pintura - ron muek
há
noites onde o escuro
é feito unicamente de sons – ouço o coração.
ouço o corpo a mingar. ouço vozes
com saudade e outras que não consigo esquecer – ouço o medo. ouço os pés no caduco e gargalhadas de pânico também – ouço – ouço o terror. ouço as pernas presas ao destino e os pulmões a suplicarem um último cigarro
– ouço as mãos a pedir papel. ouço o
negrume do tinteiro e ouço os dedos a bater palavras sem sentido – ouço – ouço a brisa. ouço o tempo que faz na rua e também ouço o tempo que faz dentro
de mim – ouço aflição. ouço as
montanhas a parir um rato e ouço o sino a bater quartos como se fossem horas de
partir – ouço – ouço os cantos à casa. ouço
o corpo a virar de lado para lado e ouço o que não mereço ouvir – ouço o outono. ouço os sorrisos das corujas e ouço pássaros
que não sabem que existo – ouço – ouço as marés. ouço as gaivotas no mar e também ouço gaivotas que não sabem voar
– ouço saudade. ouço fantasmas que
não conheço e ouço fantasmas que ajudei
a nascer – ouço – ouço a viagem.
ouço um futuro que não pisarei e ouço sapatos que não são meus – ouço o mundo
com estes ouvidos que me nasceram no peito e que se abrem como cravos pregados
a uma cruz que não profetiza remissão – foi condenado a ouvir os meus próprios
ouvidos – aqui estou. com o que me
resta da audição implorando aos deuses que me façam humano e me tapem os ouvidos
com a cera de ícaro – prometo que não voltarei a voar para o sol
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