ainda não teria chegado aos meus dezasseis anos quando o
desejo de ser pai se tornou em mim persistente – durante a adolescência só me
recordo de ter dois desejos: ser pai. e tirar a carta de condução – não sei
qual deles nasceu primeiro. talvez deva aplicar um dos maiores enigmas da
humanidade: quem nasceu primeiro. o ovo ou a galinha? sei que o primeiro
realizado foi o da carta de condução – no dia em que fiz dezoito anos. feliz
por atingir a maioridade e poder finalmente fumar à frente do meu pai. apresentei-me
na porta da escola de condução serra. em braga. e meti os papeis para conduzir
automóveis ligeiros – estávamos em abril. e a 29 de agosto. fiquei aprovado.
deram-me uma guia para a mão que me autorizava a conduzir até moscovo e votos
de boa sorte – e lá fui eu. encartado e sorridente. a correr pelo mundo que
imaginava tão grande quanto o sonho de um jovem – uns meses antes já o meu pai
tinha comprado um NSU TT. em segunda mão. e por gentileza sua. foi só lotar o
carro de amigos e arrancar para aproveitar o que restava do verão – a praia da
apúlia fervilhava com miúdas em bikini. e nada como um tipo encartado para
captar a sua atenção – há coisas que é impossível esquecer por mais anos que se
viva – nesse dia ao meu pai que ia passar o fim-de-semana à praia. depois de
uma pregação dolorosa para que conduzisse com cuidado. tirou a carteira do
bolso. e num sorriso preocupado pediu-me cautela com a velocidade. e passou-me
para as mãos cinco contos – era muito dinheiro para a época – depois. de cima
dos seus cinquenta e muitos anos. disse-me: sei que irás ter um fim-de-semana
agitado. com muitas voltinhas e folia. vais precisar de um reforço monetário
para a gasolina. mas também vais
precisar de muito juízo. e a ladainha renovada com cautelas para os
excessos – já o disse milhentas vezes. mas nunca será demais. o meu pai era um
ser humano extraordinário. raro para a seu tempo. e também com um raro talento
para compreender os jovens – todos os meus amigos gostavam do meu pai. sempre
que apanhava um a jeito aproveitava para contar umas larachas. ou futebol. ou
política. o importante para ele era falar. falar até se cansar – nada o fazia
mais feliz do que uma boa conversa – sempre foi um jovem. bom. envelhecido numa
paz tranquila. conquistada com muitos sacrifícios e perseverança – certo dia
estava eu nas aulas noturnas no liceu d. maria II quando irrompeu pela porta um
amigo. aflitíssimo. a arfar. com os pulmões prestes a saltar pela boca.
ofegante e aflito. lá foi dizendo: a… fábrica… esta… a arder – saltei em fúria
da carteira. corri pelos corredores como se fosse o carl lewis numa final dos
cem metros. atirei-me para dentro do carro e arranquei a alta velocidade.
ignorando sinais de trânsito e semáforos. assustando cães. galinhas e gatos –
em pouco mais de dois minutos estava ao lado dos bombeiros – em simultâneo. um
outro amigo avisava o meu pai. estava no centro da cidade. numa loja comercial.
a entreter a funcionária com dois dedos de conversa – tal como o amigo que me
levou a nova ao liceu. também este chegou ofegante. o batimento cardíaco nos
limites. os pulmões desafinados. prestes a estoirar. e em dificuldade
dirigiu-se ao meu pai: sr. lopes. a empresa está a arder. mas os bombeiros já
estão a combater o sinistro – contra todas as espectativas o meu pai
respondeu-lhe calmamente: ai é. isso é que é mau. vamos então ver o que se
passa – e vieram a pé até à empresa a falar das coisas triviais. como se nada
de anormal estivesse a acontecer – no dia seguinte não se falava de outra coisa
entre os meus camaradas de rua. e todos chegaram à conclusão de que quem estava
certo era o senhor meu pai. afinal os bombeiros estavam a combater o fogo e a
presença dele. ou de quem quer que fosse. naquela fase. nada adiantaria ou
alteraria o combate às chamas – ao contrário do meu pai eu vim feito parvo. a
alta velocidade. à mercê de um acidente grave. a pôr em risco não só a minha
vida. mas também a de todos que se cruzavam comigo. e em boa verdade. não
contribuí com absolutamente nada. não apaguei uma única labareda. o que fiz.
