.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/12/2022

2022 já era. agora venha o 2023

 




o ano 2022 está a terminar tão bem que não tenho pressa em sair. mas também não quero perder mais tempo. o que lá vai. lá vai – quero que este 2023 chegue como chegam todos os anos. sem nada mudar para além do calendário – em 2023 quero lembrar com saudade os cem anos que o meu pai faria se fosse vivo – quero também lembrar os que já partiram: a minha mãe. a minha cunhada zeza. o meu sogro joão. e o meu tio joão – quero continuar com os novos amigos deste último ano. porque vieram por bem. e comigo viveram dores e risos – aos amigos de longa data quero o que sempre quis. saúde para os ver envelhecer. um amigo envelhecido é muito melhor camarada – em 2023 quero amar os meus filhos ainda mais. um pai quer sempre mais. quero ser mais forte. mais risonho. e mais mágico. o mundo precisa de magia – quero que as minhas noras sejam ainda mais felizes com os meus filhos. se assim for. celebraremos a comunhão das famílias – para os dois meus netos quero que aprendam a ser felizes com o conhecimento. e que os seus pais estejam sempre presentes no seu crescimento – para este novo ano quero a minha maria joão a sorrir mais. com mais abraços. mais bonita. mais enrodilhada em mim. quero a bem-aventurança. a cumplicidade. a constância na provação – quero o meu corpo em paz. e a mente sossegada – quero amar como nunca amei a minha família. quero saúde para os meus irmãos e sua descendência – em 2023 temos todos que perceber que é possível gostarmos ainda mais uns dos outros – quero ser mais desabrigado de mim. quero-me de janelas abertas. quero abril para comemorar o meu aniversário. quero editar o meu primeiro livro – quero que a bondade prevaleça em cada gesto. quero o meu universo mais vulnerável para que possamos estar mais próximos uns dos outros – borges um dia escreveu: cometi o pior dos pecados de um ser humano. não fui feliz – não cometamos nós o mesmo erro do borges. vamos fazer de 2023 um ano encantador. o ano de todos os anos

 


23/12/2022

poema de amor para o meu amor

 







nunca soube escrever cartas de amor

às vezes escrevo poemas de amor

se forem pequeninos

dois ou três versos.

mas nada de emparelhamentos

nem rimas cruzadas

coisa simples

e fácil de transportar

como um porta-chaves

ou algo do género

mas hoje sinto-me…

como hei de dizer?

transgénico

sinto-me poeta

sinto-me pessoa

e quero compor um poema de amor

para o meu amor

mas juro

não sei como começar

e interrogo-me:

o que tem que ter um poema de amor?

tem que ter amor

paixão

veneno para se morrer

tem que ter luz

olhos apaixonados

e promessas cumpridas

 

mas amor

em mim não há palavra ajustada

nem rima acertada

bem queria que rimasse com versage

que é alta costura

e coisa com classe

mas é o que é

e mesmo sem rimar

o que sei por escrito do fernando

é que todos os poemas de amor são ridículos

acabamos às voltas

com palavras para lá e para cá

algumas de tão curtinhas acabam por nada dizer

outras…

ficam tão compridas

que o amor fica todo amalgamado.

meladinho e tonto

por isso este poema de amor

[e só eu é que o chamo assim]

é para ser declamado

por um louco

apaixonado também

para que as palavras

corram mais acertadas

com paixão

menos tontas e meladas

e mesmo aquelas que [te] parece[re]m

despidas de tino

devem ser perdoadas

afinal um coração apaixonado

raramente diz coisa com coisa

mas se não houver louco para declamar

que seja um cavaleiro andante

e que traje versage

que é coisa fina

e da alta costura

mas amor

este nosso poema

é também a nossa vida

prometida

no bem e para o mal

e até que a morte nos separe

 


13/12/2022

pedras 7

 






[7 pedras. 7 dias da semana]


1.

perseu era meio homem meio deus. eu sou meio parvo meio escritor. que melhor comparsa poderia ter eu encontrado para me caracterizar? perseu era um guerreiro-herói. cortou a cabeça a medusa. acabando com a maldição de quem a olhasse nos olhos se transformasse em pedra – eu não sou guerreiro. nem herói. nem nunca transformei ninguém em pedra. mas acreditem. já arremessei palavras como se fossem pedras – mas hoje confesso-vos. estou enojado de tanto escrever sobre calhaus. e por via desse nojo. esta saga. 7 pedras. 7 dias da semana. terá hoje o seu fim. a bem. ou no desenrasca – no entanto. e como gosto de escrever. sei que todo o fim encerra em si um recomeço. e não tendo ainda acabado em definitivo este embaraçado de pedras. já fervilho pelo próximo desafio – e agora. do alto dos meus mais de vinte aniversários a passar-me para papel. e porque toda a escrita é autobiográfica. posso dizer-vos. continuo inconformado com o que escrevo. diria mesmo. zangado. profundamente zangado – escrever é a minha fantasia. e também o meu maior pesadelo – já ultrapassei mais de metade da minha esperança de vida. e a única cabeça que cortei… foi a minha – porém. nunca devo ter feito um grande trabalho. pois sempre que a corto. ela volta a pendurar-se no pescoço – o que me aborrece. é que volta como se nada tivesse acontecido. como se não tivesse culpa do que me fez ver. do que me fez fazer. e principalmente. do que me fez não fazer – “cabeça de vadio é hospedaria do diabo” – se os homens refletissem um pouco mais sobre sabedoria popular. a sua vereda não seria tão magoada – ao princípio. enquanto jovem e parvo. sempre quis acreditar que todos os caminhos iam dar a roma. não é verdade. alguns não nos levam a lado nenhum. entretém-nos para envelhecermos iludidos no tempo – a juventude é feita de escolhas. de carreiros e avenidas. de inconsciência. leviandade. erro. pouco cérebro. muita barriga. e também muita imortalidade – agora. recrimino-me e interrogo-me: porque fui por ali e não por acolá? se tivesse ido por ali talvez tivesse envelhecido devagarinho. e um homem envelhecido com o vagar do tempo sabe sempre o melhor caminho para chegar a roma – não tenho certeza de que se tivesse tomado outro caminho não me tornaria num ser humano bem pior. podia ter sido um mau pai. um mau filho. um assassino em série. um vagabundo. um viciado em drogas. um sem abrigo. um analfabeto. o que pode ser pior do que um analfabeto? nada – enfim. podia ser qualquer coisa bem mais trágica – bem sei que estou a dar exemplos extremos. os piores dos piores humanos. mas eu gosto de extremos. sem eles ficaria aqui a passar letra de um lado para o outro. a esticar palavra como quem estica fio – vivo agora uma dúvida permanente e arreliadora: o que serei eu se nada do que sou me parece digno de ser? existirá algo no que não sou? poderei ser um dia suficientemente bom com tanta coisa má? quais as incertezas que fazem de mim um iluminado. ou um louco à porta do manicómio? gostava de ter certezas. mas não tenho. talvez por isso viva constantemente um desassossego absoluto. como direi? um desassossego profundamente dorido. que nasce com o escuro e sobrevive com a alvorada – agora. quando não escrevo envelheço. e peço a santa bárbara não para me proteger das trovoadas. mas que encontre um raio que me ilumine o caminho das palavras – e aqui estou. sentado a escrever para não envelhecer. olhando pela minha janela o que resta do mundo. e mesmo que o céu tenha descido mais um pouco até mim. resisto escrevendo-me – sei agora que preciso de escrever algo que sobreviva ao meu tempo. ainda não fui capaz. mas acredito que um dia. envelhecendo um pouco mais. ficando mais lúcido. mais sábio. acabarei por o fazer – até no delírio é necessário acreditar – nada do que fui será futuro. mas não haverá futuro sem nada do que fui – envelhecer é a única forma de gastar o tempo – e aqui estou. a escrever. nesta encruzilhada. com o tempo de trás a teimar em passar para a frente. sem vagar. sem parar. sem piedade. às vezes imoral. carrasco. a informar com subtileza que o caminho é agora curto. e o corpo a dar de si. a cabeça a dar de si. sem saber se sonhar é doença. ou devaneio que vem de nascença – vivo este pavor. como se em mim nada mais pudesse acontecer de novo. dorido. num cotejamento animalesco com o dia de amanhã. anotando as rugas como glosas. dando pontos cruz com cada cabelo esbranquiçado. com cada noite amedrontada. com cada interrogação que encrosto no que temo – e o medo de não ser capaz a agigantar-se. a plantar-se nos ossos. nas articulações. nas falanges distais. e o cérebro aos tombos. a cair sem saber para onde. e os dedos cegos a tatear teclas. a escrever: já não serei capaz. já não sou eu. já não sou o rapaz de dezoito anos. nem o de trinta. muito menos o de quarenta. arrasto-me. medro para dentro. desapareço em olhos encovados num negro trágico e supremo – escrever é um terror. que se repete numa rotação que gira em volta da falta de tempo – que o universo me atire um cometa contra esta couraça de letras agoniadas… e me desfaça num ponto final

