mais um
dezassete. mais um março. mais um ano – já passaram vinte e seis anos que o
vosso avô partiu sozinho. envolto no branco do hospital. sem que ninguém pudesse
acompanhá-lo no adeus. sem que uma mão o conduzisse ao céu – ano após ano. e
sem que a saudade desvaneça.esse dia repete-se
incessantemente em mim. é uma chaga que nunca fechará – viverá enquanto eu
viver já que nenhuma absolvição serenará o meu pesar – faltou uma última
palavra em sua casa. nossa – um último beijo. nosso – e um até sempre. nosso –
tínhamos ficado em paz. nós todos
“*há sempre um grande arco ao fundo dos meus olhos... a cada passo a minha alma é outra cruz” – que posso então esperar de mim agora que o arco do tempo está a achatar e a cruz que carrego a pesar? construí-me em dúvidas. e com elas produzi medo. ausência e silêncio – será que a origem das dúvidas reside numa racionalidade que lhes é exclusiva e autônoma? será que com a idade as dúvidas tendem a tornarem-se mais complexas? será que com a idade preferimos não ter dúvidas e encontramos respostas na religião. no ateísmo. ou no universo? não sei. como não sei uma imensidão de coisas. mas acredito que com o envelhecimento precisamos cada vez mais de nos de nos conquistar definitivamente. de nos conhecermos com coerência. de nos amar incondicionalmente – envelhecemos. e começamos então a catar as dúvidas morfológicas e anatómicas. estas com prioridade. e uma a uma. com cuidados de cirurgião. dissecamo-nos. expomo-nos. libertamo-nos do medo. mostramos o que somos. nada mais do que o que somos – tal como antigamente as mães catavam piolhos nas cabeças dos seus filhos e os exterminavam unha contra unha. também eu cato as minhas dúvidas. mas não as extermino. aprisiono-as. acorrento-as ao que me sobra de lucidez. injeto-lhes aceitação. suportação. e também conformação. afinal são as minhas dúvidas. geradas e criadas em mim – nietzche dizia que devemos ter o caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante. eu já sou um caos. mas no lugar das estrelas tenho as dúvidas a dançar sobre mim – as dúvidas sufocam-me. desesperam-me. magoam-me. mas estou cada vez mais certo de que não seria o que sou sem elas. sem o seu caos. sem a sua energia interrogativa. e também sem a crueldade com que me levam à desesperação para me encontrar com o que sou hoje – só não tenho a convicção de que alguma vez levarei todas as minhas dúvidas à certeza. velejo águas sem fronteiras. aflitas. angustiadas. bem sei que sempre foi assim. e o que nasce em dúvida. tarde ou nunca será certeza – nesta forma maldosa de viver. inventada por mim para que a ausência se faça o mais tarde possível. vivo a verdade que sou a cada noite. e quando o sol range. e a mentira regressa. percebo pelo tino que me resta que nada em mim é certo. viver o que não sou é um castigo só compensado pelas dúvidas que alimentam a noite – sem dúvidas seria um monstro. um vegetal. um ser inanimado. uma pedra pendurada num penhasco à espera de uma rabanada de vento – tal como olbers. também eu quero acreditar que se a minha mente fosse estática e repetitiva. nunca teria conseguido construir-me assim como sou. talvez se me aplique o mesmo princípio do seu paradoxo – as minhas noites são escuras. frias. solitárias. imersas em dúvidas. em dor. e o corpo de um lado para o outro. da cadeira para o tártaro. da cama para o tártaro. de mim para o tártaro. e do tártaro para dentro do que não quero ser. e o corpo inchado de coisas inúteis. enorme. como se tivesse prenho de umas quantas vidas. quase todas dispensáveis. quase todas sem valor de mercado – o meu corpo é um género de tabopan. um aglomerado de dúvidas prensado pela vida que me suporta. e também pela minha parca sabedoria. cheio de incertezas e medos. sempre a procurar um fim. e elas a nascer sem ordem e saber. e eu a perguntar: porquê? são minhas por quê? talvez a resposta seja são minhas porque são. ou talvez porque me fazem expulsar o que não sou. para tentar ser o que quero ser – *“o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é” e este eu. quase invisível. e que habita dentro da ausência. medo e silêncio. não precisaria mais do que um caderno de linhas para se tornar parte das coisas reais – nestas noites embrulhadas em dúvidas e mistérios. a única companhia que suporto é o conhecimento que não tenho. o de mim também. e que me faz procurar nas incertezas o que sou. porque sou. ou o que poderia ter sido se… e mais se… e mais se… e mais se… mesmo sabendo que o se será sempre uma equação com resultado infinito e variável – mas mesmo este resultado imperfeito. está sujeito a vários tipos de contaminação: se crescermos em família ou com amigos. se estarmos sós ou acompanhados. se é noite ou dia. se temos fé ou descrença. se temos dúvidas ou certezas. se vivemos na terra ou na lua. a invisibilidade que sou. e que acredito ser genuína. é a minha impressão digital. o meu nome. a antimatéria reconhecida por todos que me rodeiam – sendo invisível não existo. resisto no meio de quem é visível – quero acreditar agora. com o meu calendário em quarto minguante. que sou o que posso ser. e nunca serei mais do que isto que escrevo. e também sei que serei muito menos para os que me leem – mas depois. obstinado. procuro soluções. e mergulho nas dúvidas. às vezes como se fossem um chá quente reconfortante. outras. fico em nada. desintegro-me molecularmente. e crio um novo paradoxo: e se a minha invisibilidade fosse de tal forma gigante. do tamanho do universo. não fosse finita. nem estática. e todo o conhecimento que sei existir em mim. sendo pouco. mais as dúvidas. sendo muitas. porque não há saber sem dúvidas. fosse uma fonte limpa de produção de energia. sendo a invisibilidade o seu combustível. reproduzida assexuadamente. sem necessidade direta da minha inteligência. sendo assim capaz de produzir os seus próprios interesses. os seus próprios desafios. os seus próprios medos. as suas dúvidas. isto é: eu. assim como sou – a minha invisibilidade é a minha força. mas **“o meu pensamento sou eu: é por isso que não consigo parar” – construí o meu universo escuro. que mais não é do que o meu quarto de pânico. e que tal como uma ventoinha eólica apenas precisa de vento para produzir a sua energia: eu preciso de invisibilidade para resistir ao que sou – e eu. invisível. que nada produzo para além de energia interrogativa. a respirar contradição dolorosa. morro para adormecer. morro para que o vento não chegue à eólica. e quando o tártaro me regurgita. acordo para viver – é esta energia. esta força invisível. que aceito como minha por ser feita do meu pensamento. que me faz nascer renovado com a luz. e morrer com o escuro. e enquanto não faleço de vez. resisto a todas dúvidas com mais dúvidas – nenhum homem. mesmo feito de nada. pode descansar se não tiver um interruptor para as suas assombrações. uma mão que se despeça da mente e nos faça falecer em calmaria. porque enquanto está falecido não quer saber se o sol nasce ou não. se o pecado existe. ou não. se a estrada é certa. ou não. se o amor por mim é verdadeiro. ou apenas a ferramenta para me manter vivo – olbers fabricou um paradoxo para o universo. eu fabriquei um paradoxo para mim: porque quero viver se é a morte que me ilumina os dias? bem. não tenho certeza. talvez porque é no conhecimento da mortalidade que encontramos clareza sobre a vida – a morte é apenas o nada imortalizado. continuar vivo é sempre uma opção. a não ser que fosse tetraplégico. ninguém nos proíbe que nos atiremos de um himalaias. ou que sufoquemos com um nó de amor. ou nos enrodilhemos num oceano. é sempre menos custoso falecer do que viver – sempre que o sol desaparece unge-me saudade. e tal como um samurai se prepara para a batalha. também eu me dobro sobre a terra que me suporta e honro os pais da minha luminosidade. e mesmo que esta honra não lhes traga glória. e não sabendo eu se a alma é eterna depois de perder o corpo. enquanto resisto às dúvidas terrenas. acredito que o nome que me deram não foi em vão – mas confesso. gostava de saber que dúvidas são estas que me levam ao nada. pois mesmo que o amor me sobre em cada pegada. e o desejo de caminhar se prenda às pernas. e o destino a soma de todos os passos. sei que sou o que vivo na terra das vontades. e que me faz ser o que sou às vezes não sendo. e mesmo que um dia me falte a estrada. mesmo que a curva seja eterna. é o meu nome que perdurará em cada pegada que inventei – descobri no escuro das minhas noites a luz que me ilumina a vida – procuro a minha verdade. o que presta e o que não presta em mim. tal como nos pede miguel torga no seu poema. quantos seremos
