.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/11/2024

fim da estrada

 





sei que o mais certo é falecer sem que os olhos cheguem a ver o que a juventude prometeu – mas que posso fazer? nada – resisto na terra das vontades. caminho. aproveito o que sou. e talvez por ser pouco. sou grato. e por cada dia que me é oferecido. sei que deixo outro para trás. isto é: sou a cada despertar o que fiz de mim no dia anterior – ao deixar outro para trás. carrego nos ombros não apenas o que fui. mas a ressonância das escolhas que me modelam – sou a soma dos dias. uma obra inacabada que se reescreve a cada amanhecer – agora. com a vista cansada. e a distância com medição. o que sei a cada amanhecer é que o meu passado nunca se apagará. terei que aprender a viver com as suas maldades. com as interrogações que me deixou. e com os sonhos que me roubou – quando chega a noite. e as incertezas se fazem travesseiro. e o desespero pede fuga. abrigo-me em mim. encutinho-me até desaparecer. e peço ao universo proteção – e assim. translado o corpo para o mundo da esperança. onde as memórias não alcançam. e o peso da dor se dissolve na promessa de dias melhores. mesmo nas noites intermináveis – e vou. chego como fantasma. invisível até de mim. bato à porta. e perguntam-me quem é. e respondo. sou eu. o moço que resiste no mundo das vontades. preciso de abrigo. agasalho e proteção – entro por mim adentro. e sento-me em cima da verdade. enquanto a outra parte de mim. sem medo. enorme. confiante. sem precisar de correr. livre. mesmo não sendo gaivota. tranquilo. em paz. mesmo estando preso no corpo onde um dia morreremos. aponta-me para a janela do mundo.  que não é mais de que um buraco com luz. que me suga para o cosmos das comparações. renovando-me a esperança e mostrando que. mesmo na vastidão do desconhecido. há um sentido pulsando em cada átomo. convidando-me a ser mais do que um mero espectador da luz. mas parte dela – e ali fico à procura de um propósito para ser apenas o que sou. encontrando-me. partilhando o momento com a outra parte de mim. e comtemplando o que me parece ser a felicidade. e sem a alcançar. transformo-me numa história bem-aventurada. onde tudo o que necessitava. já não me faz falta – descanso a procurar-me. a descobrir-me. a perguntar-me. porque não me escondo em mim para sempre nesta paz bem-aventurada? não me posso partir a meio. desmembrar-me. separar-me do que não gosto para ficar com o que gosto. sou o que me construí. pelo sucesso. pela dor. pela solidão. pela multidão. e a janela que deveria libertar-me. tornou-se o cárcere onde os dias se arrastam iguais – talvez culpa minha. talvez pela falta de coragem para saltar para fora do que temia. talvez por não merecer. talvez o destino que me calhou – de manhã. quando acordo e sou o que sou. e o caminho se faz de interrogações e medo. lembro-me da outra parte de mim. e atiro para trás o que sou. mesmo que atrás de mim já não exista nada para trazer para a jornada. e lembro-me que é neste mundo que tive a sorte de me carregar pelo tempo. numa medição medonha que os humanos inventaram para podermos envelhecer. e apesar de todas as rotações que já dei em volta do sol. que em calções demorava uma eternidade. e agora. tudo desaparece sem dar conta. quero muito acreditar que por alguma razão sou o que sou. tem que haver algum desígnio oculto na minha caminhada – sei que estou quase a desocupar-me da matéria. espero que outro ocupe o meu lugar no mundo. se possível na minha rua. mas que seja diferente de mim. com menos interrogações. e mais tempo para aprender. com menos medo do que não sabia. com mais vontade de correr. que seja mais escritor. também não é difícil. que escolha melhor as palavras. que saiba olhar mais para a frente e menos para trás – sei que existo nas pequenas alegrias com que fui abençoado. e também sei que a esperança só findará quando deixar de acreditar que nada foi em vão – e no dia que fizer de mim um fantasma. que aconteça sem dor. que o fim da estrada não se lembre do meu nome. que adormeça calmamente. sem saudade. sem nada do que fui. porque um homem sem nada. é um homem livre – e no final. quando o silêncio me envolver. não serei mais o prisioneiro das janelas nem o errante das noites. serei gaivota: não uma fuga. mas o voo que reconcilia céu. mar e terra. e em paz abraçar tudo o que deixei para trás. e ainda assim acreditar que o universo possa me reencarnar



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