 

2.

preciso sobreviver ao passado. preciso viver o presente. preciso esconder-me do tempo. preciso de evadir-me deste corpo – tenho que sair de mim. mas se não souber ou puder. minto-me. finjo que saio. e mesmo fingindo. e sabendo que estou fingindo. tenho que acreditar que saí. e o que vejo e sinto. se não for real. não quero saber. é o mundo que criei e onde escrevo – e agora. o que quero mesmo que viva neste ponto final das pedras 7. sou eu. assim como sou. mesmo fingindo. porque para fingir eu tenho que ser qualquer coisa. qualquer coisa que pensei. vi. ou sonhei – e por cada segundo que vivo fingindo. ou sonhando. a minha torre de babel aproxima-se do universo – que nada em mim se desmorone. que nenhum pranto se faça pelo que não fui capaz. e que nenhuma estrela se apague no que de mim ficar – quando o corpo tiver sumido ao fogo. a alma habitar o universo. e o meu eu terreno sobreviver nos vindouros. então sei que escrevi mais do que uma palavra. mais do que uma inteligência. mais do que um par de olhos. mais do que um livro. e mesmo não sendo tudo o que senti. o que sofri. o que amei. saibam sobre palavra de honra. de que fui sempre mais do que as pedras que carreguei. fui também. e em absoluto… o espaço vazio entre elas – escrevo para continuar a viver em cada neto. em cada bisneto. em cada coração que bata como bate o meu – uma família não nasce repentinamente. demora quatro a cinco gerações a formar-se. a tornar-se forte. a aceitar-se tal como é. a conhecer os seus defeitos. as suas virtudes. a sua forma de caminhar. de gesticular. de olhar. de tocar. de dizer olá. de falar do que sente… porque o que sente faz parte de uma viagem que ninguém sabe onde começou – não podemos parar de sonhar. de resistir quando o corpo estiver cansado. de não resignar quando acreditamos que estamos certos. de equilibrar a balança porque só assim se equilibra a existência. de lutar até à exaustão. e de saber morrer como as árvores. de pé – uma família tem obrigação de recordar os que já partiram. de os lembrar com saudade. e de renovar diariamente os votos de lealdade ao seu nome – só assim seremos uma família absoluta. trazemos de todos um pouco. e de todos nos fizemos assim como somos. únicos  

 


25/11/2022

raiz de um quadrado




 


um quadrado será sempre um quadrado – dois quadrados serão sempre dois quadrados – um quadrado de salto alto será possivelmente um quadrado do sexo feminino – um quadrado de chancas será possivelmente um quadrado de sexo masculino – um quadrado com os ângulos polidos não deixa de ser um quadrado com ângulos – um quadrado esticado pode parecer um retângulo. mas é apenas um quadrado com a mania de ser o que não é – um quadrado feminino de lábios pintados. pode parecer uma senhora. mas não. é apenas um quadrado feminino de lábios pintados – um quadrado masculino com camisa alinhada pode parecer um cavalheiro. mas não. é apenas um quadrado masculino com uma camisa alinhada – um quadrado que teima em ser o que não é. é um quadrado “malade de la tête” e com mania das grandezas – um quadrado intolerante é sempre um quadrado mal-agradecido – um quadrado dominador. é sempre um quadrado castrador – um quadrado mentiroso não deixa de ser quadrado. apenas distorce a realidade para tentar influenciar os outros – um quadrado sem humildade. é um quadrado que viverá sempre só mesmo quando está acompanhado – um quadrado manipulador não deixa de ser quadrado. apenas tenta fazer dos outros um quadrado igual a si – um quadrado sociopata é aquele que quando olha para um retângulo. um cubo. ou um triângulo. diz que são quadrados com defeito – um quadrado egocêntrico é um quadrado que jura que todas as figuras geométricas nasceram de um quadrado – um quadrado garimpeiro é um quadrado que teima encontrar em si o que vê nos outros – moral dos quadrados parlapatões. olhem para o que digo. mas não para o que faço – eu não sei que figura geométrica sou. às vezes gosto dos quadrados. às vezes dos cubos. às vezes dos cilindros. e se me perguntarem porque gosto. não sei. gosto porque gosto. sem nenhuma razão divina. científica. ou existencial – gosto de todas as figuras geométricas. mesmo daquelas que tem ângulos obtusos. gosto de diversidade. de cores. de música. gosto do mar e de gaivotas. e também gosto de ver e sentir o que os outros veem e sentem – há o meu mundo. e um outro mundo feito de outros lados onde eu também gosto de existir – mas o que gosto mesmo. é de prismas. une todos os segmentos de reta num ponto. e é nesse ponto que percebo o sentido de tudo o que me rodeia – todas as figuras geométricas têm a sua razão para existir. mesmo que a sua passagem pela terra seja uma perda de tempo – a razão para existirem é essa mesmo. percebermos que são uma perda de tempo

 


11/11/2022

pedras 6

 




[túnel do tempo]

