.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

19/07/2021

alfa





soubesse eu o futuro. soubesse eu o que me espera e tudo seria mais fácil. mas não sei – sei que às vezes estou cansado. às vezes melancólico. às vezes zangado e irritado. agoniado também. e em dias que não sei precisar. como se merecesse um bónus divino. fico radiante e enérgico. é então que salto para fora de mim e corro sem saber como parar. e pergunto-me: porque não corro assim todos os dias – talvez não mereça. talvez não tenha sido feito para correrias. talvez tenha nascido já envelhecido. ou com a síndrome de hutchinson-gilford. ou quem sabe com qualquer coisa da responsabilidade dos deuses – mas agora sei que o corpo avelhentou-se. enrugou-se para dentro. mingou. só a cabeça continua parada num apeadeiro à espera da passagem do último alfa – e o corpo a gemer como se fosse um bebé acabado de nascer. a olhar para o mundo com espanto. uma gota de orvalho ali. um pedaço de sol acolá. um pauzinho de algodão doce a fazer sorrir o pai da criança. o fumo de um cigarro a girar para o infinito. a lua a ir e a vir. às vezes prenha. outras anorética. e as pessoas a passar para lá e para cá como se nunca tivessem tempo para chegar a lado nenhum – e eu a olhar para os meus sapatos negros. de luva. finíssima. e a perguntar-me porque correm as pessoas se vão descalças – se soubesse o futuro também me tinha descalçado. tinha corrido para lá mesmo que depois não soubesse o caminho de volta. tinha inventado uma casa apeadeiro e metia o alfa dentro do guarda-vestidos pendurado numa cruzeta a apitar. a anunciar fim do destino. e eu estendido numa senhorinha encarnada acertava o relógio para o dia em que nasci – quando damos conta a macieira já não dá maçãs. os pássaros de ruy belo já não nascem nas árvores. e os pecados começam a cair de podre. melosos e fedorentos. deixamos de ter raiva. cobiça. desejos pecaminosos. o esperma coalha e as pernas tremem porque tremem. deixamos de ter tudo. ficam apenas meia dúzia de palavrões agarrados a uma língua que também deixou de estar afiada. e quase já não consigo mandar tudo para o caralho mesmo que este habite no mastro mais alto de um navio fantasma – deixamos de pensar no corpo por inteiro. não queremos saber do cabelo. dos olhos. da pele. dos sapatos de luva. da camisa branca lacoste. e dos sonhos. só queremos mostrar o fígado e dizer a quem nos ouve: vejam só este fígado. está como novo. purga melhor o sangue do que há quarenta anos – depois amarramos no coração e levantámo-lo no ar para que ninguém deixe de o ver e dizemos: ama mais do que há quarenta anos e continua a bater como batem os sinos aos defuntos – queremos dizer com todo o vigor que nunca embarcamos no alfa para lado nenhum e tudo em nós está como quando aparecemos ao mundo: virgem e inocente – e enrodilhamo-nos na senhorinha a sonhar com o passado como se tudo tivesse acontecido no dia anterior. e ali ficamos. às vezes a dormir. às vezes a fingir que dormimos e os sapatos luva pendurados nos pés. cambados e rotos de não ir a lado nenhum. e as mãos enroladas no tronco a segurar o ar de um mundo cada vez mais pesado. tão pesado que promete cair a qualquer momento – e o alfa pendurado na cruzeta a apitar desesperado. a pedir misericórdia.  a pedir só mais uma viagem de ida mesmo que demore mais do que uma vida – se eu soubesse o futuro juro que tinha envelhecido mais a modinho. tinha embarcado num comboio de mercadorias e tinha ido para alfama ouvir fado. e quando o fadista calasse as guitarras deitava-me ao tejo e desaguava na amazónia. pescava piranhas. pendurava amuletos ao pescoço e gritava por socorro até que os deuses me ouvissem – depois oferecia o meu corpo aos espíritos da floresta. e em volta de uma fogueira rogava ao ser supremo do candomblé que me encarnasse numa anaconda e me deixasse rastejar pelo mundo invisível – se soubesse o futuro. se tivesse feito a sopro uma bola de cristal. quem sabe vivia lá dentro. e viajava até 3021 e juro que não dizia a ninguém que tinha mais de mil anos. calçava uns sapatos luva vermelhos. reforçados com contrafortes. sola de couro dupla e desatava a correr escondido em sorrisos. e dançava quizomba para o alfa mesmo que não soubesse o seu destino. mesmo que o fígado tivesse aziumado. mesmo que as vielas do coração rangessem de velhas. mesmo que as pernas me arrastassem para lado nenhum e as mãos se estrangulassem de dor por não saber escrever uma única palavra decente – não queria saber. nunca deveria ter querido saber e assim ainda era um inocente parado no apeadeiro à espera do alfa – mas aqui ando eu perdido a fazer contas: quantos quilómetros fiz com estas pernas? quando abraços dei com estes braços? quanto calor despendi a amar com este coração? e para todos me parece demasiado: andei até cansar. abracei até magoar. amei até chorar. e tudo somado me dá tão pouco tempo de vida – que raio de contas faço eu. de dia tudo é soma e á noite. no escuro. tudo é resto zero – é tudo fantasmagórico. invisível. e por mais que queira encontrar uma razão que me salve desta agonia das contas nada enxergo: ilumino-me com parafinae nada.  apago as luzes e tudo fica num escuro-negro. rezo. mas deus ignora-me. tudo não passa de uma mortalidade agonizante. tudo se divide numa equação simples: noite e dia. preto e branco. certo e errado. com destino e sem tino. vida ou morte. e eu preso a estas contas que deixam de ser contas quando o mortal que as faz se lembra que tem o alfa preso numa cruzeta – e um homem apruma-se. levanta o queixo. esfrega os olhos e pergunta às pratas que servem de espelho: porque me obrigas a somar se o reflexo mostra o dobro do que não sou – estou convencido de que deveria ter comprado um espelho mágico. ou a cruz de caravaca. ou uma máquina de calcular barata. chinesa – acredito que os chineses não saibam fazer contas. primeiro porque vendem tudo ao desbarato. depois porque carregam aqueles olhos em bico. como se vivessem desconfiados. a olhar as esquinas. tristes e amarrotados. quase fechados. parecidos com os meus – eu também vendi a vida por tuta-e-meia. e quando comecei ainda não tinha os olhos em bico. nem tristes. nem desconfiados. nem amarrotados. só quando fiz contas é que fiquei estrábico. fiquei quase chinês – às vezes apetece-me tirar o alfa do guarda-vestidos e deixá-lo fazer caminho. mas depois pergunto-me: deixo-o ir para onde? que garantias tenho que vai para o destino apalavrado? que se lixe. continuará preso à cruzeta e que apite. porque todos aqueles que apitam seu mal espantam – um dia prometo libertá-lo. e então. todas as contas somadas darão paz