.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

26/11/2021

eu. o primeiro desejo. e o meu pai

 



 

ainda não teria chegado aos meus dezasseis anos quando o desejo de ser pai se tornou persistente – durante a adolescência só me lembro de ter dois desejos: ser pai. e tirar a carta de condução – não sei qual deles nasceu primeiro. talvez deva aplicar um dos maiores enigmas da humanidade: quem nasceu primeiro. o ovo ou a galinha? sei que o primeiro realizado foi o da carta de condução – no dia em que fiz dezoito anos. feliz por me tornar de maioridade e ter autorização para fumar à frente do meu pai. apresentei-me na porta da escola de condução serra. em braga. e meti os papeis para conduzir automóveis ligeiros – estávamos em abril. e a 29 de agosto. sexta-feira. fiquei aprovado. deram-me uma guia para a mão que me autorizava a conduzir até moscovo e votos de boa sorte – lá fui eu encartado e sorridente pelo mundo fora que imaginava maior do que qualquer oceano – uns meses antes já o meu pai tinha comprado um NSU TT. em segunda mão. e por via da sua gentileza. foi só lotar o carro de amigos e arrancar para apanhar o que restava do verão – a praia da apúlia fervilhava com miúdas em bikini. e nada como um homem encartado para ter a sua atenção – há coisas que é impossível esquecer por mais anos que se viva – nesse dia dirigi-me ao meu pai e disse-lhe que ia passar o fim-de-semana à praia. depois de uma pregação dolorosa para que conduzisse com cuidado. tirou a carteira do bolso. e num sorriso preocupado pediu-me cautela com a velocidade. e passou-me para as mãos cinco contos – era muito dinheiro para a época – depois. de cima dos seus cinquenta e muitos anos. disse-me: sei que irás ter um fim-de-semana agitado. com muitas voltinhas e folia. vais precisar de um reforço monetário para a gasolina. mas também vais precisar de muito juízo. e a ladainha renovada com cautelas para os excessos – já o repeti milhentas vezes. mas nunca será em demasia. o meu pai era um ser humano fantástico. raro para a sua época. com um dom ímpar para compreender os jovens – todos os meus amigos gostavam do meu pai. sempre que apanhava um a jeito aproveitava para contar umas larachas. ou futebol. ou política. o importante para ele era falar. falar até se cansar – nada o fazia mais feliz do que uma boa conversa – sempre foi um jovem. bom. envelhecido numa paz tranquila. conquistada com muitos sacrifícios e perseverança – certo dia estava eu nas aulas noturnas no liceu d. maria II quando irrompeu pela porta um amigo. aflitíssimo. a arfar. com os pulmões nas mãos. a deitar os bofes de fora. entre golfadas de ar aflitas lá foi dizendo: a… fábrica… esta… a arder – saltei em fúria da carteira. corri pelos corredores como se fosse o carl lewis numa corrida dos cem metros velocidade. atirei-me para dentro do carro e arranquei a alta velocidade. desrespeitando sinais de trânsito e semáforos. assustando cães. galinhas e gatos – em pouco mais de dois minutos estava ao lado dos bombeiros – em simultâneo. um outro amigo avisava o meu pai. estava no centro da cidade. numa loja comercial. a entreter a funcionária com dois dedos de conversa – tal como o amigo que me levou a nova ao liceu. também este chegou ofegante. o batimento cardíaco nos limites. os pulmões desafinados. prestes a estoirar. e em dificuldade dirigiu-se ao meu pai: sr. lopes. a empresa está a arder. mas os bombeiros já estão a combater o sinistro – contra todas as espectativas o meu pai respondeu-lhe calmamente: ai é. isso é que é mau. vamos então ver o que se passa – e vieram a pé até à empresa a falar das coisas mais triviais. como se nada de anormal se passasse – no dia seguinte não se falava de outra coisa entre os meus camaradas de rua. e todos chegaram à conclusão de que quem estava certo era o senhor meu pai. afinal os bombeiros estavam a combater o fogo e a presença dele. ou de quem quer que fosse. naquela fase. nada adiantaria ou alteraria o combate às chamas – ao contrário do meu pai eu vim feito parvo. a alta velocidade. sujeito a ter um acidente grave. a colocar em risco não só a minha vida. mas também de todos aqueles que se cruzavam comigo. e em boa verdade. não aditei absolutamente nada. não apaguei uma única labareda. o que fiz. foi olhar para aqueles que realmente tinham o saber e meios para dominar as chamas – felizmente tudo não passou de uma pequena fogueirinha na zona administrativa. e aos primeiros minutos da manhã já estava tudo a laborar – o meu pai tinha esta capacidade excecional de manter a calma em situações de crise. só mais tarde percebi que este tipo de comportamento estava intrinsecamente ligado à forma desprendida como encarava os bens materiais – o importante para o meu pai sempre foi as pessoas. independente do seu estrato social. ou extrato bancário. para todos tinha uma vénia. para todos tinha um sorriso – gostava de ser patrão porque o aproximava das pessoas. com todas aprendia. e a todas dava o melhor de si: alegria. bondade. respeito. humildade. esperança – as pessoas eram o melhor do mundo e estavam sempre nas suas prioridades – o meu pai nunca despediu um trabalhador. por muito mau que fosse ele encontrava sempre alguma coisa de bom. e mesmo que não tivesse mesmo nadinha