.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

24/05/2017

pássaros da noite





pintura - diego fazio



não há forma de me reencontrar na noite - estou completamente perdido. de um lado eu. do outro eu também - e os dois eus cada vez mais de acordo - se um diz mata o outro já não diz não mates. se um diz basta o outro diz que o basta só peca por tardio. se um diz coragem o outro diz muita. se um não diz nada o outro encolhe-se no nada - afinal o silêncio é a antecâmara da morte - nos meus eus apenas uns quantos pássaros a chilrear numa alegria que desconheço nos intervalos do que me sobra da janela - talvez o sol nasça apenas para quem lhe canta esperança - eu continuo preso às minhas lâmpadas de baixo consumo. numa fé moribunda e incapaz de produzir qualquer tipo de som para que a manhã me nasça - faz-me falta um abracinho e um segredo ao ouvido para que a noite não seja eterna



18/05/2017

deambulações noturnas XVI






van gogh


quando sentires o vento por baixo das palavras. aferrolha tudo e repousa até o tempo amainar – as palavras soltas ao vento de nada valem




15/05/2017

vânia – afinal. deus mora nos nossos quintais





vânia lopez




com coragem aqui estou em palavras para enobrecer a tua amizade – chegou o momento de te dizer o quanto foram [são] importantes as tuas palavras-estimulo ao longo desta minha aventura prosista – tentar ser prosista não é fácil –– retribuo então esse teu carinho com o talento que me sobra nestas mãos que te querem bem. sei que não será grande coisa. serão apenas umas quantas palavras. algumas velhas. gastas. puídas. outras sem nexo que de tão desajustadas do corpo me caiem dos bolsos –  dobrei uma em forma de triângulo. um triângulo perfeito. com os ângulos todos iguais. e coloquei no bolso da frente do casaco a imitar um lenço de seda – um homem quer-se arranjado quando está prestes a oferecer o seu bem mais precioso: a palavra – gosto de palavras. sempre gostei. servem para coisas inacreditáveis. e quando bem usadas. podem fazer de nós pessoas fantásticas. às vezes até imortais – quando escrevemos ficamos guardados no tempo para sempre – com as palavras posso fazer quase tudo. escrever o nome de quem gosto. matar as saudades. escrever cartas de amizade. escrever poemas de amor ou de raiva. e outras que por serem tão complexas só os poetas as entendem. posso também dizer que o mundo é mais bonito contigo. e dizer com toda a impiedade que uma palavra pode comportar: gosto de ti – gosto de ti assim. gosto de ti como te descubro nos meus olhos. como quando me chegas em silêncio. ou como te escuto no interior da tua poesia. e também gosto de ti na forma como me olhas naquela foto em que te colocas de lado para o mundo – ainda bem que existes – sabes que gosto de escrever. e quando começo a escrever não paro. fico com a sensação de que nunca digo o suficiente. insegurança creio eu. ou então falta de jeito. sei que não tenho muito. às vezes nem percebo porque escrevo. fico sempre com tanto medo de não saber verdadeiramente o valor de cada palavra. quando erramos a escrever é para sempre. as palavras não se trocam. nem as podemos pedir de volta. depois de escritas são para a vida toda – como também é para a vida toda aquelas mensagens que trocamos na calada da noite. tu mandas um olá. eu respondo com um bonequinho a sorrir. tu mandas uma palavra. eu devolvo a tua com mais duas minhas e começa o encantamento poético. e as palavras a escreverem-se como se tivessem uma força desconhecida. como se os deuses do olimpo nos tomassem conta das mãos e nos dissessem: escrevam. sejam feliz – e assim ficamos a dar brilho às estrelas enquanto a noite. calmamente.  se prepara para dar lugar à realidade – gosto de saber que estás por aí nesse teu quintal – escrevo-te porque não sei falar. porque não confio nas palavras que me saem da boca. saem-me sempre muito depressa. impercebíveis. e tão confusas que se acabam por perder no mundo-solidão – pouco sei desse mundo solidão. gosto mais do nosso. o das palavras escritas que partilhamos em gosto. numa arte que nos abraça e poucos entendem – quem escreve cresce todos os dias dentro se si – nós fizemos crescer uma amizade – mas para que serve isto tudo que estou a dizer se não for capaz de escrever uma palavra nova para te oferecer – não serve para nada – escreverei então alguma coisa que te traga em braços por esse distal mundo oceânico. onde tu. desse lado. ficaste presa. e eu. deste lado. em castigo – arrumo as montanhas para um lado e sento-te ao pé de um campo de magnólias. estamos na primavera. corre por nós um perfume dourado-sol. suave. suave-inocência –.paro as águas dos rios. paro ao nuvens. paro todos os pássaros no ar. e arrumo o vento morno dentro de um poema que compus para pessoas especiais – há agora um silêncio celestial disponível para escutar a tua poesia – arranjas o cabelo. as poetisas querem-se bonitas. dás o jeito ao corpo que eu conheço. sacodes as mãos do tempo pérfido. e por último. uma olhadinha no espelho da vida. é lá que nasce toda a poesia do mundo. a tua também – e ali fico a ouvir-te até que o tempo se acabe e os poemas se tornem ficção – voltas então para o teu quintal. e eu fico a colher magnólias em campos de palavras – afinal. “deus mora nos nossos quintais”


