sei que o mais certo
é falecer sem que os olhos cheguem a ver o que a juventude prometeu – mas que
posso fazer? nada – resisto na terra das vontades. caminho. aproveito o que sou.
e talvez por ser pouco. sou grato. e por cada dia que me é oferecido. sei que
deixo outro para trás. isto é: sou a cada despertar o que fiz de mim no dia
anterior – ao deixar outro para trás. carrego nos ombros não apenas o que fui.
mas a ressonância das escolhas que me modelam – sou a soma dos dias. uma obra
inacabada que se reescreve a cada amanhecer – agora. com a vista cansada. e a
distância com medição. o que sei a cada amanhecer é que o meu passado nunca se
apagará. terei que aprender a viver com as suas maldades. com as interrogações
que me deixou. e com os sonhos que me roubou – quando chega a noite. e as incertezas
se fazem travesseiro. e o desespero pede fuga. abrigo-me em mim. encutinho-me
até desaparecer. e peço ao universo proteção – e assim. translado o corpo para
o mundo da esperança. onde as memórias não alcançam. e o peso da dor se
dissolve na promessa de dias melhores. mesmo nas noites intermináveis – e vou. chego
como fantasma. invisível até de mim. bato à porta. e perguntam-me quem é. e respondo.
sou eu. o moço que resiste no mundo das vontades. preciso de abrigo. agasalho e
proteção – entro por mim adentro. e sento-me em cima da verdade. enquanto a outra
parte de mim. sem medo. enorme. confiante. sem precisar de correr. livre. mesmo
não sendo gaivota. tranquilo. em paz. mesmo estando preso no corpo onde um dia
morreremos. aponta-me para a janela do mundo. que não é mais de que um buraco com luz. que me
suga para o cosmos das comparações. renovando-me a esperança e mostrando que.
mesmo na vastidão do desconhecido. há um sentido pulsando em cada átomo.
convidando-me a ser mais do que um mero espectador da luz. mas parte dela – e
ali fico à procura de um propósito para ser apenas o que sou. encontrando-me. partilhando
o momento com a outra parte de mim. e comtemplando o que me parece ser a
felicidade. e sem a alcançar. transformo-me numa história bem-aventurada. onde
tudo o que necessitava. já não me faz falta – descanso a procurar-me. a
descobrir-me. a perguntar-me. porque não me escondo em mim para sempre nesta
paz bem-aventurada? não me posso partir a meio. desmembrar-me. separar-me do
que não gosto para ficar com o que gosto. sou o que me construí. pelo sucesso.
pela dor. pela solidão. pela multidão. e a janela que deveria libertar-me.
tornou-se o cárcere onde os dias se arrastam iguais – talvez culpa minha.
talvez pela falta de coragem para saltar para fora do que temia. talvez por não
merecer. talvez o destino que me calhou – de manhã. quando acordo e sou o que sou.
e o caminho se faz de interrogações e medo. lembro-me da outra parte de mim. e
atiro para trás o que sou. mesmo que atrás de mim já não exista nada para trazer
para a jornada. e lembro-me que é neste mundo que tive a sorte de me carregar
pelo tempo. numa medição medonha que os humanos inventaram para podermos
envelhecer. e apesar de todas as rotações que já dei em volta do sol. que em
calções demorava uma eternidade. e agora. tudo desaparece sem dar conta. quero muito
acreditar que por alguma razão sou o que sou. tem que haver algum desígnio
oculto na minha caminhada – sei que estou quase a desocupar-me da matéria.
espero que outro ocupe o meu lugar no mundo. se possível na minha rua. mas que
seja diferente de mim. com menos interrogações. e mais tempo para aprender. com
menos medo do que não sabia. com mais vontade de correr. que seja mais
escritor. também não é difícil. que escolha melhor as palavras. que saiba olhar
mais para a frente e menos para trás – sei que existo nas pequenas alegrias com
que fui abençoado. e também sei que a esperança só findará quando deixar de
acreditar que nada foi em vão – e no dia que fizer de mim um fantasma. que aconteça
sem dor. que o fim da estrada não se lembre do meu nome. que adormeça
calmamente. sem saudade. sem nada do que fui. porque um homem sem nada. é um
homem livre – e no final. quando o silêncio me envolver. não serei mais o
prisioneiro das janelas nem o errante das noites. serei gaivota: não uma fuga.
mas o voo que reconcilia céu. mar e terra. e em paz abraçar tudo o que deixei
para trás. e ainda assim acreditar que o universo possa me reencarnar
Sem comentários:
Enviar um comentário