pintura - emanuele descanio
1.
o homem
um dia
percebemos que o corpo já não é portador de uma consciência una. integra e lúcida – divina ou não. esta consciência. ao longo do tempo foi obrigada a reordenar-se em fações temporais. numa existência quase sempre mutilada. imperfeita e feia – consciência é
sinónimo de homem. da sua intimidade. de honra. de bondade. de
vergonha. da sua inteligência. da perceção do que fez. do que ainda pode fazer. e da capacidade de criar novos estímulos
para se refazer do erro – por último.
e em base do que escreverei mais adiante.
a consciência permite-nos pensar na morte e decidir se a vemos como a última
fatalidade ou então. se a encaramos
como “libertação total”. como diz
mario quintana – esta verdade sobre a consciência altera todos os nossos
relógios biológicos. o que era
importante já não é. o que era para
amar fica para esquecer. o que era
coragem transfigurou-se em covardia.
e o que era para o infinito é agora para um dia destes – chegou o momento de
aplicar as rotinas de sobrevivência.
tentar equilibrar o que se desequilibrou – o corpo só subsiste no mais perfeito
equilíbrio entre a consciência do conhecimento e a consciência moral – na sua
intimidade. inviolável por tão
profunda. faz-se o homem que
trazemos ao mundo das sensações. em
doses prescritas e controladas por um ego que se alimenta do seu próprio conhecimento. numa realidade partilhada. que se decompõe entre o que se sente
e o que permitimos saber do que se está a sentir. o que nos dói. e o que
permitimos saber onde nos está a doer.
o que nos corrompeu a fé. e o que permitimos
saber de como fomos corrompidos – assim.
chegamos a um corpo mergulhado num infinito de soluções. tantas quantos pensamentos.
e o cérebro sempre a trabalhar para lhe dar uma razão para a sua existência – a
vida numa partida de poker onde quem tem a melhor mão nem sempre ganha o jogo
– neste baralho da vida ninguém fica de fora. e aqui estou eu com as cartas que escolhi. num jogo partilhado com o meu pequeno mundo. a jogar sem bluff. numa
única mão. sem rei. sem duque. sem nada que me faça acreditar que ainda devo continuar em busca
da sorte – azar. digo eu. tiveste até muita sorte. dizem outros. indiferença. para outros tantos – todos certos. todos errados. e todos
julgam guardar em si todo o conhecimento do universo. e juram que sabem exaltamento o que cada corpo sente. e outros juram que não sentem apenas porque
não querem sentir. e depois ainda há
aqueles que dizem que só se sente porque se quer sentir – tudo certo. tudo errado. e tudo articulado em consciências interpessoais incompletas – o que
é para um homem não é para mais nenhum.
cada homem é único no seu nome. como
escreve mia couto: cada homem é uma raça – dentro do corpo. num emaranhado de contradições. existimos nós. em
balanços intermináveis. em juízos
castigadores. em punições exemplares. em remorsos eternos. em arrependimentos agoniantes. em aflição desesperante. e a inteligência emocional a reparar
os excessos com ética para que a consciência moral sobreviva a mais um dia
2.
a morte
o corpo morre aos bocados. em agonia. num falecimento silencioso.
num desmembramento selvagem. é a morte
em doses que nos mata por estágios da alma:
hoje perdemos um sorriso. amanhã um
abraço. depois um amigo. e mais outro. e ainda outro. e
depois perdemos o céu. as nuvens. o destino. as gaivotas param de voar.
e tudo lentamente a caminhar para um estado terminal consentido. num silêncio tão profundo. que tranquilamente. mata de ruído a consciência afetiva –
aceita-se a resignação. aceita-se o
fim – abrimos a janela mas o vento já não é brisa. há uma acalmia necrófaga.
