[7 pedras. 7 dias da semana]
1.
perseu
era meio homem meio
deus. eu sou meio parvo meio escritor. que melhor comparsa poderia ter eu
encontrado para me caracterizar? perseu era um guerreiro-herói. cortou a cabeça
a medusa. acabando com a maldição de quem a olhasse nos olhos se transformasse
em pedra – eu não sou guerreiro. nem herói. nem nunca transformei ninguém em
pedra. mas acreditem. já arremessei palavras como se fossem pedras – mas hoje confesso-vos.
estou enojado de tanto escrever sobre calhaus. e por via desse nojo. esta saga.
7 pedras. 7 dias da semana. terá hoje o seu fim. a bem. ou no desenrasca – no
entanto. e como gosto de escrever. sei que todo o fim encerra em si um
recomeço. e não tendo ainda acabado em definitivo este embaraçado de pedras. já
fervilho pelo próximo desafio – e agora. do alto dos meus mais de vinte
aniversários a passar-me para papel. e porque toda a escrita é autobiográfica. posso
dizer-vos. continuo inconformado com o que escrevo. diria mesmo. zangado.
profundamente zangado – escrever é a minha fantasia. e também o meu maior pesadelo
– já ultrapassei mais de metade da minha esperança de vida. e a única cabeça
que cortei… foi a minha – porém. nunca devo ter feito um grande trabalho. pois sempre
que a corto. ela volta a pendurar-se no pescoço – o que me aborrece. é que volta
como se nada tivesse acontecido. como se não tivesse culpa do que me fez ver.
do que me fez fazer. e principalmente. do que me fez não fazer – “cabeça de
vadio é hospedaria do diabo” – se os homens refletissem um pouco mais sobre sabedoria
popular. a sua vereda não seria tão magoada – ao princípio. enquanto jovem e parvo.
sempre quis acreditar que todos os caminhos iam dar a roma. não é verdade.
alguns não nos levam a lado nenhum. entretém-nos para envelhecermos iludidos no
tempo – a juventude é feita de escolhas. de carreiros e avenidas. de
inconsciência. leviandade. erro. pouco cérebro. muita barriga. e também muita
imortalidade – agora. recrimino-me e interrogo-me: porque fui por ali e não por
acolá? se tivesse ido por ali talvez tivesse envelhecido devagarinho. e um
homem envelhecido com o vagar do tempo sabe sempre o melhor caminho para chegar
a roma – não tenho certeza de que se tivesse tomado outro caminho não me
tornaria num ser humano bem pior. podia ter sido um mau pai. um mau filho. um assassino
em série. um vagabundo. um viciado em drogas. um sem abrigo. um analfabeto. o
que pode ser pior do que um analfabeto? nada – enfim. podia ser qualquer coisa
bem mais trágica – bem sei que estou a dar exemplos extremos. os piores dos
piores humanos. mas eu gosto de extremos. sem eles ficaria aqui a passar letra
de um lado para o outro. a esticar palavra como quem estica fio – vivo agora
uma dúvida permanente e arreliadora: o que serei eu se nada do que sou me
parece digno de ser? existirá algo no que não sou? poderei ser um dia suficientemente
bom com tanta coisa má? quais as incertezas que fazem de mim um iluminado. ou
um louco à porta do manicómio? gostava de ter certezas. mas não tenho. talvez
por isso viva constantemente um desassossego absoluto. como direi? um
desassossego profundamente dorido. que nasce com o escuro e sobrevive com a alvorada
– agora. quando não escrevo envelheço. e peço a santa bárbara não para me
proteger das trovoadas. mas que encontre um raio que me ilumine o caminho das palavras
– e aqui estou. sentado a escrever para não envelhecer. olhando pela minha janela
o que resta do mundo. e mesmo que o céu tenha descido mais um pouco até mim. resisto
escrevendo-me – sei agora que preciso de escrever algo que sobreviva ao meu tempo.
ainda não fui capaz. mas acredito que um dia. envelhecendo um pouco mais.