para a vânia lopez – um comentário faz muitas vezes a diferença - obrigado por cada dia em que me ajudas-te a escrever e a enfrentar os meus medos


10/05/2017

Águas de papel




vânia lopez





encontraria a palavra perdida
pelas ruas que me afastam e me levam de volta
nessa oração pequena
a pressa de nosso abraço antigo
que tem muito a despir
a correr por um campo de flores selvagens.
e lá fora sentir a sombra desse abraço
como se não fosse um traço de caneta
que lhe deu vida
mas de um Deus que dorme no quintal.

poema de vânia lopez de dicado a mim - muito obrigado cara amiga


09/05/2017

o corpo não morre todo à mesma hora





pintura - emanuele descanio




1.    o homem


um dia percebemos que o corpo já não é portador de uma consciência una.  integra e lúcida – divina ou não. esta consciência. ao longo do tempo foi obrigada a reordenar-se em fações temporais. numa existência quase sempre mutilada. imperfeita e feia – consciência é sinónimo de homem. da sua intimidade. de honra. de bondade. de vergonha. da sua inteligência. da perceção do que fez. do que ainda pode fazer. e da capacidade de criar novos estímulos para se refazer do erro – por último. e em base do que escreverei mais adiante. a consciência permite-nos pensar na morte e decidir se a vemos como a última fatalidade ou então. se a encaramos como “libertação total”. como diz mario quintana – esta verdade sobre a consciência altera todos os nossos relógios biológicos. o que era importante já não é. o que era para amar fica para esquecer. o que era coragem transfigurou-se em covardia. e o que era para o infinito é agora para um dia destes – chegou o momento de aplicar as rotinas de sobrevivência. tentar equilibrar o que se desequilibrou – o corpo só subsiste no mais perfeito equilíbrio entre a consciência do conhecimento e a consciência moral – na sua intimidade. inviolável por tão profunda. faz-se o homem que trazemos ao mundo das sensações. em doses prescritas e controladas por um ego que se alimenta do seu próprio conhecimento. numa realidade partilhada. que se decompõe entre o que se sente e o que permitimos saber do que se está a sentir. o que nos dói. e o que permitimos saber onde nos está a doer. o que nos corrompeu a fé. e o que permitimos saber de como fomos corrompidos – assim. chegamos a um corpo mergulhado num infinito de soluções. tantas quantos pensamentos. e o cérebro sempre a trabalhar para lhe dar uma razão para a sua existência – a vida numa partida de poker onde quem tem a melhor mão nem sempre ganha o jogo – neste baralho da vida ninguém fica de fora. e aqui estou eu com as cartas que escolhi. num jogo partilhado com o meu pequeno mundo. a jogar sem bluff. numa única mão. sem rei. sem duque. sem nada que me faça acreditar que ainda devo continuar em busca da sorte – azar. digo eu. tiveste até muita sorte. dizem outros. indiferença. para outros tantos – todos certos. todos errados. e todos julgam guardar em si todo o conhecimento do universo. e juram que sabem exaltamento o que cada corpo sente. e outros juram que não sentem apenas porque não querem sentir. e depois ainda há aqueles que dizem que só se sente porque se quer sentir – tudo certo. tudo errado. e tudo articulado em consciências interpessoais incompletas – o que é para um homem não é para mais nenhum. cada homem é único no seu nome. como escreve mia couto: cada homem é uma raça – dentro do corpo. num emaranhado de contradições. existimos nós. em balanços intermináveis. em juízos castigadores. em punições exemplares. em remorsos eternos. em arrependimentos agoniantes. em aflição desesperante. e a inteligência emocional a reparar os excessos com ética para que a consciência moral sobreviva a mais um dia



