.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/11/2018

não sei









não sei
não sei se envelheci amalucado
se me perdi ou se abalei para fora do corpo no dia em que fiz dezoito anos
não sei mesmo
não sei se me maltratei por nunca querer saber nada de mim e querer saber tudo do mundo
não sei juro que não sei
gostava de sabermas não sei
não sei tanta coisa que deveria saber
não sei se um dia poderei recompensar quem não fui capaz de sossegar nem sei se um dia
poderei regressar e nascer de outro modo
voltar aos braços de minha mãe e esconder-me de novo no ventre da imortalidade
não sei... juro que não sei
a vida não nos deixa saber tanta coisa
há tanta dor escondida
há tudo que fiz
e o que deveria ter feito e não fiz
sei que um dia destes vou ficar sozinho no mundo
sei que um dia destes um rosto se vai apagar
o silêncio vai arranhar
e a saudade vai voltar
sei que estou apavorado
estou em desordem numa vida que tem a sua própria ordem
estou nos braços de minha mãe
e a minha mãe está nos meus


declamado por - maria joão



26/11/2018

deambulações noturnas XXXIV





cao hui





o pior defeito de um homem é a sua falta de memória e gratidão - e mesmo que a desculpa se esconda atrás de uma pseudo-arte a solidão e o vómito será sempre a sua companhia






23/11/2018

[mamã] emprestas-me a tua mulher











hoje acompanhei a maria joão na visita diária à minha mãe – chegarsorrir. beijarsorrir. sorrir e falar sem dizer quase nada porque não há nada para dizer – depois como se o tempo pudesse acabar a qualquer momento começa a arranjá-la para dormir. higiene mínima. pescoço acomodado à almofada. aconchego à roupa e por fim. um abraço de filha e um carinho tão apertado que me enche o coração – as mesmas rotinas há meses – já aconchegada. a minha mãe. olha para mim e como se não estivesse muito doente diz-me: emprestas-me a tua mulher para ficar comigo uma noite – desfez-me de riso e do coração – a uma mãe não se pode negar nada e disse-lhe: claro que sim mamã. para a semana vai ter uma noite inteira com a maria joão – será uma noite mágica pois para além de ser minha mulher é um anjo na terra – sou um homem de sorte – tenho a certeza de que a levará consigo para o céu tal e qual como levou o papá 






05/11/2018

conto e contar





caspar friedrich




nem sei se respire ou deite a alma ao lixo – estou assim. os dias a contar dentro de mim e eu sem saber que gaveta abrir – conto. conto tudo que pode ser contado: os botões da camisa. os dedos das mãos. as lâmpadas acesas e as que fundiram com o passar do tempo. conto pernas e sapatos cambados de tanto caminhar. conto dias em que sorri e outros em que desapareci estou assim. pesaroso. lamentado e perdido. procuro-me nas razões. na sorte e no destino. às vezes sozinho. outras. junto companhia como quem não quer a coisa – passo o tempo entretido a contar. a vida não é uma conta que se faz de cabeça baixa. tudo que conto hoje não sei se dá para contar amanhã. é tudo tão volátil. tão fácil de quebrar – o futuro corre sempre tão depressa – conto cada abril honrado. cada natal vivido e conto março como se fosse ontem – conto os vivos. os que já não estão vivos e os que estando vivos se fingem de mortos – um corpo aflito só resiste ao descanso eterno pela saudade – conto pelos dedos para não me enganar e não enganar o mundo das contas que se faz e desfaz consoante a vida passa – e eu defronte das minhas gavetas sem saber contar o tempo que me resta para abrir cada uma delas – conto comigo e quem comigo me ajudou a fazer as contas do tempo. as contas não se fazem sozinhas. dentro das minhas contas há contas de outras contas que nunca poderei compensar – conto as vezes que amei sem saber que o amor se pode contar como um conto: era uma vez uma princesa linda. tão linda que é impossível contar a sua formosura – e tudo que conto ligado por nós que não sei desatar. e os dedos gigantes enrodilham-se em contas que não tem fim – conto as noites que passei sem dormir. conto os fantasmas que inventei e outros que por serem invisíveis não sei contar. conto estrelas. conto gaivotas e conto as rugas de uma face velha. puída. a chamar morte. destino. horror – e as luzes do sótão acesas. a iluminar o mundo das contas e a faca entalada garganta a baixo grita em desespero: noves fora zero. zero. igual a nada