raio de peso perverso. malvado. estúpido e ordinário. que bruxa má me carregou as costas com estas pedras surrentas. emporcalhadas. imundas. excrementadas de um mundo que nunca fui capaz de me adaptar – mesmo não sabendo para onde vou amanhã. ou outro qualquer dia. teimo e empurro o que trago comigo por castigo ou sorte. penitencio-me. fustigo-me com lamentos. crucifico-me ao tempo terrestre que me pariu assim como sou. e carrego o que me resta dos ossos porque a carne ardeu neste inferno em que existo – mas teimo. teimo para dar sentido às pedras que me calharam em sorte. ou por malvadez. mas mesmo que fiquem do tamanho da lua. levarei o corpo até ao último dia – e a dúvida continua. escrevo porque penso. ou escrevo para me fazer existir? não sei. mas teimo em saber – amarro no que me sobra do futuro e parto. parto a correr pelas fotos dependuradas ao longo dos anos. como se elas me pudessem remover as incertezas. como se me pudessem oferecer um novo final para o que já vivi. como se me pudessem fazer regressar quem já partiu – nesta viagem alucinada recordo o afeto de todos aqueles que amei e um dia estiveram vivos. e fico com a sensação estranha de que ainda posso voltar a abraçá-los. e de que os lábios ainda podem dizer o que não foi dito – e todo eu numa melancolia extrema. difícil. a magoar a carne e o pensamento. cada vez mais mergulhado num tinteiro de ideias parvas – vivo afundado numa irracionalidade louca. doentia. e sem fim – às vezes saio de mim. e vou à procura de me encontrar. vou por aqui e por ali. sem rumo. sem preconceito. e sem hora para voltar. apenas vou. assim como quem vai para não chegar a lado nenhum – às vezes vou porque o corpo quer. mas também vou por me sentir farto de ser como sou. de querer certezas para as incertezas. de procurar respostas para o que ainda não compreendo. e do que me recuso aceitar como lei universal: não envelhecerei. e que um raio de zeus me incendeie se de mim brotar um cabelo branco – às vezes vou zangado apenas por saber que quero ser o que nunca serei. e por mais que pense. por mais que me tente libertar do que vive dentro de mim. do que vive em mim sem nome. torno-me desvigoroso. que é o mesmo que dizer fraco. irracional – e sem que entenda nada de relógios. os segundos fizeram-se anos. e a desilusão a trabalhar. a ficar gigantesca. muito maior do que o solstício de inverno: os dias nunca clareiam num homem revoltoso – a dúvida a esburacar o coração e a perguntar. será que a minha informação genética está danificada? será que carrego apenas informação medíocre? ou contaminei-me com o nascimento? será essa contaminação um desígnio do universo? ou de satanás? ou de deus? não sei. juro que não sei – “e o senhor fez brotar da terra toda qualidade de árvores agradáveis à vista e boas para comida, bem como a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal” gênesis 2:9 – sou um inculto. um iletrado. um insipiente. um tolo. como é que poderia desejar uma árvore se nunca tive um jardim – em desânimo deixo-me cair no túnel do tempo e viajo até onde a raiva me permite chegar – às vezes vou ao futuro. mas logo fujo para o passado. é aqui que dou comigo vivo. no futuro acabo sempre morto. e nunca consigo chegar a lado nenhum – como se houvesse uma máquina para andar de um lado para outro. não há. a única máquina é a minha mente. distorcida da realidade. perigosa. por querer alterar não o mundo. mas o que vive dentro de mim – e quando pergunto. o que vive afinal dentro de mim? nunca sei responder. é qualquer coisa que fala sem boca. que anda sem pernas. e que vê sem olhos. é como se caminhasse num carril de comboio e houvesse sempre uma dessas máquinas diabólicas a tentar apanhar-me. há dias em que salto do carril. mas também há dias que prefiro enfrentá-la. e deixo-me morrer num milésimo de segundo. e desapareço com estrondo. para aparecer logo de seguida na mesma linha e no mesmo local – há estradas que não nos levam a lado nenhum. existem para nos enganar. para nos iludir com um fim feliz. e afinal… o que existe mesmo. é o fim da esperança – às vezes sinto-me mais para lá de que para cá. meio louco ou coisa parecida. a viver entre a realidade e a ilusão. entre as forças do bem. e o desaparecimento. sem saber dizer coisa com coisa. só o que escrevo continua a fazer sentido – acredito que haja loucos internados com menor gravidade. mas que posso eu fazer por eles se nem por mim faço? sinto-me preso num colete de forças. e mais preocupante. sinto que este colete que vesti. sem nunca o desejar. aos poucos. tornou-se parte da minha pele. e agora. que estou grande e sem certezas de nada. é por ele que respiro e me atiro contra as quatro paredes em que sobrevivo – interrogo-me então: porque sou desajeitado a pensar? não sei. acreditem que não sei nada. o que sei é que sinto saudade do colo da minha mãe. da mão do meu pai. de uma noite onde o batimento do coração. melodiosamente. entretém o silêncio do universo – nessas noites em que me ouço sei que estou vivo – é então que enraiveço e me faço existir mesmo nas fotos em que não me vejo – que tontaria. que idiotice – todos tem o direito de crer em alguma coisa. nem que seja numa pedra mágica que. depois de esfregada. nos faz acreditar que a vida é o resultado do bater de asas de uma borboleta na austrália. e que o melhor está ainda para chegar – esta vida que vou vivendo deve-me esse enredo. mas se me negar. se me renegar. eu irei atrás dela com o que me resta. de pouco farei muito. no absoluto encontrarei forças. na ingratidão moldarei o perdão. alimentarei o desespero com fé. e mesmo que o vazio onde vivo cresça para lá de onde me escondo. mesmo que os olhos se façam parede. mesmo que as pedras se façam túmulo. eu irei. irei pelo caminho que me queira levar. e a algum lado hei de chegar – sou o que o tempo me carregou. e assim chegarei até ao último dia 

 


29/10/2022

deambulações noturnas XLV

 



foto google



o meu mundo é cada vez mais pequeno. 
às vezes torna-se tão pequeno que só me equilibro em ponta dos pés



25/10/2022

pedras 5

 





[atena]

“segundo epicuro. para atingir a certeza é necessário confiar naquilo que foi recebido passivamente, na sensação pura e, por consequência, nas ideias gerais que se formam no espírito (como resultado dos dados sensíveis recebidos pela faculdade sensitiva).” – gostava de ter a certeza de epicuro. mas não tenho. nunca vivi passivamente. carreguei pedras que não lembra ao diabo. e quando conseguia livrar-me de alguma. logo dava uma topada noutra – o que quero acreditar saber. sem certezas porque nunca as tive. é que as pedras fizeram o meu caminho. pisei-as. suportaram-me. e cheguei até aqui – todo o meu percurso foi feito de sonhos e pedras: os sonhos. imolei-os em resignação. as pedras… são o meu jardim de inertes – trabalhei o meu próprio destino. mas não me canso de me interrogar: o destino está traçado à nascença? em boa verdade. acredito que o destino é o que encontramos depois da procura – se somos guerreiros. procuramos guerra. se somos agricultores. cavamos terra. se somos poetas. escrevemos poemas. a arte com que desempenhamos a nossa missão nos gratificará. ou punirá – e eu fui o quê? ainda não sei. o que sei é que não sou poeta e não sei fazer poemas. o que gosto mesmo é de prosa. que na maior parte das vezes é coisa idiota. ou um inferno para quem lê. e para mim. o estilista. aquele que liga as letras umas às outras. creio que sou um mártir. sempre que escrevo imolo-me num fogo que arde e não se vê – quando procurei aventura encontrei-a. à medida da minha coragem. quando procurei arte. sacrifiquei-me. à medida da minha mão. ofereci-me à deusa da sabedoria: mas atena não gosta de sonhadores – sei que posso sempre dizer que a arte não se define. e que cada artista. ou pseudoartista. cria a sua arte como bem a entende. ou como a vê. ou a sente. ou como o magoa – haverá sempre alguém que a olhará a nossa arte com sarcasmo. ou piedade. ou alegria. ou tristeza. ou com indiferença. sem nunca perceber que a arte é simplesmente aquilo que tiramos de nós. quase sempre. sem poder acrescentar nem mais uma vírgula. ou um ponto final. apenas porque o corpo não dá mais: a mão não escreve mais. o pincel não pinta mais. o pulmão colapsou. o verbo espatifou-se. e o corpo rende-se à invisibilidade – para a maior parte dos artistas a glória é um abismo sem fundo – é nesta altura que o artista se entrega a uma dor lacerante. que o rasga desde a mão a um imenso que não tem fim. e descobre que a arte. a verdadeira arte. vive apenas no olimpo. ao lado dos deuses. ou dos mestres. e esta. a sua. vive apenas dentro dele – o bem e o mal. o certo e errado. a honra e a vergonha. a sorte e o azar. a família que nos trouxe ao mundo. os amigos que conquistamos. é nesta roleta da vida que um dia apostamos tudo no vermelho. e sai o preto – as forças do universo também são insondáveis – e depois. já com o preto encrostado na pele. em luto profundo. tão profundo que os ecos dos lamentos se escondem no corpo. sorvidos pelos pulmões. pelos rins. pelo fígado. pelo cérebro. pelo pâncreas. ou em algum local que nos deixa surdos. aos poucos deixamos de nos ouvir – e o corpo de tanto calar. em desespero. pede-nos para implodir – colocamo-nos então perto do abismo. um pé em terra e outro na família. e no céu os abutres evocam-no com gozo para um último grito de covardia – raio de passarada. ignóbeis voadores. ratazanas do ar. quem vos ungiu com óleos consagrados? juntam-se em bando. como se fossem donos do destino. como se os tivesse fecundado e parido por minha vontade – e agora quase mártir. trucidado pela falta de honra. de bondade. de esperança. de harmonia dentro e fora de mim. o meu imperativo categórico. trazido de kant. ruiu como um castelo de cartas. a minha razão é apenas a minha razão. já não será mais uma lei universal. assassinei-me com o meu próprio punhal. espetei atena no coração – não há mais nenhum tipo de compreensão para um pseudoartista. a sentença é morte por asfixia. tão devagarinho que quando estamos prestes a deixar de respirar ainda acreditamos ser possível recuperar o que sempre esteve perdido: a arte – gostava de saber se escrevo porque penso. ou escrevo para me fazer existir? mas não sei – não confio em nada porque não tenho a certeza de nada – às vezes esforço-me para acreditar que o tempo fluiu em sentido oposto aos ponteiros do relógio. é quando me olho ao espelho e pergunto: onde está o sorriso da minha criança? perdi-me pelos dias. envelheci. enlouqueci. e aos poucos fui-me suicidando com pensamentos – viciei-me no passado. enleei-me em interrogações. apanhei overdoses de medo. ressaquei com dores insuportáveis. e recaí sempre que me livrava de alguma pedra – apunhalei-me centenas de vezes sem nunca ver uma gota de sangue. e chorei como choram as crianças. sem nunca me ter perdoado – o cabelo é agora branco. os olhos fugiram para trás das pálpebras. a boca já não consegue dizer palavras grandes. e os passos são pequeninos ao contrário das noites – só as interrogações continuam a magoar-me como dantes – a vontade de me estrangular com o que não sei é persistente. gostava de me fazer desaparecer e reaparecer em 2122. acredito que por essa altura a ciência já consiga transplantar cérebros – vivo agora e interrogo-me: sou obra de deus ou do universo?  ou cordeiro num altar dos sacrifícios? ou uma experiência de uma entidade extraterrestre? a angústia capturou a esperança. em resumo. às vezes estou meio morto. às vezes meio vivo. caminho de andarilho para chegar mais longe. num vagar doentio já que ninguém me espera. e peço ao universo uma porta para o que ainda tenho dentro de mim – se um dia ficar gelado. mesmo que ainda não seja a minha hora. juro que aproveito e fico morto para sempre – o tempo sempre foi meu inimigo. e para mim. sempre correu em direção ao abismo – mas agora. que a distância se torna cada vez mais curta. do que tenho realmente medo… é que um dia chova pedras – freud escreveu que os sonhos noturnos são desejos reprimidos que procuramos realizar. eu já não sonho. vivo apenas cada dia como se fosse o último. e também já não peço arte. peço saúde e paz interior 