às vezes
sinto que já faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem
vida. e a mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma
razão para não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou
vivo – a luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que
está ao seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiadamente fragmentado
para brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por
desespero. deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo que me faz viver. e a
cada amanhecer ressuscito para tudo que me faz morrer – no escuro sinto-me
sempre tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira
para me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite –
pé ante pé. adentro para a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo.
terror e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e
morro quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes
injusta. às vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um
pequeníssimo estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é
o destino que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia.
sem mais adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos
desrespeitar. é como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de
certezas. uma oração que nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o
que era dúvida é agora uma oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e
enquanto esperamos por esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar
devagarinho para que ninguém nos ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir
porque o seu contrário é covardia. a soletrar o nosso nome baixinho. a marcar
dias no calendário para assegurar que fazemos parte do mundo sensível – é
quando tomamos o silêncio como o último amigo. tudo o que for dito no desespero
da noite pode tornar-se letal com o nascer do dia – adiamos as dúvidas. as
promessas. as orações. o vento às gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não
possa mais dizer: quero falecer – quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a
valer nada. dou como certo a chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso.
e sofro. e a dúvida é se o meu padecimento é resultado da minha essência. ou
das escolhas que realizei por vontade – não sei. como poderia saber? mas para
cada desafio diurno terei o que sempre tive. audácia e esperança. talvez por
ser insignificante. e não caber em mim mais nada – e para cada himalaias apenas
um passo para a frente. e a certeza de que dor besta só me vencerá se o cume
não alcançar – se não fosse insignificante não haveria himalaias. as montanhas
existem para pessoas como eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam
bissetrizes até ao princípio do mundo. remexem o passado para nada mudar. e no
topo da minha capela sistina. uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me
teria aceitado para seu aluno – resta-me resistir. pensar para existir. pensar
para não falecer – a minha noite está em oposição à infinitude da mente. é como
se o medo abstrato. filosófico. ou metafísico se tornasse real. como se tomasse
o corpo e o mergulhasse em ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito
próprio. me corroesse os ossos e me desfizesse em prantos – insignificantes.
bem sei – que mais poderia ser do que prantos insignificantes? creio que nada –
escondo-me na escuridão. preciso e amo as noites. à noite ninguém me vê.
ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à noite sereno-me. procuro-me. procuro
também as dúvidas. e para cada uma. mais mil a trabalharem em mim. todas
impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror. e a única certeza dentro desta
devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas. e por fim. descarnado.
desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional. apenas uma certeza: amanhã
tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou sem. com perdão ou sem. caio
definitivamente no meu abismo. e faleço por uma vontade que não pode ser
contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta que me faz falecer no escuro.
e depois. com o nascer do dia. ressuscito para poder morrer novamente – mas no
dia em que morrer de vez. quando viajar para outro espaço sem dor e medo. sei
que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma estrela no céu confiscará o meu nome.
nenhuma luz na terra alumiará a minha falta – já não tenho mais prantos. já não
tenho mais nenhum dote que me permita comprar uma vírgula para mudar a
história. terei que viver com dúvidas. e com a minha preciosa insignificância.
assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um voo para morte. é como se
me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50 anos e andasse estes anos
todos à procura de um local para cair – não se morre com o impacto. morre-se
com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física é apenas ausência e silêncio
– escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo amor. morte. felicidade.
alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para cada um deles um
palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que fez tem valor se
não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que valha mais do que um
minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor se as bocas não falarem
de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor – quando um homem falece. nada
do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu cresci envolto em nuvens – mas
o que posso fazer se desistir não for solução? mesmo que o vento me cegue o
caminho. é na vontade de desistir que me nomearei cavaleiro. e darei [comigo] o
primeiro passo para a frente. mesmo que o meu nada tema medrar. mesmo que o meu
nada peça para não sofrer. pois estou certo. que um dia. alguém me há de
explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha sozinho vai mais rápido. mas
quem caminha acompanhado. vai com certeza mais longe. clarice lispector – eu
vou com certeza chegar mais longe. caminho comigo. e com todos os eus que
carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a dar opiniões. a dizer vai por
acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali. mas que posso fazer se todos
são importantes. e de todos fiz caminho – confesso que não sei. já me habituei
a não os questionar. não quero compreendê-los. o que quero mesmo é chegar mais
longe. porque há coisas que não queremos saber. às vezes ser. e ter também. mesmo
que seja um dom divino. ou escolha do universo. o melhor mesmo é continuar
insignificante. vestir-me de louco. e viver pendurado numa janela. quem sabe um
dia ganho asas e passo a viver nas árvores. na natureza. na minha natureza –
quando um ser insignificante falece os sinos não dobram. nem choram. nem
gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde. finalmente noites sem dúvidas
– estou certo que mais tarde. ou mais cedo. aprenderei a contar os meus eus. a
catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem. eu. sampaio rego. fiel depositário.