ficando mais lúcido. mais sábio. acabarei por o fazer – até no delírio é
necessário acreditar – nada do que fui será futuro. mas não haverá futuro sem nada
do que fui – envelhecer é a única forma de gastar o tempo – e aqui estou. a
escrever. nesta encruzilhada. com o tempo de trás a teimar em passar para a
frente. sem vagar. sem parar. sem piedade. às vezes imoral. carrasco. a
informar com subtileza que o caminho é agora curto. e o corpo a dar de si. a
cabeça a dar de si. sem saber se sonhar é doença. ou devaneio que vem de
nascença – vivo este pavor. como se em mim nada mais pudesse acontecer de novo.
dorido. num cotejamento animalesco com o dia de amanhã. anotando as rugas como
glosas. dando pontos cruz com cada cabelo esbranquiçado. com cada noite
amedrontada. com cada interrogação que encrosto no que temo – e o medo de não
ser capaz a agigantar-se. a plantar-se nos ossos. nas articulações. nas falanges
distais. e o cérebro aos tombos. a cair sem saber para onde. e os dedos cegos a
tatear teclas. a escrever: já não serei capaz. já não sou eu. já não sou o
rapaz de dezoito anos. nem o de trinta. muito menos o de quarenta. arrasto-me.
medro para dentro. desapareço em olhos encovados num negro trágico e supremo –
escrever é um terror. que se repete numa rotação que gira em volta da falta de
tempo – que o universo me atire um cometa contra esta couraça de letras
agoniadas… e me desfaça num ponto final
2.
preciso
sobreviver ao passado.
preciso viver o presente. preciso esconder-me do tempo. preciso de evadir-me deste
corpo – tenho que sair de mim. mas se não souber ou puder. minto-me. finjo que saio.
e mesmo fingindo. e sabendo que estou fingindo. tenho que acreditar que saí. e
o que vejo e sinto. se não for real. não quero saber. é o mundo que criei e onde
escrevo – e agora. o que quero mesmo que viva neste ponto final das pedras 7.
sou eu. assim como sou. mesmo fingindo. porque para fingir eu tenho que ser
qualquer coisa. qualquer coisa que pensei. vi. ou sonhei – e por cada segundo
que vivo fingindo. ou sonhando. a minha torre de babel aproxima-se do universo –
que nada em mim se desmorone. que nenhum pranto se faça pelo que não fui
capaz. e que nenhuma estrela se apague no que de mim ficar – quando o corpo
tiver sumido ao fogo. a alma habitar o universo. e o meu eu terreno sobreviver nos vindouros. então
sei que escrevi mais do que uma palavra. mais do que uma inteligência. mais do
que um par de olhos. mais do que um livro. e mesmo não sendo tudo o que senti.
o que sofri. o que amei. saibam sobre palavra de honra. de que fui sempre mais do
que as pedras que carreguei. fui também. e em absoluto… o espaço vazio entre
elas – escrevo para continuar a viver em cada neto. em cada bisneto. em cada
coração que bata como bate o meu – uma família não nasce repentinamente. demora
quatro a cinco gerações a formar-se. a tornar-se forte. a aceitar-se tal como
é. a conhecer os seus defeitos. as suas virtudes. a sua forma de caminhar. de
gesticular. de olhar. de tocar. de dizer olá. de falar do que sente… porque o
que sente faz parte de uma viagem que ninguém sabe onde começou – não podemos
parar de sonhar. de resistir quando o corpo estiver cansado. de não
resignar quando acreditamos que estamos certos. de equilibrar a balança porque só assim se equilibra a existência.
de lutar até à exaustão. e de saber morrer como as árvores. de pé – uma família
tem obrigação de recordar os que já partiram. de os lembrar com saudade. e de
renovar diariamente os votos de lealdade ao seu nome – só assim seremos uma
família absoluta. trazemos de todos um pouco. e de todos nos fizemos assim como
somos. únicos
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