que o recomendasse. tinha família. tinha os filhos que precisavam do seu soldo. a mulher era uma desgraçada e trabalhava como uma moura para matar a fome à família. havia sempre alguém. e quando tudo ruísse. ainda recorria a outro expediente. quem pediu para o empregar foi fulano e sicrano e não é bonito despedir. ou devemos consideração. ou outra coisa qualquer mesmo que viesse dos confins do espaço – quem ficava sempre com o papel difícil era a minha mãe que tinha mesmo que despedir uma pessoa que não se adaptasse àquele tipo de tarefa. e por isso sempre ouvi dizer que a patroa é que era lixada. estou a ser contido na linguagem. mas o sr. lopes é que era uma joia de pessoa – e era. o meu pai era uma joia rara. descendia de uma família riquíssima. monárquica. com médicos. militares e padres. alinhados com a aristocracia bracarense. era nestas artes que a importância de uma família se fazia notar: cura do corpo. cura da alma. e cura pela guerra – com a instauração da républica perderam tudo – o meu avô fundou um jornal monárquico. e por via dessa sua opção política. sempre que os republicanos tomavam o poder era preso. e solto quando os monárquicos reconquistavam os domínios da nação – um certo dia foi de vez. e a república solidificou-se. e os negócios da família passaram para as mãos dos novos donos da política – aos dezassete anos o meu pai estava pobre como job – encontrou então emprego numa mercearia no porto. fazia entregas nas casas dos clientes. tantas vezes me falava de quanto lhe custava subir a rua do almada com uma caixa às costas de arroz. batata e feijão – mais tarde trabalhou nas minas da borralha. depois como estava um pouco acima dos seus camaradas em gestos e limpeza foi para rececionista do grande hotel do gerês. mudou-se para o balcão da torrefação bracarense. um comércio de café e bebidas. e encontrou a minha mãe. modista e dona do seu nariz. mas lá conseguiu levá-la ao altar – encontra trabalho num cunhado. um grande retalhista de loiças na cidade do porto – começa a sua nova arte e vocação. vendedor. nos dias de hoje comercial. onde rapidamente consegue distinguir-se pela sua afabilidade e sorriso – cria o seu negócio de retalhista em braga. e com imensas dificuldades. com a ajuda da minha mãe. criam primeiro um armazém de louças e mais tarde uma empresa de sacos de viagem – estávamos no período da migração para as províncias ultramarinas – com o começo da guerra do ultramar. angola. moçambique e guiné-bissau. veio a mobilização das forças armadas portuguesas. eram precisos soldados para defender o território dos turras – esta deslocação de pessoas e mercadorias impulsionou rapidamente o negócio ajudando ao desafogo financeiro. ninguém viajava que não fosse obrigado a comprar sacos e malas – foram mesmo assim momentos difíceis e de muito sacrifício. sem capital e sem ajuda de ninguém. o dinheiro era coisa rara. e o estado falido e forreta – a solução passava sempre por virar fatos do avesso para aguentar mais uma estação. caminhar com as solas dos sapatos esburacadas. calças remendadas. e muita contensão nas despesas familiares – o tempo foi passando. o meu pai em viagem constante pelo país e províncias ultramarinas. a minha mãe a trabalhar de sol a sol amarrada a uma máquina de costura. e eu pelas ruas a consumir o tempo – com muito esforço conseguem criar uma empresa desafogada e amealhar uns tostões. devolvendo ao meu pai a honra da família. e principalmente uma paz grata à vida – sempre que alguma coisa corre mal na minha vida é das memórias dos meus pais que me socorro. é o seu exemplo de resiliência que me faz acreditar que um dia também serei grato à vida – resisto estoicamente aos milhentos desabafos da alma implorando que desista. resisto porque sou obrigado a resistir. porque sou seu filho. porque sou a continuidade da história. sou mais uma página de um livro que não sei quando acabará – aprendi a caminhar com fé. afinal eu sou filho do meu pai. e se ele se encantou com a vida. também eu me encantarei. um dia serei também exemplo para as amarguras dos meus filhos – viver é bom. saber de onde venho é uma dádiva. e saber para onde os meus filhos irão a minha única preocupação. a única razão válida para nunca desistir de conquistar também eu a minha paz. a minha tranquilidade. tudo a que tenho direito e mereço nesta vida – assim foi. o carro não parou um segundo. corremos as praias todas das redondezas. numa alegria de que tenho saudades. ainda não sabia que envelhecíamos. ainda não sabia que ficávamos responsáveis e enfadonhos. cotas preocupados e aflitos com o futuro – assim passei dois anos. com o carro sempre a girar e a vida a acontecer numa liberdade estonteante. com milhentas peripécias. e a dúvida a roer-me por dentro: partir pelo mundo fora ou dedicar-me inteiramente ao negócio da família – estava a caminho dos vinte anos quando pela noitinha fomos guardar o carro do meu pai numa garagem no centro da cidade. caminhávamos calmamente em direção a casa. quando o meu pai me chama atenção para a necessidade de acalmar. na sua opinião não era bom para a saúde não dormir. passar os fins-de-semana fora de casa. tinha que me dedicar mais ao trabalho. e quando parecia que não tinha mais nada para dizer sai-se com esta