e único herdeiro das suas vulnerabilidades. dores. desgraças e insignificâncias
– nós. queremos muito acreditar que é possível ir mais longe – e termino esta
primeira parte com um poema de agostinho da silva. in “poemas”
as palavras
deixaram de ser irreverentes. aceitam-me. e acomodam-se no lugar que lhe disponho.
como se eu e elas fizéssemos parte de um banquete. e nos sentássemos à mesa. em
família – quem nos lê não quer fast-food. quer um banquete de gala. requintado.
luxuoso. elegante. sob holofotes. quer estar no centro de todas as atenções. quer
os homens de smoking preto. sapato verniz. e camisa branca ornada com laço
papillon – as senhoras de vestido justo. preto. de lantejoulas. salto alto de
agulha. uma echarpe suave a tapar os ombros nus. e no colo do peito a maior
esmeralda verde já alguma vez regurgitada por uma rocha – na mesa. o início da
degustação gourmet. carne maturada ao tempo da arte. acompanhada por letras
salteadas em perífrase. com alto teor de metáforas e hipérboles. tudo regado
com um néctar de apolo – ao fim destes anos. vinte e cinco não é pouca coisa.
as palavras tornaram-se divertidas. já não se mostram enfezadas. falam comigo.
respeitam-me. insinuam-se. nenhuma quer ficar fora da história. tornaram-se
mais tolerantes. sabem que não foi fácil artilhar o carro para chegar até aqui.
mas agora. às portas de um novo genesis. querem mais. querem mais papel. querem
mais conhecimento. mais arte. mais definição – eu também quero. mas o medo.
essa coisa tantas vezes abstrata. essa dor que nos espreita por detrás de cada palavra…
e nos magoa sem piedade – como se escrever pudesse merecer castigo – um
escritor. por mais mau que seja. vive atormentado. o seu mundo está coberto de
nuvens e homens maus. e ao fim da jornada. quando apagamos a luz. as palavras saem
de nós para alimentar os demónios. e ali ficamos. em alerta. de espada na mão
protegendo a nossa honra. evitando que alguma seja levada para o inferno – não
há escritor que não tenha tido um motor partido. uma bomba de água entupida. os
fusíveis queimados. e palavras atravancadas no nó da garganta – e o domar de
letras petrificado. preso ao seu tártaro. ajoelhado. a pedir a são judas tadeu.
o santo das causas impossíveis. que o proteja dos demónios críticos – a vida de
quem escreve não é fácil. mas não mudaria uma vírgula do caminho que percorri.
mesmo sabendo que não estou isento de imprecisões – mas se ficasse por aqui. se
não escrevesse nem mais uma palavra. diria que já não foi mau. caminhei com o
que sonhei. e a cada nascer do sol encontrei-me para ser um pouco melhor – nem tudo
foi mal-acabado. eu e as palavras amparamo-nos. rimos juntos. choramos juntos.
andamos por dicionários juntos. perdemo-nos juntos. viajamos juntos para lá das
nuvens. às vezes até acampamos em estrelas e cometas. e as metáforas e
hipérboles a nosso lado. ajudando-nos a criar ilusões. para não falar no
sujeito poético que. com a mania de dizer tudo o que lhe apetece. escapa sempre
às responsabilidades – foi uma viagem e tanto. bem sei que sempre exagerei com
as figuras de estilo. mas que posso fazer contra isso. estavam mesmo à mão. e a
mão daquele que escreve é incontrolável – ser escritor é um sacrifício medonho.
só quem realmente gosta de contar histórias é capaz de sobreviver a vinte e
cinco anos de anonimato – escrevi. e ainda hoje escrevo para não ficar doente.
para sobreviver a este mundo terrível que sufoca a minha cabeça. e que todos os
dias me atormenta com a vida de verdade. e tudo faz para que desista de
procurar a cura pela estrada do papel – escrever é uma viagem alucinante. às
vezes acreditamos que estamos a trabalhar para uma obra de arte. e dentro da
nossa cabeça assim é. e no outro dia. despois de umas horas de sono. olhamos
para o papel e interrogamo-nos: quem foi o monstro que escreveu esta trampa? e
ali ficamos mortos. quase sem respirar. a perguntar se vale a pena continuar. e
vamos buscar aquele bocadinho de forças para o momento em que estamos no cimo
da ponte. entre o escreve. e não escreve. desiste. não desiste. e voltamos ao
princípio. renascemos no caus. e mais uma vez com a esperança de que quando
atingirmos o ponto final. nos sintamos geniais – e o medo instalado. a
interrogar-se. será que não consigo chegar a um escritor de verdade? as
palavras cada vez são mais exigentes. e às vezes não as sei entender. saber até
sei. mas não consigo domá-las como desejava. é como se estivesse num fórmula 1.
com mais de mil cavalos selvagens a
puxar por mim. e eu sem mãos para tanto power. para tanto cavalo bonito
III.
mas
o
que sei. e desta vez sei mesmo. será em 2024 que me tornarei pela primeira vez pai
de um livro. finalmente escritor – não um livro qualquer. não. será o meu
livro. o meu best seller. com a minha impressão digital. a vida escrita em
papel. sem adornos. sem falsidades. sem imposturices. com honestidade
emocional. intelectual também. sendo apenas eu em cada momento desse eu. às
vezes no escuro. às vezes no nada. a soletrar o nome para não me perder. para
não me esquecer. a lascar pedra – sem este outro eu. sei. agora. que não
escreveria uma única palavra. não curaria nenhuma dor. não perdoaria nenhuma
falha. não encontraria nada em mim que valesse a pena fazer existir. a
mesmidade seria para mim uma doença incurável – o tempo passou. rápido creio
eu. precisava de outro tanto para me tornar mais nobre. mais respeitado –
veremos do que serei capaz – as palavras são sempre tão difíceis. tão
desgastantes. tão rigorosas. sempre a imporem acompanhamentos diferenciados.