2.    a morte

o corpo morre aos bocados. em agonia. num falecimento silencioso. num desmembramento selvagem. é a morte em doses que nos mata por estágios da alma: hoje perdemos um sorriso. amanhã um abraço. depois um amigo. e mais outro. e ainda outro. e depois perdemos o céu. as nuvens. o destino. as gaivotas param de voar. e tudo lentamente a caminhar para um estado terminal consentido. num silêncio tão profundo. que tranquilamente. mata de ruído a consciência afetiva – aceita-se a resignação. aceita-se o fim – abrimos a janela mas o vento já não é brisa. há uma acalmia necrófaga. os abutres fabricados transmitem uma dimensão reduzida ao tempo. a morte anda no ar – aprendemos a escapar ao medo e aos poucos. sem que o corpo tenha compreendido. resignamo-nos à inevitabilidade do desfecho: a morte como libertação do pensamento – afinal nem tudo foi assim tão mau – a escuridão engole o sol. a determinação. a coragem. a audácia e o tino deixa de resistir à nostalgia – o sol também falece quando o corpo desiste – chega um cansaço estátua. e ali ficamos parados. hirtos. gelados. como se a morte nos quisesse mostrar que estar morto é imobilidade. é silêncio. é uma espiral de uma abdicação assombrada pelo fim de um ciclo – e segundo a segundo lá vai mais um trago da vida em aflição – no meio de quatro paredes. o corpo aceita finalmente o seu fim numa humanidade serena – deixo de falar e o silêncio toma o lugar de companhia. e tudo é feito sem voz. tudo é feito em pensamento. às vezes num maquiavelismo revoltoso. em grito desesperante. raivoso. assassino. sem piedade. e tudo o que resta de mim pelo chão. a rastejar. a contar os cantos às paredes. enquanto os pulmões ardem em dióxido de carbono – respiro fundo – as súplicas são agora deslumbramentos que se atrapalham no cérebro em busca de uma porta de emergência – não há portas de emergência. foram-se fechando sem que o racional desse conta – nada pode sair de dentro para fora. ninguém pode saber que se esta a desistir – e morre uma perna. e fica cada vez mais sentado e a cadeira já não é um acessório. é urgência. uma necessidade para iludir gente sã – contraio-me. encutinho-me. acolho-me numa posição fetal. a cabeça nos joelhos e as mãos num emaranhado de coisas. coisas que o corpo estendeu ao mundo e eu sem saber como explicar a este pequeno mundo estas coisas – aperto-me. cerro os olhos. apunhalo-me e nem uma gota de sangue. estou seco. mumificado e sem forças para chamar por um nome que me acuda – matem-me por favor – e os que apareciam aparecem menos. e aos poucos acabam por falecer primeiro do que eu – finalmente só – sentar-me é tudo o que me resta. sentado sou enorme. sentado ninguém percebe que se está a cair. sentado não estou rente ao chão. sentado tenho as mãos ao nível do coração. será este o último a render-se à consciência – só as cobras rastejam pela imundice do chão – e o corpo vai-se perdendo  numa aceitação cristã – perde a vista porque não há nada para recordar. perde os braços porque não quer ter saudade dos abraços. perde a fala porque não quer que ninguém o ouça. perde os gestos para que ninguém saiba que ainda não morreu por inteiro. e o que era simpatia reconhecida é agora uma trabalheira para enganar a quem nos quer ver no passado – o coração ora arranca. ora começa a trazer o que não quero que seja verdade – sente-se medo. e pergunto-me se será deste modo que o corpo desaparece todo à mesma hora – o coração continua a bater. e o sangue bombeado a soletrar em agonia: tens que aguentar. a consciência ainda luta – e uma lágrima pendurada no canto do olho a brilhar com saudade de um dia de natal. ou de um dia de anos. ou de um abraço. ou de um amigo. ou da família. meu deus. a família – deus se realmente existires perdoa-me – e abafo as recordações. as molduras. incendeio todas as fotos coloridas. mato a cor. e o rasto também – resiste o preto e branco – morre mais um pouco de resistência. e depois de coragem. e a esperança já foi toda. e já só resta a vergonha. e a maior parte do mundo sem entender nada de falecimentos – ninguém morre de uma única vez – e o punhal em cima da mesa a rasgar em facadas limpas as cartas de recomendação. uma a uma. e a vida em sobra resumida a uma única miséria: já acreditei. já existi – enquanto o corpo não morre todo á mesma hora o passado não se cansa de teimar o presente – o que resta do futuro sobrevive num punhado de abutres