tremer. a pele pálida. enquanto os ossos engastalhados seguram. em dificuldade. as mãos a pedir um novo desafio – a vontade de escrever está cada vez mais intrincada. o sol. hoje. não aquece – os pés rasos fogem do corpo a sete pés. enquanto este. em esforço. não para de os importunar – já compreendi que não adianta fugir do que o destino emparelhou – como disse. sinto o corpo diferente. assim como se me fosse desconhecido. estranho. sem nome próprio. marginal se fosse uns sapatos diria que eram novos. novos em folha. a estrear no mundo dos caminhantes. nas primeiras passadas. vaidosos por ostentar uns calcantes a inaugurar caminho. acontecem os primeiros obstáculos: duas belíssimas bolhas nos calcanhares. vermelhas como um pôr-do-sol escaldante. zangadas. obrigam o corpo a caminhar tombado para o lado do desespero – o primeiro sinal de que não há caminhos sem compromisso – tudo que é novo tem que ser aprovado pelo corpo. primeiro desconfia. rejeita. com o tempo tolera. suporta. admite com condições e finalmente. com o tempo. adapta-se ao molde ou obriga o molde a adaptar-se a ele – sei apenas que esta sensação de calor. de quentura. agora mais abrasamento. talvez aconteça para me fazer perceber que não há dois dias iguais – vivo este sábado como se fosse o primeiro da minha vida. com medo – com a idade vamos querendo ver morrer algumas partes do corpo de que não gostamos. já não achamos piada ao molde. queremos parti-lo. esborracha-lo. esmagá-lo e esconder os cacos do mundo – é sábado. o sol apanha-me de frente. forte. a expulsar as sombras para norte enquanto o passado. incrédulo. não sabe como se abrigar da luz fujo sem sair de dentro de mim o silêncio perde-se nos raios de sol. coloco-me de lado. de perfil não existo. estou meio escondido e o outro meio é apenas mistério – só meio corpo apanha uns quantos raios de sol – excesso de luz faz mal à saúde. envaidecemo-nos e deixamo-nos encandear. cegamos com os olhos abertos – tudo que é em demasia acaba por fazer mal – não sei muito bem decifrar este calor. um calor-fogo que não é explicável. talvez transpiração. aflição. talvez premonição. talvez uma maloqueira que ultimamente não consigo tirar dos meus delírios – estou no meu velório e não sei como dizer ao cangalheiro que me leve com urgência para o crematório – as obséquias deixam qualquer morto à beira de um ataque de nervos – já não há paciência para tanta merdice sentimental – em boa verdade. o que se aproveita de estar morto é o silêncio – apesar deste descanso eterno me confortar preocupa-me não ver ninguém a chorar devo ter tido uma vida de merda – não deixo saudades a ninguém – mas também estou a ser ridículo. enquanto estive vivo nunca me preocupei com estas coisas do choro e agora porque estou morto sinto falta – razão tinha a minha mãe quando dizia que a velhice é ingrata. o que não fazes de novo dificilmente farás em velho – se tivesse feito um pé-de-meia de amigos de peito teria hoje ao meu pé uns quantos em lágrimas – não fiz. agora nada feito. o que não tem remédio. remediado está – sou muito pateta. afinal sempre soube que seria assim nunca fui capaz de fazer amigos de conveniência – não quis viver em mentira para morrer em verdade – deveria ter deixado ordens para que me contratassem uma dúzia de carpideiras. não umas quaisquer.  umas com provas dadas em velórios complicados – evitar vergonhas à família é fundamental – talvez seja melhor assim. sempre gostei do silêncio. o homem só cresce verdadeiramente em silêncio mas a realidade agora é outra. depois de morto já nada cresce. que se dane. afinal estou morto – o melhor mesmo é continuar neste meu choro interior. este choro que é só meu. mereço-o. mesmo que ninguém o ouça – sou digno deste silêncio – as pessoas entram todas esbatidas pelo velório adentro. com ar de quem sofre. mas mal se começam a aproximar do defunto deitam os olhos ao chão. fazem o sinal da cruz e pernas para que te quero – para algumas criaturas acredito que esta fuga não é por mal. não lidam bem com a morte e não gostam de gente que já não respira – mas para outras alminhas a questão é diferente.  têm medo que o defunto lhes pergunte: que raio está tu aqui a fazer? e elas a fingir que são surdas. a assobiar para o lado enquanto percorrem os bolsos à procura de um lenço que nunca assoou nada – mas também não consigo encontrar explicação para terem estes medos. afinal de contas o morto nunca as tratou mal em vida não seria no velório que lhes pediria satisfações – mesmo que me apeteça não posso chorar. não posso mesmo. pode entrar alguém que não me conheça bem. só os amigos me viram chorar. não é depois de morto que vou dar esse prazer a quem não me conhece – um homem não deve chorar em frente a desconhecidos nem que esteja com as tripas na mão – é sábado. está sol. talvez este calor que desconheço me tenha assolado a moleirinha. talvez não esteja a bater bem dos carretos.  talvez… talvez tanta coisa – aos sábados costumo estar sempre mais morto do que vivo – para todos os efeitos ainda não estou morto. estou a escrever e nenhum morto é capaz de escrever – escrever só mesmo os moribundos  


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