exigentes na escolha dos ingredientes. alguns exóticos. outros raros. que
desconheço. ou não sou capaz de trabalhar. – talvez queiram batata brava. e uma
saladinha com todos. vinagre balsâmico e duas pedrinhas de sal a gosto – o meu
livro será a gosto. a meu gosto – espero que a gosto de todos aqueles que me
leem
o Bento fez aquele sorriso que lhe enche a
cara toda, explicou
– Andam por aí.
e, de facto, andam por aí. A minha mãe anda
por aí, o meu pai anda por aí e fartamo-nos de nos cruzar com eles, só que às
vezes, distraídos, não damos por isso. Eu para o Bento
seráque
atingi a maturidade a escrever? será que a idade sénior me protegerá de
escrever tontarias? não sei. gostava de ter uma bola de cristal. mas não tenho
– a minha dúvida é que seja uma espécie de automóvel tuning. que vai sofrendo
alterações. às vezes para parecer mais bonito. noutras. mais competitivo –
comecei por aparelhar umas jantes mais largas. para me amarrar melhor às
palavras; depois. abri um teto para mais facilmente ser ouvido quando peço perdão;
não satisfeito. meti dois faróis xénon para não me voltar a enganar no caminho
– medroso. alterei a suspensão para aguentar os solavancos gramaticais. e para
me defender. comprei um rádio com colunas a debitar 1000 decibéis. às vezes
precisamos de calar o mundo – por último. mandei apetrechar dois “bofantes”
cromados para impressionar. tipo carro de corrida. mas que não corre para lado
nenhum. faz barulho por ter o escape roto – lembro-me do dia em que comecei a
acelerar. e fui pela vida da escrita. ganhando coragem a cada passo. a cada
quilómetro feito de passos. e um dia distraí-me. e quando olhei para o conta-velocidade
tinha ultrapassado os cem quilómetros horários – que loucura. vidro aberto e
aquela sensação incrível do vento a misturar-me o léxico. as palavras a
esvoaçar. e o cérebro em êxtase aos gritos de aflição. anunciando a todo
momento a fusão de um punhado de vocábulos. o nascimento de um grande texto – o
ponteiro do velocímetro a trepar incrédulo pela potência. o cabelo a imitar os
braços do boneco da michelin. e os óculos ryban. a sorrirem para o retrovisor. e
os lábios a sublinhar suavemente o pensamento: nada do que escrevi merece
recordação. para a frente é o caminho – vivia um tempo feliz. excêntrico.
acreditava que um dia deixaria de ser carro tuning e passaria a um avião de
combate. um F16 – depois. passei os cento e vinte. e comecei a olhar para trás à
procura da brigada. e a perguntar-me. será que algum critico literário ou
apenas leitor. mandar-me-á parar? talvez um dia aconteça. é inevitável. quem
anda à chuva molha-se – mas o que me preocupa não é a chuva. é se um desses
entendidos me disser: -- o cavalheiro fica sem carta definitivamente. é um
perigo para a arte. o melhor para si. e para todos os que gostam de ler. é confiscar-lhe
o lápis. obrigá-lo rapidamente a parar de escrever – continuei a acelerar. e a
escrita cada vez mais em pânico. sempre que passava por um radar sorria. ficar
bem na fotografia é o desejo de todo escritor – sorrindo talvez apanhe apenas
uma contraordenação primária. uma advertência. ou trinta dias de suspensão –
quando escrevemos tornámo-nos vaidosos. e acreditamos piamente que um dia
podemos ter uma pontinha de sorte. e quem sabe. tornarmo-nos no melhor escritor
da nossa rua – palerma. estou farto de saber que a sorte dá muito trabalho – no
entanto. a ingenuidade alimenta a criança que teima em viver no meu corpo
adulto – continuei a acelerar. quem não gosta de andar depressa com as palavras?
encosto aqui. para-choques a raspar por ali. arranhão acolá. mas sempre a teimar.
pensava para mim: enquanto não capotar o caminho é para a frente – comecei de
triciclo. virei de pernas para o ar centenas de vezes e nunca desisti – depois.
passei para a bicicleta. e as marcas de lamber o alcatrão cravaram-se-me no
corpo. mais uma vez recusei resignar – agora. que tenho quatro rodas. um travão
servofreio com sensores ABS. cinto de segurança em diagonal. e airbags duplo
frontal. também não vou abandonar as palavras – passaram vinte e cinco anos. as
palavras estão mais maduras. eu também. já não estou tão vaidoso. e na minha
simplicidade. quero acreditar que atingi a velocidade do som. claro que ainda
não sou F16. muito menos um foguete capaz de me levar ao espaço. mas labutei-me
muito por dentro. afinei-me para corridas trabalhosas. acredito que um dia
chegarei a um paris-dakar – não sei. mas que importa. chegarei onde tiver que
chegar – também aprendi a colocar o ouvido nas palavras. e agora ouço o seu
trabalhar. como quando o médico coloca o estetoscópio sobre o coração. e diz: --
respire fundo – e máquina a trabalhar ao ralanti. num batimento certo. e as
palavras a trabalhar dentro dele. e eu com as mãos ansiosas por mais prazer.
com as palavras presas às pontas dos dedos. excitadas. os dedos também. e no
cérebro hauser a tatear um noturno em dó sustenido menor de frédéric chopin. e
o papel branco a desenvolver-se. a sonhar com uma história de amor correspondido.
a oferecer-se ao escritor
chegou o momento
de me despedir de 2023 – fazendo o somatório deste ciclo de 365 dias. experimento
que foi um bom ano. tive saúde. pessoal e profissional. e principalmente. tive família
e amigos por perto – que mais um homem pode desejar? quanto ao vil metal… não
recusaria um pouco de mais bondade. sei que sou um privilegiado neste mundo
antagónico: guerra e paz. fome e abastança. habitação e desabrigados. saúde e
doença. solidão e família. mas creio que não pecarei ao desejar mais uns trocos. seria
como a última pincelada numa obra de arte. assinatura de autor para alindar um
pouco mais a minha ambição – em boa verdade. não me posso enfadar com nada. este
ano. já moribundo. foi uma boa casta. tive sol na eira e chuva no naval. e em
nenhum momento foram diametralmente opostos – ficar-lhe-ei grato pelo que me
deu. pelo que me ensinou. pelo que me fez crescer e fortalecer – que o novo ano
traga consigo o melhor de 2023. e o que me sobrou em preocupações que fique
esquecido para sempre – precisamos honrar o que já vivemos e receber o ano novo
com alegria e esperança – faço votos para que 2024 adote a minha família e
amigos com muitos sorrisos. paz. saúde e esperança – mas não podia celebrar a
virada do ano sem lhe implorar um cuidado especial para um amigo também
especial: para o meu prezado H. muita saúde. muita saúde. muita saúde e muita resiliência.
