enquanto a
noite teima em mirrar. a teimosia teima em desabrolhar – as estrelas abalam
delicadamente para norte. marte apaga-se. e a lua toma a china com
o seu luzente luar – e eu em hostilidades com a deusa do alvorecer. pergunto-lhe:
porque me trazes o sol se só me encontro no escuro – porque me mostras o
mundo. se quando caminho por ele me perco – e é nesta luta de sombras e
luz que me esfarrapo por encontrar uma palavra especial. para um escrito
que se quer também especial – mas. infelizmente para mim. a
perseverança confunde-se com a falta de arte. ou de dicionário – é assim
a vida de quem peneira palavras em rio seco – como não estava a ter arte nem
sucesso nesta busca doentia. fui assolado por um pensamento: porque
raio de sorte. ou coisa de uma qualquer identidade maior. é que quando
nascemos não trazemos um manual de instruções – facilitaria imenso a nossa vida
– ajudava a montar o destino: seguíamos as etapas da nossa criação em
folheto. e no final… eis: igualzinho a mais mil da linha
de montagem – sabias pela mecânica da montagem o que te estava destinado: não
serás escritor. não serás cientista. não serás condutor de
ambulâncias. não serás livreiro. nem aquele polícia de barriga e
bigode farfalhudo – serás parvo – o melhor parvo do mundo. modelo de
luxo. com alguns extras que irão fazer de ti um parvo especial. uma
edição limitada: fígado com capacidade de destilação extraforte para
whiskys velhos. gin com predominância de zimbro. margaritas coloridas.
e vodka preta e branca para prevenir o racismo – pulmão com filtro de carvão
activo. preparado para receber qualquer tipo de fumaça: cigarro
três vintes. canábis do alentejo. charutos de havana. e até
fumo de carros com o motor partido – na cabeça dois olhos que enxergam tudo a cores.
com focagem automática do rico e do pobre. do roto e do nu. da
virtude e da aldrabice. do escritor e do rabiscador. e quando não
quiser ver… fecha os olhos. e tudo fica bem – duas mãos que não
sabem escrever. nem apertar parafusos. nem moldar o gesso.
pintar. dar cartas. ou roubar carteiras. em boa verdade.
duas mãos inúteis – duas pernas prontas para fugir. para jogar à
bola. à macaca. e ao esconde. esconde. e ao corre
que a vida vai-te apanhar – seria um gajo de
outro mundo. talvez até alien. ou mesmo criação divina. com
tecnologia de ponta. coisa de anúncio de TV – bem sei que tinha que
mudar hábitos. e em vez de rezar a um deus poderoso e omnipresente.
rezava aos técnicos de software – era como se nascesses com o destino certificado.
com garantia. código de barras. e número de série – se alguma
coisa corresse mal reclamava-se à detentora dos direitos de produção. que
logo enviaria um técnico especializado para reparar o desvio no destino traçado.
e se a coisa fosse grave: sucata com o podre. e substituía-se
a máquina por um modelo mais recente e fiável – e a vida voltaria ao percurso
talhado – aurora. aurora. deusa dos dedos rosados. como lhe
chamava homero. porque me iluminas estas mãos inúteis. se é na
escuridão que as sinto – e assim estou. com voltas e mais voltas.
e a interrogação persiste: porque raio me meti por este atalho?
possivelmente. por culpa de algum fusível no lóbulo central. ou
curto-circuito nos neurónios. talvez tenham apanhado humidade.
gosto de sonhar com gaivotas. com o mar de uma forma geral – a salitra
corroeu as ligações – ou sabotagem: a parteira em vez de me dar uma
sapatada no rabo deu-me um murro nos circuitos – ando para aqui em volta das
palavras que não me levam a lado nenhum – por este andamento nem como parvo me
distingo – mas se não há livro de instruções porque raio é que a janela não me
mostra o futuro? porque raio é que plantaram à minha frente uma cordilheira que
chega ao céu – porque raio é que não tive direito a um jardim de magnólias. e
no seu meio um portal para viajar no tempo. ou um banco feito de
esperança para poder catar o verão – estou nu. com os fios descarnados.
tão nu que nem as vogais querem nada comigo: chamo-me smp rg – eu
corrijo-me. acreditem. eu corrijo-me. apago as consoantes.
antes me quero invisível. a parvo nas bocas do mundo – todo o homem
precisa de um pedaço de terra para viver. a minha terra são as palavras.
os meus sonhos as raízes. a minha força a família
p.s. – a minha irmã chama-se aurora. é também uma deusa e mais velha do que eu treze anos. e ainda esta semana lhe dizia que uma das minhas mágoas persistentes foi não ter os nossos pais mais novos. gostava de ter brincado com eles. de viver um pouco a sua juventude. de os ter mais perto de mim. menos adultos. menos responsáveis. menos preocupados – mas não lhe disse tudo. também gostava de a ter tido a ela mais nova. adolescente. menos senhora. menos aperaltada. sei lá. podíamos ter ido à discoteca. e ser eu a tomar conta dela. em vez de ser ela a tomar conta de mim – a vida é o que é. e nada pode ser alterado. só as palavras é que podem ser diferentes. é isso que faço. escrevo para tornar tudo diferente. porque em boa verdade. o que amo mesmo neste mundo. é a minha família. que para mim. começou nos nossos pais
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