14/10/2022

pedras 4

 





[gaivotas]

a minha única forma de evasão à loucura é a caneta. ou teclas – agora é tudo moderno. tudo tecnológico. tudo numa velocidade enfurecida. com gês para lá e para cá. a fabricar estradas que ninguém consegue ver. e as portas USB escancaradas a vírus que chegam sem se saber de onde. e mais fios. mais wireless. o antivírus a trabalhar como um louco. e o correio indesejado a entrar para SPAM. enquanto os convites para sexo virtual apelam à virilidade de um visa dourado – o corpo carregado de pedras e dúvidas. debruçado sobre letras. a tatear melancolia. e as luminárias acesas. a clarear as incertezas num espaço cerebral vazio de grandeza – juro que gostava de saber se escrevo porque penso. ou se escrevo para me fazer existir. mas não sei – talvez as pedras existam para fazerem de mim um terráqueo melhor. um género de livre trânsito para a imortalidade da alma. ou energia: quantas mais pedras carregares. mais constelações visitarás quando abandonares o planeta terra. e quem sabe. se as pedras forem mesmo grandes. do tamanho da taj mahal. um dia. terás um planeta sem pedras só para ti – é desta forma que o universo recupera a energia que acumulamos ao logo da vida: lava-nos. purga-nos do erro e das pedras. e depois. acolhe-nos para fazer de nós uma estrela. ou um cometa. ou outra qualquer coisa que vagueie pelo espaço – nada do que escrevo é certo. nada do que escrevo me leva para longe do mundo. ou para outra dimensão. ou planeta. ou me faz renascer – hoje. sei melhor do que ontem que tudo o que escrevo nunca passará de um rascunho. um amontoado de riscos quase inúteis. lixo. digo eu sem piedade – então porque escrevo? escrevo para repousar. para conseguir sossego. para viver o que as gaivotas vivem: surfar o vento. voar entre o mar e os astros. planar o sol. e sentir na pele a imensidão de uma terra azul. redonda. com almas. sol e sal – e ao fim de cada voo. quando regresso a mim. absolutamente saciado da terra azul. redonda. com almas. sol e sal. entrelaço-me nas memórias. e ali fico numa desapoquentação absoluta. a trazer à vida todos aqueles que não sou capaz de esquecer – estou algemado. preso às reminiscências. a respirar sofrido. a procurar um atalho que me devolva a serenidade das crianças – e por aqui ando. a recolher despojos da minha guerra. a absolver o erro “da minha culpa. tão grande culpa” batendo com a mão no peito vezes sem conta. afligindo-me. martirizando-me. angustiando-me. gerando dor até que esta se agigante e o erro se torne insignificante – tal como o ulisses se fez passar por mendigo para entrar em ítaca. também eu me farei passar por um ser de luz para entrar no universo – um dia. talvez daqui a um século. esse universo em que acredito. me regurgite novamente neste planeta azul. redondo. com almas. sol e sal. e quem sabe. dessa vez… sem pedras. apanharei uma estrada em vez de um atalho – viver não é fácil. fabricamos toneladas de amor. dia após dia. levamo-lo às árvores. aos animais. às nuvens. às montanhas. aos mares. nos canapés. nas festividades. aos amigos. até aos inimigos em forma de perdão. e quando nos sentamos diante do pôr do sol… chega a noite a galope. e leva-nos tudo: a terra azul. redonda. com almas. sol. e sal. leva-nos o amor. ficamos solitários. somos o mundo num mundo sem luz. e nenhuma estrela se senta a nosso lado. tornamo-nos mendigos. sem abrigos. ficamos tão sozinhos que o universo cabe dentro de nós – só nos resta esperar pelo dia para voltar ao amor. fabricá-lo é sobrevivência

 


08/10/2022

8 outubro [1924]








no passado. este dia era de festa - a família rodeava a nossa mãe. cantava os parabéns. e pedia vida longa - depois. entregávamos beijos. muitos. com sorrisos e carinhos - era um dia bonito. "como direi? era uma família absoluta" reunida em volta de uma mulher absoluta - hoje continuamos uma família absoluta. eu e a maria joão somos agora o porta estandarte desta família absoluta. e o que peço. é que a nossa memória coletiva seja também ela absoluta. a minha mãe. a vossa avó. a vossa visavó. foi o esteio desta família - com a idade começo a acreditar que [todas]as mulheres são a única razão porque o "mundo pula e avança"  


 

03/10/2022

pedras 3

 







[ao sétimo dia descansa]

 

I.      