-- porque não te casas. tens uma miúda gira. boa moça. acredito que te faria bem

nunca mais tive sossego. as palavras do meu pai não me saíam da cabeça. sabia que tinha razão. eu precisava de desacelerar. focar-me mais na nossa empresa. tornar-me mais empreendedor – o meu pai acreditava em mim. os primeiros dois anos tinha dado indiciações de que era ambicioso. e tinha planos para a fazer crescer – a ligar esta ambição profissional tinha uma outra que não abalava do pensamento: ser pai – há coisas que não sabemos como aparecem. mas este desejo de ser pai compara-se a um apelo interior para seguir uma vida consagrada. ingressar num mosteiro. ou partir para a áfrica como missionário – era algo tão presente em mim que era impossível esconder do pensamento. queria ser pai porque achava que nada no mundo poderia ser melhor do que ter algo que não sendo nosso em definitivo. projeta-nos num amor incondicional. um filho é sempre mais do que o pai. o melhor de mim exponenciado à imortalidade – nunca consegui encontrar nada que me desse mais satisfação do que ser pai. não houve um dia em que me sentisse cansado ou arrependido – lembro-me que quando ficava doente. nada de grave. acreditava ser possível morrer de uma amigdalite. o que me atormentava mais era morrer sem ser pai. era uma agonia – casei-me aos vinte anos e fui pai aos vinte e um – tinham passado dois meses da boda já eu andava de cabeça perdida por a maria joão não engravidar – comecei logo a criar cenários: sou infértil – nunca me passou pela cabeça que o problema poderia ser da minha companheira. não. o problema era eu. sempre eu. de resto todo o mundo era perfeito. bonito e saudável – no dia que nasceu o luís tudo mudou. o mundo mudou. foi como se a juventude se tivesse evaporado. como se um buraco negro tivesse sugado toda a leveza da alma – passou a acompanhar-nos para todo o lado. não havia um único momento em que não estivesse ao meu lado. tornou-se na mascote dos meus amigos. e mesmo nos fins-de-semana de montanhismo. com dois anos e pouco. já ele subia nas nossas costas as montanhas – tornou-se homem rapidamente. e continuou a subir montanhas pela vida fora – é um rapaz fantástico. todo do avô. bom. honrado. um pai excecional. com uma companheira feita para ele. que é quase tão minha como dele. primogénito. amigo. protetor e líder. com a medida certa para o materialismo – tenho a certeza de que os seus avós estão orgulhosos. e por mais que nos tentem dizer que não podemos ser assim. às vezes ingénuos. às vezes imensamente tolerantes. às vezes aldrabados. às vezes parvos. às vezes cansados da ingratidão. não podemos alienar o que é nosso por linhagem – somos de onde vimos e assim iremos continuar. somos boas pessoas e continuaremos a ser nem que o mundo se vire de pernas para o ar – estou grato desde o dia em que nasceu. e mais grato fiquei quando chegou o pedro e o joão – a minha casa-família é um conto de fadas. eu entro nesse conto. e os meus pais também

 

música - Peder B. Helland

 

you tube - https://youtu.be/Dgr4iEveNDI