os abutres fabricados transmitem uma dimensão reduzida ao tempo. a morte anda no ar – aprendemos a escapar
ao medo e aos poucos. sem que o
corpo tenha compreendido. resignamo-nos
à inevitabilidade do desfecho: a morte
como libertação do pensamento – afinal nem tudo foi assim tão mau – a escuridão
engole o sol. a determinação. a coragem. a audácia e o tino deixa de resistir à nostalgia – o sol também
falece quando o corpo desiste – chega um cansaço estátua. e ali ficamos parados.
hirtos. gelados. como se a morte nos quisesse mostrar que estar morto é
imobilidade. é silêncio. é uma espiral de uma abdicação assombrada
pelo fim de um ciclo – e segundo a segundo lá vai mais um trago da vida em
aflição – no meio de quatro paredes.
o corpo aceita finalmente o seu fim numa humanidade serena – deixo de falar e o
silêncio toma o lugar de companhia.
e tudo é feito sem voz. tudo é feito
em pensamento. às vezes num
maquiavelismo revoltoso. em grito
desesperante. raivoso. assassino. sem piedade. e tudo o que
resta de mim pelo chão. a rastejar. a contar os cantos às paredes. enquanto os pulmões ardem em dióxido
de carbono – respiro fundo – as súplicas são agora deslumbramentos que se atrapalham
no cérebro em busca de uma porta de emergência – não há portas de emergência. foram-se fechando sem que o racional
desse conta – nada pode sair de dentro para fora. ninguém pode saber que se esta a desistir – e morre uma perna. e fica cada vez mais sentado e a
cadeira já não é um acessório. é urgência. uma necessidade para iludir gente sã – contraio-me.
encutinho-me. acolho-me numa posição
fetal. a cabeça nos joelhos e as
mãos num emaranhado de coisas. coisas
que o corpo estendeu ao mundo e eu sem saber como explicar a este pequeno mundo
estas coisas – aperto-me. cerro os olhos. apunhalo-me e nem uma gota de sangue. estou seco. mumificado
e sem forças para chamar por um nome que me acuda – matem-me por favor – e os
que apareciam aparecem menos. e aos
poucos acabam por falecer primeiro do que eu – finalmente só – sentar-me é tudo
o que me resta. sentado sou enorme. sentado ninguém percebe que se está a
cair. sentado não estou rente ao
chão. sentado tenho as mãos ao nível do coração. será este o último a render-se à consciência – só as cobras
rastejam pela imundice do chão – e o corpo vai-se perdendo numa aceitação cristã – perde a vista porque não
há nada para recordar. perde os braços
porque não quer ter saudade dos abraços.
perde a fala porque não quer que ninguém o ouça. perde os gestos para que ninguém saiba que ainda não morreu por
inteiro. e o que era simpatia reconhecida
é agora uma trabalheira para enganar a quem nos quer ver no passado – o coração
ora arranca. ora começa a trazer o
que não quero que seja verdade – sente-se medo. e pergunto-me se será deste modo que o corpo desaparece todo à
mesma hora – o coração continua a bater.
e o sangue bombeado a soletrar em agonia:
tens que aguentar. a consciência
ainda luta – e uma lágrima pendurada no canto do olho a brilhar com saudade de
um dia de natal. ou de um dia de
anos. ou de um abraço. ou de um amigo. ou da família. meu
deus. a família – deus se realmente existires
perdoa-me – e abafo as recordações.
as molduras. incendeio todas as
fotos coloridas. mato a cor. e o rasto
também – resiste o preto e branco – morre mais um pouco de resistência. e depois de coragem. e a esperança já foi toda. e já só resta a vergonha. e a maior parte do mundo sem entender
nada de falecimentos – ninguém morre de uma única vez – e o punhal em cima da
mesa a rasgar em facadas limpas as cartas de recomendação. uma a uma. e a vida em
sobra resumida a uma única miséria: já
acreditei. já existi – enquanto o
corpo não morre todo á mesma hora o passado não se cansa de teimar o presente –
o que resta do futuro sobrevive num punhado de abutres
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