em criança. ao domingo. o assado deslizava furtivamente pelo corredor da minha casa-família. *“era uma casa - como direi? - absoluta” – o génio da carne assada. em concertação com a doutrina da igreja católica. e também dos meus pais. libertava-se do aparador em folguedo anunciando aleluias: “bendito seja o senhor. que de dia em dia nos cumula de benefícios. salmos 68.19” – assim era a minha casa. de absoluta gratidão: eu. o meu pai. a minha mãe. a minha irmã. o meu irmão. a minha lurdes. todos felizes. todos crentes na senhora do sameiro. e gratos por nos acolher na sua graça e proteção – eram domingos absolutos. numa casa absoluta. num amor também absoluto. com comida melhorada. roupas melhoradas. sorrisos melhorados. e quando nada falta. nem se ralha. nem o pão amarga – a bondade de deus morava na minha casa – eu crescia num quarto enorme: uma cama de bilros parada a norte. duas mesinhas de cabeceira amarradas a dois abajures. e à direita um guarda-vestidos a esfregar-se no teto – a sul. uma cómoda aformoseada com um espelho mágico que. quando lhe perguntava quem era a criança mais feliz do universo respondia: és tu – à esquerda uma cadeira forrada a veludo. e uma janela aberta ao mundo. tudo iluminado por um candeeiro pregado ao teto – era um quarto feliz com uma criança absolutamente feliz. que sonhava sem saber que um dia ia crescer – antes do sino do carmo bater chamamento. já o cheiro à carne assada lembrava que era dia de comungar – depois de percorrer a casa absoluta. divisão a divisão. entra pelo meu quarto. e pé ante pé. toma de assalto o meu sistema olfativo e. delicadamente. desenlaça-me as pálpebras do escuro – as pupilas apanham as primeiras nesgas de luz. o corpo vira-se para um lado. depois para o outro. espreguiça-se até não crescer mais. sorri como quem acaba de nascer pela primeira vez. e abre-se graciosamente como um girassol para mais um dia a medrar

-- toca a levantar. vais chegar atrasado à missa

bradava a minha mãe socorrida pela lurdes

-- menino zé luisinho. levante-se já passa das onze

o sétimo dia era do senhor. e na minha casa as leis do senhor eram levadas a preceito. visitar a igreja fazia parte do cardápio domingueiro juntamente com sustento melhorado. “nem só do pão o homem viverá. mas de toda palavra que procede da boca de deus. mateus 4.4” – já com os olhos acesos de pressa. pulava do ninho e corria em velocidade para a casa de banho. atirava apressadamente duas mãozadas de água para a face. um pente corrido à feição do cabelo. e por fim. umas bombadas de laca para fixar a poupa – em espera. aos pés da cama. a roupa domingueira. bem dobrada e passada. a cheirar a sabão e generosidade; aprumava-me ajustando-a ao corpo. calça vincada. camisa alinhada. e sapato de couro polido a graxa. e pronto. bonito e asseado para receber o senhor em mim – de seguida. uma chávena de leite com cevada e uma bucha de pão. e lá ia eu em passo de quem é bem-afortunado  voava em perdão até à casa do meu senhor – mal entrava no templo dava de frente com o meu cristo pregado à cruz. confesso que nunca me habituei à brutalidade daquela imagem. àquele ar sofrido. com os olhos virados para o chão. com uma chapa em cima da cabeça a dizer que era o rei dos nazarenos. e ali pregado com taxas. com espinhos selvagens a magoar mais do que o corpo. e eu sem perceber de onde vinha tanta malvadez – aquela imagem roubava-me a inocência – fazia-lhe então uma vénia respeitosa desenhando com a mão direita uma cruz em mim. cabeça bem encaixada nos ombros. orgulhoso. vaidoso da minha prole. subia até ao altar-mor. ajoelhava-me pesarosamente para o sacrário. onde a píxide. o ostensório. e a eucaristia estavam guardadas. e logo procurava um lugar onde o santíssimo pudesse ver a minha devoção – sentava-me calmamente. e ali ficava estático até que a palavra litúrgica se fizesse ouvir – o sr. padre era um homem de palavra. anunciava a pregação para as onze e trinta. e ao bater da meia. lá vinha ele. sempre com cara de quem era perseguido pelo rei herodes – atrás dele. dois acólitos novinhos que. com as suas túnicas brancas. mais pareciam anjos acabados de sair da cozedura – sisudo. a olhar o chão. ajoelhava-se para onde o senhor estava escondido e. de seguida. abria o livro sagrado – ali estava eu. cheio de fé. sem nada que me pesasse no corpo. nem pedras. nem a consciência. nem pecados mortais. nem omissões – naquele tempo o pecado venial era a minha distração de criança. um palavrão ali. outro acolá. uma mentira à lurdes. uma resmunguice com a minha mãe. mas com o meu pai… não ousava sair da linha. tinha uma mão que parecia uma máquina de lavar. torcia mesmo a frio – velava a missa com devoção. levanta-me sempre que os crentes se levantavam. eles já conheciam o andamento litúrgico de trás para a frente. eu era noviço. mas quando o senhor padre arrancava a plissar com o ato de contrição. e proferia por minha culpa. tão grande culpa. batia com a mão no peito com tanta força que as costelas até rangiam – era um bom miúdo. sem nenhuma pedra às costas. sem culpa de nada. crente. já com a primeira comunhão feita. confessado e absolvido por três pai-nossos e duas ave-marias. puro como o branco. e com a alma entregue aos desígnios de deus até ao dia do juízo final – a missa ia andando no seu passo secular. e eu ia fazendo o que era exigido a um bom menino. rezava o pai-nosso. fazia o sinal da cruz com elegância. orava pelos falecidos. pelos santos. pelos infiéis. pelas missões. pela família. pela salvação do mundo. e cobria-me de vergonha sempre que o ministro de deus erguia a hóstia consagrada e dizia: “tomai e comei. isto é o meu corpo que será entregue por vós”. e a sineta. na mão de um acólico. agitava-se a exigir silêncio absoluto – eu também dentro de mim – depois. comungava. sentia deus tomar conta das minhas entranhas. pedia saúde. luz. proteção para toda a família. e esperava ansiosamente pelas últimas palavras do dono daquela gente toda: “ide em paz e o senhor vos acompanhe” – e lá ia eu em passo feliz. agora livre de pecados que nunca tinha tido – hoje. sei que nenhuma criança no mundo é pecadora – acelerava para um assado que não podia esperar. muito menos o meu pai que ao bater da uma estava sentado à cabeceira da mesa

 

II.

hoje é domingo. acordo. procurei pelo assado. cheirou-me a pedras. procurei pela minha mãe e não a senti. o meu pai já não vem almoçar há mais de vinte anos. e a lurdes. já não me manda correr para a missa das onze e trinta. sabe que perdi a fé – entreguei-me ao universo. serão as suas forças que me carregarão até a última morada: com fogo vos abandonarei. e em cinzas habitarei o mar – dessa casa absoluta resta-me a lurdes. a conspirar a nosso favor há cinco gerações; tratou dos meus bisavós. avós. dos meus pais. de mim e dos meus irmãos. das minhas sobrinhas. dos meus filhos. e agora é a bisa dos meus netos – a lurdes ainda mantem a mesma fé. devota da virgem maria. a nossa senhora. a filha de deus pai. a mãe de deus filho. e a esposa de deus espírito santo – todos os nossos problemas são negociados por ação direta da lurdes com deus. escuta a missa diariamente na rádio renascença. e em troca da sua devoção. pede proteção para todos aqueles que ama – acredito que não haverá ninguém mais influente junto de todo o poderoso do que a lurdes. fala com ele todo o dia. diria que são unha com carne – é a lurdes quem ainda pede perdão para as minhas faltas. jura ao seu deus que ainda sou o mesmo menino. só que envelheci e desencantei-me – este deus da lurdes nunca quis nada comigo. nunca percebi o porquê. nunca lhe fiz nada de mal. mas vá-se lá saber as suas razões. carregou-me de pedras – tempos houve em que acreditava na passagem bíblica - romanos 11.33: “quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” – a lurdes diz que a minha falta de fé é obra do diabo.  coisa de satanás.  que tem mil chifres e mil formas de nos fazer pecar. mas que deus não dorme. está em todo lado. e nunca abandona uma ovelha do seu rebanho – não sei se é ou não verdade. o que sei é que tenho duas hérnias e já não tenho lida para carregar pedras que não mereço – vida severina. o tempo escapa-se de mim. e eu a correr sem saber para onde. como se ainda pudesse chegar a algum lado. como se ainda fosse possível voltar atrás e começar de novo. como se o sino do carmo voltasse a bater o meu nome – nos dias em que me dou ao mundo. olho para as mãos e pergunto: quais são os teus desígnios se o que penso teima em não se fazer palavra? estou agora preso ao universo de aromas. a recordar a minha fé absoluta. numa casa também ela absoluta. a pedir que o sino não bata a defunto enquanto não tiver respostas – preciso de saber se escrevo porque penso. ou escrevo para me fazer existir – agora. começo a habituar-me a viver cada dia como se fosse o último. a resistir. a sobreviver. e por cada raio de luz que colho. desato um sorriso ao universo. às vezes apaixonado. às vezes encantado. às vezes zangado. desiludido também. às vezes apenas por me sentir quase pronto para a invisibilidade. e é quando parto para o lado oposto de mim. e ali fico criança. à espera que o céu me caia nos braços