foi observar os que tinham o saber e os meios para dominar as chamas –
felizmente tudo não passou de uma pequena fogueirinha na zona administrativa. e
ao nascer do dia já tudo estava a funcionar normalmente – o meu pai tinha uma
notável capacidade de manter a calma em situações de crise. só mais tarde
percebi que este tipo de comportamento estava intrinsecamente ligado à forma
desprendida como encarava os bens materiais – o importante para o meu pai
sempre foi estar próximo das pessoas. independentemente do seu estrato social.
ou extrato bancário. para todos tinha uma vénia. a todos oferecia um sorriso –
gostava de ser patrão porque o aproximava das pessoas. com todas aprendia. e a
todas dava o melhor de si: alegria. bondade. respeito. humildade. e esperança –
as pessoas eram o melhor do mundo e estavam sempre nas suas prioridades – o meu
pai nunca despediu um trabalhador. por muito mau que fosse ele encontrava
sempre alguma coisa de bom. e mesmo que não tivesse nadinha que o recomendasse.
tinha família. tinha os filhos que dependiam do seu soldo. a mulher era uma
desgraçada e trabalhava como uma moura para alimentar a família. havia sempre
alguém. e quando tudo ruísse. ainda recorria a outro expediente. quem pediu
para o empregar foi fulano e sicrano e não é correto despedir. ou devemos
consideração. ou outra coisa qualquer mesmo que viesse dos confins do espaço –
quem ficava sempre com o papel difícil era a minha mãe que tinha mesmo que
despedir uma pessoa que não se adaptasse àquele tipo de tarefa. e por isso
sempre ouvi dizer que a patroa é que era lixada. estou a ser contido na
linguagem. mas o sr. lopes é que era uma joia rara de pessoa – e era. o meu pai
era mesmo uma joia rara. descendia de uma família riquíssima. monárquica. com
médicos. militares e padres. alinhados com a aristocracia bracarense. era
nestas artes que a importância de uma família se fazia notar: cura do corpo. da
alma. e redenção pela guerra – com a instauração da república perderam tudo – o
meu avô fundou um periódico monárquico. e por via dessa sua opção política.
sempre que os republicanos tomavam o poder era preso. e solto quando os
monárquicos reconquistavam os domínios da nação – um certo dia foi de vez. e a
república solidificou-se. e os negócios da família passaram para as mãos dos
recém-chegados ao poder – aos dezassete anos o meu pai estava pobre como job –
encontrou então emprego numa mercearia no porto. fazia entregas ao domicílio
dos clientes. tantas vezes me contava de quanto lhe custava subir a rua do
almada com uma caixa às costas de arroz. batata e feijão – mais tarde trabalhou
nas minas da borralha. depois como estava um pouco acima dos seus camaradas em
gestos e limpeza foi para rececionista do grande hotel do gerês. mudou-se para
o balcão da torrefação bracarense. uma casa de comércio de café e bebidas. e
encontrou a minha mãe. modista e dona do seu nariz. mas acabou por levá-la ao
altar – encontra trabalho num cunhado. um grande retalhista de loiças na cidade
do porto – começa a sua nova arte e vocação. vendedor. nos dias de hoje
comercial. onde rapidamente se destaca pela sua afabilidade e sorriso – cria o
seu negócio de retalhista em braga. e com imensas dificuldades. com a ajuda da
minha mãe. criam primeiro um armazém de louças e mais tarde uma empresa de
sacos de viagem – estávamos no período da migração para as províncias
ultramarinas – com o começo da guerra do ultramar. angola. moçambique e
guiné-bissau. veio a mobilização das forças armadas portuguesas. eram precisos
soldados para defender o território dos turras – esta deslocação de pessoas e
mercadorias impulsionou rapidamente o negócio ajudando ao desafogo financeiro.
ninguém viajava sem comprar sacos e malas – foram mesmo assim momentos difíceis
e de muito sacrifício. sem capital e sem ajuda de ninguém. o dinheiro era coisa
rara. e o estado falido e forreta – a solução passava sempre por virar fatos do
avesso para aguentar mais uma estação. caminhar com as solas dos sapatos
esburacadas. calças remendadas. e muita contenção nas despesas familiares – o
tempo foi passando. o meu pai em viagem constante pelo país e províncias
ultramarinas. a minha mãe a trabalhar de sol a sol presa a uma máquina de
costura. e eu pelas ruas a consumir o tempo – com muito esforço conseguem
erguer uma empresa desafogada e amealhar uns tostões. devolvendo ao meu pai a
honra da família. e principalmente uma paz grata à vida – sempre que alguma
coisa corre mal na minha vida. é das memórias dos meus pais que me socorro. é o
seu exemplo de resiliência que me faz acreditar que um dia também serei grato à
vida – resisto estoicamente aos milhentos apelos da alma a pedir que desista.