cá estaremos a torcer por ti e por quem te acompanha todos os dias – bom ano
2024
o
natal
sempre me envolve em sentimentos doces. suaves e nostálgicos. há nele algo adormecido
em mim – contra este cocktail de sensações nada posso fazer. e mesmo que
pudesse. também não o faria. gosto desta overdose de bem-estar. deste encanto
hipnótico que o natal transposta em mim desde criança – é a minha festa. a
festa da minha família. e na noite da consoada compartilhamos não apenas o
bacalhau. mas também amor. compaixão. e generosidade – celebramos a existência de
uma linhagem. o calor dos amigos. e todos aqueles que. por um motivo. ou outro.
cruzaram nossas vidas – mais do que tudo. celebramos principalmente o modo como
gostamos uns dos outros. como lhes dizemos o quão são importantes nesta nossa
passagem terrena – é entre gorros vermelhos e bolas coloridas que compreendemos.
mais facilmente. que pertencemos uns aos outros. independentemente dos laços
sanguíneos que nos unem e nos trouxeram até aqui – neste dia de união familiar.
recuperamos um dos maiores milagres de jesus. a ressurreição – reencontramos o
meu pai. a minha mãe. a zeza. o meu sogro. o tio joão. todos retomam seus
lugares à mesa. vieram consoar connosco. confortar a saudade que nos deixaram –
o natal sem eles não seria o natal das boas tradições; eles são parte de nós. e
nós somos parte uns dos outros – e agora. que soem as doze badaladas. e que o
espírito generoso do pai natal toque os meus netos. toque em todas as crianças
deste nosso mundo maravilhoso – o verdadeiro natal é aquele onde reside a
inocência – feliz natal para todos!
um dia. como todos aqueles que corajosamente
se aprontam a nascer. vou desaparecer deste mundo. espero que por velhice. por
arrasto da bengala. incontinência urinária. ou de coração melado de tanto amar
a minha companheira – neste dia especial. em que nasceste para mim. quero-te a
meu lado… hoje. e até que o último suspiro me surpreenda – ver-te envelhecer é
ver-te todos os dias mais bonita – e assim. em atrição. e sem coragem para contestar
a veracidade que um dia tombará no meu epitáfio. peço a deus. ao universo. ou à
sorte. que me conceda uma última vontade: quando chegar a minha hora. que o meu
silêncio aconteça nos seus olhos. e eu. finalmente. possa descansar na sua
eternidade – parabéns maria joão
foi
em québec que tive o impulso de escrever este poema – o castelo
frontenac pendurado nas margens do rio saint laurent. a luz. as sombras. a
história. a amizade dos nossos amigos. nawel e michel. mas principalmente. sentir
os olhos da maria joão acesos de paz. como já há muito tempo não sentia – foi
uma viagem de sonho que guardamos e agradecemos para sempre – em québec também
fomos abençoados
nada das coisas que imaginei morreu em mim porque o tempo das coisas não é
de quem pensa. mas sim de quem faz – ainda quero fazer milhentas coisas. mesmo
que sejam absurdas – a felicidade e a tristeza alimentam-se do pensamento.
mesmo absurdo – penso. logo sou absurdo – utopia é acreditar que um dia todos
os meus absurdos o deixarão de ser – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o
absurdo em mim possa parecer loucura
oqueseria da
nossa vidinha sem os amigos? sinceramente não sei. sempre tive os amigos perto
de mim. a ocuparem espaço. a absorver-me. a falarem muito. e eu também. a
ocupar muito espaço. a absorver. a falar. a acenar para trazê-los para dentro do
que sou e sinto – com a idade vamos perdendo amigos. amigos ou coisa parecida.
encostos. passageiros do nosso tempo sideral. almas com mágoa e dor. como eu –
destes amigos. alguns apenas dormitaram de um dia para o outro. e pela manhã.
fizeram um café forte e partiram em expresso – outros. estalaram-se.
depositaram o corpo em mim. e obrigaram-me a ficar fiel depositário. e ali fiquei. com as mãos estendidas. como
deve um amigo ser. presente. para evitar males maiores. ou que se aborrecessem.
ou partissem. afinal os amigos são coisa fina. cristal de murano – mas o tempo
é ruim. e tal como o cometa halley. alguns destes amigos seguiram viagem. é a
vidinha. talvez apareçam daqui por setenta e cinco anos. serão bem-vindos se
tiverem boas razões para voltar. e muitas histórias para contar – os amigos são
assim. humanos como eu. às vezes precisamos de partir. precisamos de abalar
para local desconhecido. para ser como somos. para ter tempo para ser o que realmente
somos – mas. enquanto nos escondemos na vidinha que nos tocou. sim. porque às
vezes não temos escolha. precisamos do escuro para clarear ideias. procurar o
que demos por perdido. aprender a escutarmo-nos. aceitarmo-nos. limar as
complexidades com uma pequeníssima lima de manicure. os amigos abalam. e quando
voltamos do escuro já não temos ninguém à espera – a vida corre sempre para a
frente. para a invisibilidade. e o que ficou para trás não passa de nevoeiro.
igualzinho ao de d. sebastião. acreditamos que um dia tudo volte a ser como
dantes. não volta. como não voltou d. sebastião – depois. ainda há os amigos
intermitentes. aparecem e desaparecem consoante o que lhes convém. ou os
humores. ou as tragédias. e chegam como se nunca tivessem partido. a sorrir. a
dizerem que a vidinha é uma trampa. que o tempo é como as enguias.
escorregadias. e abraçam-nos até os ossos estilhaçarem. juram saudades que são
quase dor. e convencem-nos que no canto do seu olhinho reluzente. a ramela é
verdadeira. sobra da última lágrima. que depois de bem seca. se faz cristal.
possivelmente também de murano – com o tempo fui perdendo amigos. ou coisa
parecida. mas quem não os perdeu? só não os perde quem nunca teve o privilégio
de os ter – crescemos e tomamos caminhos diferentes. é a vidinha. digo eu agora
que já não encontro razões para tanto desencontro. a juventude envelheceu.
passou a sénior. o corpo amadureceu. a memória enfezou. as mãos aceitaram os
tremores. o coração bate e esbate. e o céu ficou mais perto de belo – agora.
neste estado de pré-decadência apressada. mais complacente. mais sabedor de que
nada sei. encontro outros entendimentos. mais nobres e mais rebuscados.