 

*herberto hélder



 

09/09/2022

pedras 2

 





[saudade]

tenho saudade de ser criança. tenho saudade de dar a mão ao senhor meu pai. de me sentar no colo da senhora minha mãe. tenho saudade do tempo em que desejava o que ainda não existia. de querer o impossível. da infinidade do corpo. de me encontrar sem castigos – o tempo voou. e com esse voo chegaram os relógios. os dias. as normas. os valores. os princípios. o amor. a desculpa. a etiqueta. a mentira. a honra. a insegurança. a maldade… e o fim da pureza – tornei-me pecador – a vela do batismo apagou-se. passei a viver entre a noite e o dia. entre o certo e o arrependimento. entre amar os outros e amar o que sou. tornei-me um soldado ao serviço da estupidez. inventei a maior idade. forjei desejos para os castrar com manigâncias. e criei infernos para poder viver o céu – agora. já não desejo o impossível. a minha criança interior é. humildemente. um alien resignado – o que gostava mesmo de saber é se escrevo porque penso. ou se escrevo para me fazer existir. mas não sei. acredito que nunca saberei – agora vivo entre nostalgia e medo. é nesta fraqueza que me sento a escrever. interrogando-me. o que mais virá para fazer de mim um defunto? estou aqui. talvez quase morto. talvez só medo. talvez as duas coisas. talvez… nem sei. estou qualquer coisa. que não sabendo dizer bem que coisa é. digo assim para que me entendam: estou pré-morto – ruy belo no seu poema a mão no arado escreveu: é triste ir pela vida como quem regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro eu escrevo. sim. é triste – cavei um fosso até ao centro da terra. e é com a terra que cavei que me cubro diariamente – vou de norte para sul. sempre dos pássaros de ruy belo para as minhas gaivotas. sempre de romeu para a julieta. sempre de mim para os que amo ilimitadamente – não se ama muito. ama-se. nenhum amor é demais. por isso me curvo em gratidão para todos aqueles que me ensinaram a amar sem limites – sou um homem perdido de amores. amo os meus pais com saudade. a minha companheira. os meus filhos. as minhas noras. os meus netos. os meus irmãos. os meus amigos. alguns recentes. outros. da minha nascença. amo viver. amo as gaivotas. o mar. os meus cães. amo esta sensação de quem ama. às vezes até amo as pedras que carrego – que mais pode um homem viver se não o amor? só a harmonia. os afetos. o perdão. e a compaixão dão sentido à nossa pegada terrestre – beethoven a tocar. a empurrar-me para o tempo dos esquecidos. enquanto as mãos massajam o coração para que não pare sem que o buraco chegue ao outro lado do mundo – pudesse eu ter sido água do rio. e um dia. talvez morasse no fundo do mar – mas não fui água. nem jangada. nem peixe. nem margem para que ao menos pudesse ver a água passar. fui… sei lá bem o quê. fui… às vezes crescido em demasia. outras. parado a olhar a imensidão de tudo o que me rodeava. a interrogar-me. porque há peixes pequenos se o mar é tão grande? carrego o meu próprio destino. e nunca consegui um antidoto para o deixar apeado numa ponta do fim do mundo – somos o que somos. nasci com esta sorte. agora… procurar-me é a minha distração – aqui ando. sem eira nem beira. a avaliar as incertezas. às vezes a olhar o universo. às vezes a contar os dedos dos pés. com as mãos atravessadas no que julgo certo em mim. a suicidar-me pelo que não sei. sem que nenhum rio me queira levar. sem que nenhum pássaro me queira para descansar. sem que nenhum mágico me queira fazer desaparecer – fui por onde atalhei. às vezes como peregrino. às vezes a pé por desgraça. outras a correr por não saber parar sem morrer. mas fui. fui sem nunca perceber que o mundo não pode oferecer a todos o que não chega para alguns – triste destino que me levou como um conto. de pedras me carregou. com atalhos me iludiu – o relógio é carrasco do erro – agora. no tempo que me castiga. só quero saber se escrevo porque penso. ou se escrevo para me fazer existir – somos o que somos. cumpramos então o que somos – o que quero mesmo. repito. o que quero mesmo. é um dia chegar ao mar. mas se nenhum rio me carregar. se nenhum pássaro me levar. irei dependurado num balão. e quando uma onda me exaltar. deixo-me cair até que os olhos se afoguem na escuridão. e se um tubarão me engolir. que me retalhe em pedaços. e me regurgite numa ilha deserta – preciso de harmonia e paz. preciso de me encontrar novamente com o impossível. acreditar. serenar e aceitar. nada é pior de que um corpo esquartejado de sonhos – estou cansado. sinto as mãos a abrandar. e o corpo a mingar. mas se o meu cérebro tivesse pedais… juro que subia ao santuário da senhora da graça. e quem sabe contar-lhe-ia uma desgraça: falava-lhe de mim e do meu destino. e sem a maçar. mostrava-lhe a gaveta onde me escondo quando me perco em interrogações. fica num baixio. mesmo por detrás do olho esquerdo. ao lado do ouvido. e por baixa da língua. é aqui que todos os dias faço o milagre da incerteza sobreviver ao destino – porque me carregaram as costas de pedras se nem pedi para nascer? estou enfermo. sinto o corpo a bracejar. a resmungar. sinto a loucura a chegar devagarinho só para não assustar – e eu por aqui. a pensar. um dia hei de encontrar-me com as palavras e farei o meu epitáfio: aqui. nesta urna de cinzas. vive a única certeza de quem nasce

 


 

22/08/2022

pedras 1

 

 




[incerteza]

às vezes gostava de saber se falo porque penso. ou se falo para me fazer existir – não tenho nenhuma certeza verdadeira além da dúvida em que vivo. só o estridor provocado pela passagem irrequieta do ar me faz acreditar que existo mesmo sem pensar – às vezes ouço o mar. e mesmo não o vendo. sei que está algures por aí colorido de gaivotas e sal – às vezes em silêncio ouço-me. mas não me vejo. e pergunto: o que há dentro de mim que fala enquanto a boca se cala. não sei – qual a razão para que uma pedra exista num determinado lugar e não noutro? não sei. provavelmente não há nenhuma razão. se há ninguém sabe. eu pelo menos não sei nada do aparecimento de pedras. mesmo daquelas que carrego. nasceram-me nas costas. como as corcundas – e lá vou eu caminhando na incerteza. carregando a dor das pedras e da voz que se esconde atrás da boca – leminski no seu poema dor elegante fala deste sofrimento