resisto porque sou obrigado a resistir. porque sou seu filho. porque sou a
continuidade da história. sou mais uma página de um livro que não sei quando
terminará – aprendi a caminhar com fé. afinal eu sou filho do meu pai. e se ele
se encantou com a vida. também eu me encantarei. um dia serei também refúgio
nas amarguras dos meus filhos – viver é bom. saber de onde venho é uma dádiva.
e saber para onde os meus filhos irão. a minha única preocupação. a única razão
válida para nunca desistir de conquistar também eu a minha paz. a minha
tranquilidade. tudo a que tenho direito e mereço nesta vida – assim foi. o
carro não parou um segundo. corremos as praias todas das redondezas. numa
alegria de que tenho saudades. ainda não sabia que envelhecíamos. ainda não
sabia que nos tornávamos cotas preocupados com o futuro – assim passei dois
anos. com o carro sempre a girar e a vida a acontecer num deslumbramento de
liberdade. com milhentas peripécias. e a dúvida a roer-me por dentro:
aventurar-me pelo mundo ou dedicar-me por completo ao negócio da família –
estava a caminho dos vinte anos quando pela noitinha fomos guardar o carro do
meu pai numa garagem no centro da cidade. caminhávamos calmamente em direção a
casa. quando o meu pai me chama atenção para a necessidade de acalmar. na sua
opinião não era bom para a saúde não dormir. passar os fins-de-semana fora de
casa. tinha que me dedicar mais ao trabalho. e quando parecia que não tinha
mais nada a dizer. sai-se com esta
-- porque não te casas. tens uma miúda gira. boa moça.
acredito que te faria bem
desde então nunca mais tive paz. as palavras do meu pai não
me saíam da cabeça. sabia que tinha razão. eu precisava de desacelerar.
focar-me mais na nossa empresa. tornar-me mais empreendedor – o meu pai
acreditava em mim. os primeiros dois anos tinham revelado sinais de ambição. e
tinha planos para fazê-la crescer – a esta ambição profissional juntava-se
outra que não saía do pensamento: ser pai – há coisas que surgem sem sabermos
de onde vêm. mas este desejo de ser pai compara-se a um apelo interior para seguir
uma vida consagrada. recolher-me num mosteiro. ou partir para a áfrica em
missão – era tão presente em mim que era impossível afastar-se do pensamento.
queria ser pai porque achava que nada no mundo poderia ser melhor do que ter
algo que não sendo nosso em definitivo. lança-nos num amor incondicional. um
filho é sempre mais do que o pai. é o melhor de mim levado à imortalidade –
nunca encontrei nada que me desse mais satisfação do que ser pai. não houve um
dia em que me sentisse cansado ou desiludido – lembro-me que quando ficava
doente. nada de grave. acreditava ser possível morrer de uma amigdalite. o que
me atormentava mais era morrer sem ser pai. era uma agonia – casei-me aos vinte
anos e fui pai aos vinte e um – tinham passado dois meses da boda já eu andava
de cabeça perdida por a maria joão não engravidar – de imediato comecei a
imaginar cenários: sou infértil – nunca me passou pela cabeça que o problema
estivesse na minha companheira. não. o problema era eu. sempre eu. de resto
todo o mundo era belo. perfeito e saudável – no dia em que nasceu o luís. tudo
mudou. o meu mundo mudou. foi como se a juventude tivesse desaparecido no ar.
como se um buraco negro tivesse sugado toda a leveza da alma – passou a
acompanhar-nos para todo o lado. não havia um único momento em que não
estivesse ao meu lado. tornou-se a mascote dos meus amigos. e mesmo nos
fins-de-semana de montanhismo. com dois anos e pouco. já ele subia às costas
dos meus amigos pelas montanhas – tornou-se adulto rapidamente. e continuou a subir
montanhas ao longo da vida – é um rapaz fantástico. todo do avô. bom. honrado.
um pai excecional. com uma companheira feita para ele. que é quase tão minha
quanto dele. primogénito. amigo. protetor e líder. com a medida certa para o
materialismo – tenho a certeza de que os seus avós estão orgulhosos. e por mais
que nos tentem dizer que não devíamos ser assim. por vezes ingénuos.
tolerantes. aldrabados. parvos. cansados da ingratidão. não podemos renegar o
que herdamos por linhagem – somos de onde vimos. e assim iremos continuar.
somos boas pessoas e continuaremos a ser nem que o mundo se vire de pernas para
o ar – estou grato desde o dia em que chegou. e mais grato fiquei quando
chegaram o pedro e o joão – a minha casa-família é um verdadeiro conto de
fadas. eu faço parte desse conto. tal como os meus pais
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