I.
aqui
estou neste ano de 2021. no meio de uma pandemia. com o mundo suspenso em medo.
escondido em máscaras e morte. e eu a contar os dias para a imunidade de grupo.
para uma liberdade falsa. tão falsa como todas as pretensas razões que procuro
na rua para alimentar a alma de alegria – as ruas desertas de medo. e eu em
casa a contar as mortes pelo mundo. agora mais mil. agora mais uma cidade. e
mais um país. e a TV aterrorizada. a dizer que a covid pode chegar até pelo ar.
ou quem sabe pelo olhar. e eu escondido. fechado numa casa a cadeado. a contar
os dias com saúde. a resistir ao medo. ao fim do mundo. e a cabeça a lamentar
tanta coisa que ficou por fazer. a lembrar os amigos: quantos abraços ficaram
por dar. quantas palavras ficaram por dizer – que estupidez. gastamos o tempo a
correr e afinal tudo pode acabar de um momento para o outro – tenho saudades de
não ter medo. de tocar por tocar nas coisas. de passar a embarrar. de querer
conhecer quem nunca conheci. de falar. de tossir sem estremecer. e a boca em
rezas contínuas. em promessas a s. bentinho da porta aberta: se me livrar desta
maleita ofereço-lhe uma vela do meu tamanho e derreto-a até o último fio de luz
– assim estava eu. parado em rezas e pedidos de perdão. acabrunhado em quatro
paredes. sem que o tempo contasse para mais nada a não ser envelhecer – sentado
no meu sofá. a olhar a sala como se o mundo todo coubesse no seu interior. os
espelhos a dar conta de uma vida numa verdade crua. a desmanchar a alma. a
fazer arrependimentos como se dentro de mim houvesse uma linha de montagem. só
que em vez de balões. confeitos ou fustão. eram contrições – resisto em
lamentos: que pena não ter percebido mais cedo que esta vida são dois dias. às
vezes nem isso – a barba por fazer. o corpo mole. imolado num fato treino que
não me faz correr para lado nenhum. vou do quarto para a sala. da sala para a
minha escrivaninha. da escrivaninha para a sala. e o corredor cada vez mais
escuro e cumprido. a levar-me de um lado para o outro como se fosse o corredor
da morte. e eu à espera da injeção letal – a pandemia trouxe-me o pânico. os
arrepios e as interrogações. o medo da falência dos pulmões. o pavor de morrer
sozinho. envolto em tubos e batas brancas sem compaixão: mais um. e a TV a dar
conta da minha partida num número frio. duzentos e oitenta mortos de covid. a
mortalidade com maior incidência no minho – e a urna fechada. lacrada. enviada
com urgência para debaixo da terra. esburacada por um coveiro também cheio de
urgência. e o padre mais perto de deus do que do defunto. com a boca a correr
para fora do cemitério. a despachar os louvores de uma vida com água benta
apavorada. e a família contada pelos dedos de uma mão. sem saber se a terra
leva o que é seu. sem beijo de despedida. sem saberem se as lágrimas se ouvem naquele
silêncio-pânico – medo. muito medo. e a cabeça dia e noite a interrogar-se: de
que mal morrerei? que praga me comerá a carne? em casa. de porta fechada a sete
chaves. com as mãos mergulhadas em álcool gel. carrego poetas e escritores de
um lado para o outro numa cabeça assustada. às vezes escrevo eu. abro o word e
escondo-me em rascunhos medrosos e sem sentido. folha atrás de folha. e a
reciclagem do PC a abarrotar de inutilidades. e o medo das palavras infetadas
de terror. a viajar pela internet à velocidade da pandemia. e as curas aos
milhares: tens de comer muito alho; vitamina D mata todos os vírus. e se
juntares a C então não há mal que te chegue; no japão um velhinho com cento e
vinte anos curou-se da covid com escaldas pés e calinhos de habushu; e mais um
outro na finlândia. espeta agulhas nos pés sentado num cubo de gelo; e um
feiticeiro em áfrica esmagou os testículos de um leão num pilão.
acrescentou-lhe dois dedais de capuca. uma asa de morcego. e dança kuduro todas
as noites – que posso eu fazer em minha casa para que a maleita se distraia
comigo? nada. fecho as janelas e espreito pelas frinchas o que resta do mundo
que um dia conheci – pelo menos as casas não ruíram
música de fundo - beethoven moonlight sonata no. 14
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