 

Um homem com uma dor

É muito mais elegante

Caminha assim de lado

Como se chegando atrasado

Andasse mais adiante

 

Carrega o peso da dor

Como se portasse medalhas

Uma coroa, um milhão de dólares

Ou coisa que os valha

 

Ópios, édens, analgésicos

Não me toquem nessa dor

Ela é tudo o que me sobra

Sofrer vai ser a minha última obra

 

não sei se vou elegante. sei que vou. vou com a minha corcunda. empurrando as pedras de um lado para o outro para chegar mais adiante – mas não gosto das pedras. pelo menos destas que carrego. das outras nada digo. não são minhas e nada fiz para que existissem. quem as mereceu que se enfade. é labuta sua – e eu aqui a falar das pedras para evitar falar de mim. ou de pássaros. ou de malmequeres. pão com marmelada. água benta. ou desesperança – tanta incerteza – às vezes escrevo. e não sei se o que escrevo é resultado do que penso. ou escrevo para fazer existir o que não consigo trazer à boca – às vezes quero apanhar transporte para as maldivas. e ao fim do dia estou em monção – às vezes saio com uma roupinha levezinha. de verão. e vou sem pensar pelo meio das pedras como se não tivesse saído para lado nenhum. e sem que nada o fizesse adivinhar. o dia cresce para um inverno frio. de enregelar. e é quando penso: precisava de um casaquinho de lã para me aconchegar. ou de um abraço. ou de qualquer coisa que me devolva o calor – é o que a vida me deu. e lá voltam as incertezas. não seria mais fácil ir de avião para as maldivas em vez de me apear numa paragem de autocarro? apesar das incertezas. acredito que um dia apanharei o meu autocarro. e mesmo que não vá para as maldivas. irei para onde me levar – será nesta incerteza que um dia chegarei aonde nunca vivi. levar-me-ei à procura de um mundo que não termine atrás da boca. carregarei o que tiver que ser. e mesmo que o destino se faça numa pedra maior que a lua. dinamitá-la-ei com tudo o que resta de mim – mas se tiver que carregar a pedra-lua até ao fim do que sou. que nenhum ópio. édens. ou analgésicos me iluda com o que nunca tive. eu sou a incerteza maior. certo em mim só o tempo a passar – sacudo-me por dentro e por fora e pergunto: porque vivo neste sufoco de incertezas? darão as pedras sentido à dor que carrego sem elegância? seria o mesmo sem elas? escreveria sem este peso? não sei. o que sei é que ”tenho a verdadeira sensação de mim mesmo apenas quando eu estou insuportavelmente infeliz”* – esta sensação de mim acrescenta-me palavras. pedras e medo. digo. muitas palavras. muitas pedras… e ainda mais medo – não quero um édipo rei para os meus desabafos. mesmo que em cada um deles eu encontre mais incertezas do que dias vividos – viver não é uma tragédia. viver é a exponenciação de existir –**“não existe testemunha mais terrível. acusador mais poderoso. do que a consciência que habita em nós”. é esta consciência doentia que me faz trazer para fora da boca o que não consigo guardar. remexendo-me numa agonia absoluta. agitando-me. arrastando-me por cada canto de mim. gritando para lá do que me é permitido ouvir. escrevendo palavra a palavra mesmo quando a boca se contorce em clemência; sei agora que o que não sei escrever nunca existirá – ninguém pode dizer que está vivo se não existir para além de uma boca solta. digo eu. que não sei se falo porque penso. ou falo para existir – a dúvida é devastadora. envelheço carregado de pedras. como se vivesse dentro da fome com um manjar em cima da mesa – e o corpo preso a uma pergunta horrível. catastrófica na dor: porque me nasceram pedras nas costas? quero acreditar que existam para que um dia. talvez breve. possa despedir-me de mim sem saudade – triste forma de desaparecer – é tudo louco. é este ardor. este fervor. este trepar do feijoeiro malvado que me dá coragem para trazer à escrita o que digo em silêncio – acredito que um dia. mais perto do fim de tudo. quando as árvores já não suportarem o peso das andorinhas. possa saber tudo sobre pedras – por esses finais. sei que a delicadeza frágil dos dias iludirá o pensamento. pacificará a culpabilidade perfumando o caminho com jasmim forte e doce. oferecendo-me um pedaço do universo sem pedras e medo – farei então com as próprias mãos a cova onde me apagarei. oferecerei uma lágrima por cada dia perdido. por cada nome olvidado. por cada noite acesa. por cada estrela fundida. juntarei os pés um ao outro para nunca mais os separar. apontarei os olhos com coragem para o fim de tudo e deixar-me-ei cair para sempre no final deste mundo-pedra – será apenas o momento em que recusarei dar um pouco mais de mim

 

*franz kafka

** Sófocles


15/07/2022

dia ou noite

 





seis da manhã. a aurora empurra o escuro para a terra dos fantasmas. e interrogo-me: pertenço ao dia ou à noite? bem gostava de saber responder. mas não sei – às vezes é dia e quero que a noite aconteça. outras. é noite e digo: nunca mais amanhece – só quero o que não tenho. e tudo o que tenho não é suficiente para fabricar luz quando escurece. ou escuro quando aclara – por aqui ando a carregar esta gula embriagada de palavras. sorte a minha. um dia morrerei empanturrado com uma hipérbole – que se lixe. prefiro morrer com uma figura de estilo. do que ser atacado por uma faca de dois gumes – escreverei até que os dedos me caiam em caos. ou... o meu amor me chame para os seus braços



06/07/2022

o meu avô vive aqui

 




1.

o mundo é uma pintura surrealista. milhares de quadros. todos diferentes. de várias épocas. várias tendências. várias escolas. alguns de mestres. outros de habilidosos. e ainda daqueles que são bafejados pela sorte de uma pincelada de génio – na tela a arte é suportada em cores indecididas. ora com traços largos. ora finos. retos. com curvas para lá e para cá. e riscos que só os espíritos livres sabem distinguir – a fruição da arte foi assim durante séculos. do mestre ao pé rapado. do pré-histórico ao surreal. do renascentista ao naif. todos fizeram emergir o belo. cada um ao seu modo – para aristóteles o belo não pode ser desligado do homem. já que ele está em nós. é uma fabricação humana – às vezes. quando os quadros ficam de pernas para o ar. o artista estica o braço. endireita o pincel. fecha o olho cego. tira as medidas. acerta as sombras com a luz. e desrespeita todas as regras da criação artística: pinta como quer. e como bem lhe apetece. é a sua razão áurea – depois. coloca o quadro de pernas para o chão. e tudo lhe parece certo e colorido – a arte. ou a sua falta. são a sua identidade. a sua liberdade. pinta o que mais ninguém vê ou não sabe ver. e mesmo com um olho cego. é a sua escolha pintar ou borratar – tudo acontece por dentro. e logo aparece um nu se há beleza. um retrato se prefere eternizar a relevância. uma natureza morta porque dos vivos trata deus. às vezes naif. às vezes ingénuo. às vezes mais complexo de que o cubo rubik. pinta a manta com as cores que vão da imaginação ao hiper-realismo – e quando dá a última pincelada. assina com miserável desinquietação… xis. e promete um dia desnudar-se por inteiro perante o mundo critico que o persegue ou com vivas. ou ameaças de manicómio – pintam o presente para ser visto no futuro – cada traço é o seu autorretrato. e a cor o seu caráter. revelando-se de uma forma límpida e autêntica. numa simbiose mágica: todos veem a mesma pintura. e todos a sentem de forma diferente – a missão de vida de um artista é sobreviver a cada olhar. a cada leitura. a cada ouvido. a cada parecer. por mais injusta que lhe pareça ser – cada momento pertence a um único homem-talento. esse instante terá que ser obrigatoriamente respeitado e glorificado – o artista vive no seu mundo. quase sempre ausente da realidade. assusta reis e plebeus com mostarda pastel. se está zangado. pincela um vermelho irado. às vezes um verde esperança. mas o negro… essa cor de dor e luto. fica para si. é assim que se esconde do mundo – e a paleta de cores misturada ora faz raiva. ora faz luz. ora faz negrume. ora faz uma estrada que ninguém sabe onde acaba – às vezes diz apenas: aqui estou eu nesta arte que um dia me levará .ao fim do universo – os invejosos dizem que a cor é diferente e impostora. uma trapaça. escura de dia. florescente de noite. como se fosse obrigatório pintar o mundo com estilo – os indiferentes. apáticos. “não sentem. nem sofrem”. desapegados da arte e das pessoas. encolhem os ombros numa neutralidade dolorosa ignorando as cores e a mensagem – finalmente os determinados. assassinam a obra e o artista com um único golpe de língua. numa indiferença malvada e terrifica. e dos destroços imerge a interrogação: que é feito do negro que me encobre a dor? a quem pertence o meu belo?