acertados com mais predicados. o corpo roga mais tolerância e menos ego. e
finalmente. percebemos que os amigos vivem na arca do nosso santo graal. com a
família. e guardam em si todos os seus mistérios. como eu – o que mora dentro
de cada um dos nossos amigos apenas pertence a um só corpo. e só esse corpo
conhece e sabe as verdadeiras razões da sua viagem – como disse agustina bessa
luís. o mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única – é a
vidinha – envelheci demasiado. quando quero lembrar-me de mim. com o corpo
esguio. e o cabelo a cair para o lado dos sorrisos. tenho que me procurar nas
fotos. e fico sempre espantado. e interrogo-me: este sou mesmo eu? parecia
passado a ferro. lisinho. as pontas dos pés acertavam-me em cheio no nariz. e
os lábios sempre prontos a falar. às vezes a desatinar. quando ficavam
excitados anunciavam bom tempo. com as gaivotas a saírem-me do céu da boca.
loucas. e o vento… sempre a puxar sul. acompanhado de um aroma suave. fresco. e
a pele eriçada. arrepiada com um mundo redondo. azul. com mares. com alma. sol
e sal. e o pulôver atado à cintura a desafiar o outono. o meu outono. era um
miúdo com uma vidinha gira – e eu sem saber quão rápido chegam os outonos.
ingénuo. é a vidinha. não apenas a minha. mas a de todos – mas enfim… é o que
é. consola-me saber que os meus amigos também envelheceram. fizeram-se das suas
razões. tornaram-se no que quiseram ser – as histórias de amigos acabam sempre
com um final feliz. ou quase sempre. as que acabam mal existem para nos obrigar
a ter cuidados redobrados. cada amigo tem um mundo que é só seu. tem o seu
mistério – o tempo coloca tudo no seu lugar. acerta as horas pelo fuso de cada
um de nós. e depois. aparece aquele momento. que relembraremos para sempre.
principalmente nos desequilíbrios. nas noites mais cumpridas. nas dores
invisíveis. em que nos tornam eleitos. únicos. diferentes das maiorias. que é
quando nos dizem: és um bom amigo. especial. singular. e sorrimos tímidos e
envergonhados. estranhamos. mas depois entranhamos. e obrigamos as gaivotas a
sair da boca. pedimos-lhes que levem a boa nova ao mundo. e ficamos em festa.
gratos. encantados com o que somos. e esquecemos por mais um século o que
gostaríamos de ser – os amigos são a nossa rosa dos ventos. e o norte aponta
sempre para eles. para eles e para a família – a felicidade não é assética. mas
é quase sempre efémera. às vezes ilusão. às vezes apenas o contrário de dor.
que acabamos rapidamente por a rejeitar. medramos só de saber que está a
caminho de nos encontrar – para cada segundo feliz sofremos horas de agonia.
foi assim a vidinha. não foi feita para nós. não somos dignos de a saborear por
um ano. um mês. um dia. temos apenas direito a momentos felizes. espremida
apenas de pensamentos joviais. em noites de auto-satisfação – é como vestir
umas calças com dois números acima. se não usamos cinto. caem-nos. se colocamos
cinto. encarquilham. num caso. ou noutro. ficamos em dúvida se engordamos. ou
emagrecemos. e acabamos por preferir a neutralidade. nem feliz. nem infeliz.
usamos um número intermédio. e tudo encaixa na perfeição. é o número mágico.
faz-nos invisíveis. assim. ninguém nos pergunta se está tudo bem. ou mal.
estamos sempre com ar de nem oito. nem oitenta. às vezes quase mortos. às vezes
na lua. mas aos olhos da multidão. está tudo legal. como sempre – enquanto a
infelicidade que infligimos aos outros. digo. aos amigos. fica para sempre. e
quase todos os dias vem à memória o dia do pecado mortal. arrependemo-nos.
laminamo-nos. sangramos até à exaustão.mas a vidinha não anda para trás. e em dor e fogo tatuamos na pele três
palavras: és uma vergonha – e quando estamos sozinhos. apenas connosco.
vestimos uma túnica branco. e tal como egas moniz. ajoelhámo-nos. entregámo-nos
em perdão. e ali ficamos à espera que a cabeça nos caia nas mãos. com os nossos
olhos. nos olhos dos amigos – não se pode virar as costas a um amigo de olhos
no chão – agora. as gaivotas já não me passam pelos lábios. penduram-se como
morcegos no céu da boca. a degustarem o meu refluxo estomacal. e o verme do
tempo a mastigar a vida num vagar tonto e esquizofrénico – finalmente
absolvido. mortal. finalmente todos mortais. todos perdoados. eu também
II.
mas que importa isto. ou aquilo. o que
sei é que comecei a caminhar onde o passado me criou. e às vezes passo pela rua
que me viu nascer. e tento encontrar-me. e não me vejo. desapareci daquela rua
para sempre. ou fiquei invisível. e por mais tentativas que faça para me
encontrar. não me encontro. a vidinha é isto. uma ilusão de eternidade. e o que
nos espera é uma sucessão de pequenas mortes. que nos faz desaparecer aos
bocadinhos. e um dia. sem nada pudermos fazer. desaparecemos para sempre – como
eu. os amigos. desapareceram por culpa da vidinha. tornaram-se invisíveis. e
quando tentamos recuperar a sua face. já não conseguimos. esfumaram-se na
vidinha. ficou-lhes o nome. que viverá enquanto eu viver. e depois. também um
dia. quando eu expirar. quando as gaivotas me morrerem na boca. e o verme
saltar para a terra. morremos todos para sempre – a vida corre desenfreada para
o fim. para o pó. e nesta correria parva espera-nos a invisibilidade. a minha.
e a dos meus amigos – e a rua onde eu nasci. será a rua de um outro como eu.