 

2.

nunca serei escritor enquanto as palavras não escolherem entre a luz e a escuridão. entre o anonimato e a multidão – um dia. breve. assinarei o meu nome para uma eternidade qualquer. talvez pequena. talvez grande. ou assim-assim. quem sabe – bem sei que aos olhos dos leitores nada existe para além da arte. o artista é apenas a ferramenta da criação. às vezes ignorado. maltratado e incompreendido. existe como existem as auroras depois de uma qualquer noite. nascem – a arte é interpretada a gosto. sem sacrífico. sem tolerância. sem devoção. sem compaixão. sem harmonia. sem contraste. sem conceção – cada olhar uma sentença. às vezes morte. às vezes glória. às vezes habilidade. às vezes transpiração. às vezes nada. apenas indiferença. anonimato. vazio – é com a obra que os artistas se eternizam. indiferentes à passagem do tempo e dos homens. enfrentam a imortalidade com indiferença. generosidade e sobriedade – o belo e o seu julgamento em harmonia com a massificação artística torna-o também popular. a internet é o louvre dos artistas menores. não sabemos quem nos visita. mas sabemos que vamos por essa autoestrada digital. num silencio que não magoa – a arte já não sobrevive sem o louvor. necessita de aplauso à medida do seu valor – a morte existe para quem cria. só a obra resiste ao tempo. imortalizasse – por isso escrevo. para que se eternize a minha arte. que apesar de menor. me faz existir em cada palavra – um dia. os meus netos dar-me-ão vida a cada leitura. e dirão: o meu avô vive aqui




27/06/2022

mesmo











não existe benquerença para palavras escritas em esquinas. mesmo que as ruas se dividam em comédia. mesmo que os corvos se façam andorinhas. mesmo que a fortuna prometa absolvição para os que caminham em contramão – um dia. em abril. respirei. e assim me fiz até onde nunca cheguei – não sei se respirei pela sapatada no rabo. ou por saber que a minha mãe me carregou nove meses magoados. o certo é que cresci. e assim me fiz até onde nunca cheguei – e agora. mesmo que não exista indulto para quem viveu morrendo. eu existo tal e qual como sou. mesmo que tenha pintado o inferno em cada dedo. mesmo que carregue um corpo apeado. mesmo que me rasgue num silêncio-perdão – não há misericórdia para quem não chegou a lado nenhum. mesmo que os braços se cravem em inutilidades. mesmo que a cidade não acorde quando pranto. mesmo que a sina prometa honra no óbito – e porque um dia respirei. sei que vou para o fundo da terra como os submarinos vão para o fundo do mar – que seja o meu nome castigado pelo que não fui capaz. apenas eu. nem uma única morada para trás. nem mil anos para a frente. que seja o presente a fragrância em desordem – e se amanhã a terra se abrir. que seja engolido de uma só vez. e que o inferno se apague em mim para sempre – nesse dia. talvez de agosto. quero que uma brisa fininha me leve para os braços da minha mãe. e se o que restar de mim se cruzar com o que não fiz. que seja o silêncio o meu atalho – e quando a dor se tornar insuportável. que o escuro tome a leveza da alma e me transporte para a morada de uma estrela. que se faça a minha vontade. que a carne desapareça em chamas. e o que ficou por fazer e dizer. se faça em sorte. e noutro mundo. ou não. eu exista dentro de mim – mas que importa o que escrevo em esquinas se a glória para mim é uma rua sem fim – estou morto. mesmo que insista em respirar. em olhar para onde nunca cheguei – nesta vida que pranto. seja o esquecimento a minha fortuna. o silêncio o meu perdão.  e que de mim… não se fale nunca mais


 

23/06/2022

que seja eu








 

num dia de março fiquei sem pai. o mar encrespou. a noite desvairou. e o corpo zarpou para tempos inquietos – mais tarde. em dezembro. perdi a minha mãe. senti-me sozinho. abandonado de tudo. amargurado – mais um ano e perdi a minha cunhada zeza. para no ano seguinte perder o meu sogro – desta vez senti-me no inferno. irritei. a tristeza galgou as margens e a saudade acomodou-se a magoar. a magoar muito – *“uma alegria exuberante (não moderada por nenhuma preocupação com a dor) e uma tristeza intensa absorvente (não mitigada por nenhuma esperança), ou desgosto, são emoções que ameaçam a vida.” – senti-me ameaçado e perguntei-me: que mal me chegará amanhã? parti então atrás de recordações e encontrei uma nostalgia que me fustiga num vagar cruel. absolutamente cruel – apesar da dor trazer habituação e aceitação. também traz confortação e aconchego às lembranças – o medo torna-se persistente e constante. e volto a perguntar-me: quem ainda me falta perder? que seja eu. que parta sem dizer adeus. com velocidade. como se fosse um foguetão. ou um astro que passa sem razão – e lá do sítio. quando a noite acontecer. que seja agora eu a por a mão por baixo dos meus borrachos – e nos segredos do universo a recomposição: o papá. a mamã. a zeza. o meu sogro joão.  o meu tio joão. e não sei quantos anjos e querubins. guardiões das preces. a cantar: salve. hosana nas alturas – o tempo flui. dobra-se. encolhe-se. curva-se. alimenta-se do futuro. de mim também. os dias aparecem e desaparecem como navios fantasmas. e a saudade a trabalhar. a martelar. às vezes nos dedos. a magoar. às vezes a vergastar – avelhento. apenas eu e o meu espelho. vou ao passado. e regresso a mim interrogando-me: que missão me trouxe à vida? não sei. talvez nenhuma. ou coisa parecida – sei apenas que a família é a minha morada – “por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne - Genesis 2:24” – esta é a minha missão. acredito. senão o milagre dos filhos não tinha acontecido – nada mais em mim me parece útil – mesmo que as vozes na terra me pareçam distantes. mesmo que os olhos teimem em escurecer. mesmo que os braços não abracem nunca mais. aqueles que amo estão sempre em algures no meu tempo – nenhuma família se constrói sem sacrifícios. sem compreensão. sem tolerância. sem respeito. e sem memória – cada um de nós foi abençoado pelos seus antepassados – cumpramos o que somos. nada mais nos é dado


                                                                                -- // --

                               

**Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.

 .

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.

E deseja o destino que deseja

Nem cumpre o que deseja

Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros

O Fado nos dispõe, e ali ficamos;

Que a Sorte nos fez postos

Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento

Do que nos coube que de que nos coube.

Cumpramos o que somos.

Nada mais nos é dado.

 

**ricardo reis

*immanuel kant