que perderá amigos como eu. e envelhecerá como eu. e tornar-se-á invisível como
eu – é assim que o mundo gira. é a sua vidinha – às vezes desistimos da vida e
ainda respiramos. estamos fartos de perder coisas: perdemos os sapatos de pele
que nos custou uma fortuna.perdemos o
avião para veneza. perdemos o nascer do sol. perdemos a chave de casa. perdemos
tempo. e logo logo perdemos a esperança. e a honra. e a dignidade. e a calmaria
que nos faz esperar pelo nosso dobrar dos sinos – pedimos então suicídio. e é
quando nos perdemos de nós. do caminho que sonhamos. e metemos a mão à boca
para deixar de respirar. e ouvimos o verme a agoniar. e as gaivotas loucas na
escuridão a cravarem-se nos dentes. e as lágrimas que nunca serão cristal de
murano caiem-nos em cima da verdade. cristalizam-nos – cristalizam-nos na
verdade absoluta – não somos nada. somos apenas passageiros da vidinha – e a
saudade de todos os que amamos a passar pelos olhos ainda abertos. em
desespero. numa agonia brutal. e aos poucos vamos sufocando. e a morte acontece
na sua imperial simplicidade – é o fim da vidinha. único acordo de cavalheiros
apalavrado com o primeiro sopro de vida: um dia morrerás e serás para sempre
invisível – é a vidinha – envelhecer nem sempre é castigo. envelhecemos para
termos a última aula de saber. começamos a respeitar o tempo. aprendemos a
amaciá-lo. a torná-lo num chá quente. reconfortante. e percebemos que enquanto
respiramos é nossa obrigação juntar as moléculas e marchar. meter as esporas nos
pés. deitar o corpo sobre a vidinha. como um jockey se deita no seu cavalo para
que o galope alongue. e partir desenfreado pelo o que nos resta de tempo.
conquistá-lo com dignidade. atingir a meta com honestidade – por minha culpa.
tão grande culpa. às vezes creio que também sem culpa. para cada amigo que ia
conquistando. perdia três. às vezes perdia uma mão cheia de uma assentada. e
nem um me chegava em troca – pensava. é o êxodo. castigo de deus ou do universo.
ou então. iam em busca da sua vidinha prometida. que mal lhes posso ter por
quererem a sua vidinha – com o meu outono chegaram os novos amigos. mais
compostos. mais parecidos comigo. mais doces. a falarem de coisas mais
adocicadas. talvez porque também eu me tornei mais meloso. mais cuidadoso com
as portas que abro. culpa da vidinha. ou da minha falta de maleabilidade – a
plasticina ao tempo fica rija e impossível de trabalhar. e posso confessar-vos
agora. já não me trabalho como antigamente. agora prefiro escrever e abraçar os
amigos mais certos. os que me tocaram por gosto – não foi de propósito. foi a
vidinha. outonos em demasia. amadureci. como se fosse um fruto. talvez um
morango. ou uma laranja. ou a maça do paraíso. que estupidez. como é que algum
dia poderia ser um fruto. petrifiquei-me. e mesmo abrindo a boca e espantando
as gaivotas. não fui suficientemente bom comigo. não me perdoei. às vezes
perdoo-me. mas muito devagarinho. suportando-me. serrando os pulsos – sem dor
não há perdão sentido – mas confesso. ainda não consegui desfazer-me do amargo
da vidinha que fui esbanjando – infelizmente. nem sempre vento e liberdade são
sinónimo de envelhecimento com estima
III.
os
amigos são como elevadores. apanhámo-los na vidinha. e rapidamente os
convidamos a subir ao último piso de nós. chegados lá. sem custo. animados pela
conquista. ainda fazemos questão de subir mais uns degrauzinhos. queremos chegar
mesmo ao topo. para o céu nos escutar sem esforço. e para terem uma vista real
da nossa magnitude. e logo dizemos: estás a ver tudo isto à tua volta. é tudo
meu. é o meu pé-de-meia da vidinha – a amizade é uma forma de amor. e tudo o
que é amor é lei universal. augusto comte. fundador da sociologia moderna.
escreveu um dia o seguinte: “o amor por princípio. a ordem por base. e o
progresso por fim” – por princípio os meus amigos. são aqueles que se
predestinam a sofrer a meu lado. para sorrisos nunca me faltou espaço no
relicário – os meus amigos sempre foram os meus heróis. eram todos aquiles.
guerreiros. poderosos. inteligentes. bonitos. apenas pequeníssimas debilidades
nos calcanhares. por serem aquiles. presentes nas horas más. sangrando comigo.
chorando. agoniando. apoiando. dizendo-me: amanhã é outro dia. acredita – os
meus amigos são a minha poesia épica. a epopeia da minha vida. da nossa vida –
eles e a família são o meu anel de fogo. que me protege no tempo. que é a minha
vidinha. e que por ser escassa e trabalhosa. acabou tresmalhada nos seus
enredos – na nossa vidinha não há grandes possibilidades de voltar atrás para
refazer o destino. o que nos em calhou em sorte. ou desnorte. ou então sou uma
experimentação de deus. ou extraterrestre. uma ordem do universo. com o rótulo:
experiência 17552. do ano estelar -41296.36. o que está feito. feito está – é
por isso que os levamos para o último piso. que é o mesmo que lhes oferecer um
sofá para dentro de nós. sentamo-nos nas telhas. algumas de vidro. que são o
calcanhar de aquiles. e mostrámos-lhes como tudo é fantástico. damos-lhes o
melhor do que gerámos. escondendo o nosso buraco para o inferno – e depois do
barulho. quando o silêncio nos despe. humildes. falamos-lhes da nossa
pequeníssima vidinha. sem interesse. nebulada. escura. fria. e irritante –
somos o que somos. independentemente do que nos rodeia – apontamos para uma
árvore. uma que está mais acima do que as outras. talvez com as folhas mais
verdes. talvez também mais elegante. e apenas dizemos: olha que árvore bonita.
que bela. e olha a cor. e o tamanho das folhas. tão geométricas. tão certas.
tão perfeitas – procuramos o belo-estético onde não existe mais do que apenas o
belo de uma árvore. igual a tantas outras. e que não servem para mais nada do
que para poiso de pássaros – e as minhas gaivotas presas ao céu da boca.
incrédulas por tanta louvação e esplendor. a interrogarem-se para que servem
tantas árvores se lhes falta um mundo redondo. azul. com mares. alma. sol. e o
sal – um dia. estas árvores tornar-se-ão também invisíveis. apodrecerão. ou
acabarão nas mãos de um marceneiro. nada fica para sempre. nem a água da chuva.
nem o vento. nem o amor. nem os olhos que o veem – respiramos o belo como se
estivéssemos drogados com tanta afinidade. como dizia miguel torga: daqui se vê
o belo absoluto – olhamos um para outro e interrogamo-nos: o que há dentro de
nós de tão mau para nos darmos tão bem? quando gostamos de um amigo perdemos o
nosso vento sul. e as gaivotas voam de olhos fechados. afinal o mundo é azul.
com mares. alma. sol e sal – olhamos ao redor e todos as árvores são especiais.
e todas diferentes. umas mais pequenas. encorpadas. mais esguias. e até as
atarracadas te seduzem. e dizemos em uníssono: um dia serão enormes –
interrogamo-nos. porque são as árvores tão esguias? e concordamos: para se
protegerem do outono. das intempéries. dos ciclones. dos dias frios. e do gelo
da vidinha –mas um dia. se tiverem sorte. darão uma
credência d. maria às mãos de um marceneiro – que final feliz para uma vida – e
ali ficamos. dias a fio a olhar a imensidão das árvores. a imensidão do futuro.
o infinito. a contar credências d. maria. a viver a vidinha. a sorrir. a ser um
bocadinho felizes – depois. e como a maior parte dos amigos que levamos para o
nosso terraço. deixam de ver árvores. e o céu desaparece. agoniam no nosso belo
absoluto. cansam-se. arfam. bocejam. arrotam a fim – é a vidinha – os amigos
não passam de humanos com as suas vidinhas. iguais a todos os humanos. mas diferentes
de mim. não por não ser humano. mas por razões que desconheço. ou conheço e não
compreendo. o que sei. mesmo não sabendo explicar. é que num instante absoluto.
ou não. aos seus olhos. às vezes também aos meus. o belo falece. e um deserto supremo
emerge. é como se de repente estivéssemos acampados no saara. e o desespero do
fim amarra-se à vidinha que ainda sobra. como a areia ao vento – agora. eu e
alguns amigos. ou coisa parecida. percebemos que as árvores afinal não são tão
altas como pareciam. e as credências d. maria. não passam de bancos saloios de
três pernas – é quando entra em equação o tempo. essa coisa que muda tudo.
transforma o novo em velho. as ideias geniais em ideias parvas. o pensamento
positivo em negativo. e o belo… num susto – começas a centrifugar-te. cada vez
com mais velocidade. numa circunferência descoordenada. e percebes que o que
era belo já não é assim tão belo. afinal a grande maioria das árvores nunca
serão credências. nem bancos de três pernas. serão somente árvores. nada mais
do que árvores – juntas eram uma floresta. sozinhas não são nada. talvez quase
nada. porque mesmo sozinhas não deixam de ser árvores. existem. mas mais tarde.
ou mais cedo. serão lenha seca. é a sua vidinha. e ao fim de cada dia. o sol
desaparece por detrás de cada uma delas. desaparece para todas. para mim também
– e cada um de nós guarda o seu universo. mais nosso. e deles também. tão nosso.
e deles também. que apenas nós. e eles também. o compreendemos – começamos a
preferir-nos. a querer mais para o que somos de verdade. nem que seja um dedal
de felicidade. um sorriso que dure mais que um instante. que cavalgue pelo
tempo. anunciando a boa nova: chegou a idade do saber – mas se for mentira. que
nos engane com classe. e nos faça acreditar até que o último suspiro caia por
terra. com o verme – percebemos que em qualquer vidinha somos únicos e
fantásticos. é altura de apostarmos em nós. ganhamos coragem. e assim fazemos. metemos
então as fichas todas no tempo que nos falta viver. e cruelmente. deixamos de querer
compreender as outras vidinhas. e dizemos: é a vidinha – voltamos a ficar sós.
como árvore. podíamos ser uma floresta. mas não somos. somos apenas nós com a
nossa vidinha – metemo-nos novamente no elevador e começamos a descer. primeiro
apenas um andar. depois outro. às vezes dois de cada vez. e em cada um dos
andares deixamos sair amigos que connosco subiram ao topo do belo absoluto – é
quando começamos a contar os amigos que perdemos ao longo da nossa vidinha. e
percebemos como é cruel. alguns não gostaram do meu terraço. das alturas.
outros deixaram de gostar de árvores. e outros não gostam de nada. nem de si. é
a vidinha. digo eu – e eu a interrogar-me: porque estão tão longe de mim? juro
que não sei. a mim parece-me que estou sempre mais perto deles – o que sei.
palavra de honra que sei. é que os meus amigos de verdade estão mais perto do
céu do que eu. são especiais. mais tarde ou mais cedo todos serão credências d.
maria. é a vidinha – a minha grande interrogação é porque não fui capaz de os
manter a todos no topo do meu edifício. não pode ser culpa só deles. eu também
me devo ter perdido com a vidinha. talvez por acreditar que nunca seria uma
credência d. maria – é a vidinha. mas esta vidinha. esta minha vidinha.
interroga-me todos os dias: porque raio é que vivo num edifício tão alto? se
vivesse mais perto do chão tudo seria mais fácil. abria a janela e todos
aqueles que me quisessem conhecer só teriam de espreitar. e mesmo que não
gostassem das quinquilharias que carrego. podiam sempre ir passando. porque
afinal estamos sempre a mudar de quinquilharias. e quem sabe um dia. passavam
com outros olhos. noutra vidinha. e até talvez parassem para conversar. e
falassem um pouco da sua vidinha. e eu falaria da minha. falava-lhes do desejo
de um dia ter uma credência d. maria em casa. para por ao lado de um banco
saloio de três pernas – mas é a vidinha. feita de caminhos que nos cercam por
todos os lados. e ali andamos como se fosse uma ilha. com o nosso oceano de
árvores. e de outras coisas que por serem muito nossas. guardamos em buracos
que são o inferno. protegidas por fantasmas. guardiões do calcanhar de aquiles –
e agora. neste caminhar vagaroso. percebo que poucos ficaram na minha vidinha.
mas os que ficaram. os que vivem em mim. sei bem porque os amo. porque todos
eles são credências d. maria – não quero mais portas a abrir e a fechar. quem
entrou é cristal de murano. é para segurar de mãos abertas. é para nos
sentarmos no sofá e apreciar o belo absoluto. amaciar os silêncios. enganar o
verme. e libertar definitivamente as gaivotas. as minhas e as deles – e se por
acaso o tempo se fizer mau. se chegar uma borrasca. abro as janelas para que o
vento me limpe as lágrimas das ausências – sei agora que a culpa da vidinha que
escolhi é minha. só minha. e com ela. um dia. me tornarei invisível – mas agora
também sei. que não posso perder mais ninguém. tenho o corpo lotado de campas e
saudade
foi uma trabalheira gigantesca chegar até
aqui – mas cá estou hoje. a falar livremente e sem medo. porque quando alguém
ler estas parvoíces que escrevo. será passado. e o passado nunca mudará o
futuro. só o presente tem essa dinâmica. e é por isso que escrevo. hoje. este
meu presente. que fará o meu futuro mais compreendido
“mais
do que descobrir o que deixei para trás por causa das minhas vulnerabilidades.
importa-me saber o que posso mudar para a frente – o futuro é sempre mais
importante. é lá que um dia morreremos. e é bom manter a gaveta arrumada. nunca
sabemos o dia em que apanharemos a barca para outra dimensão” – in
vulnerabilidades