.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/03/2018

silêncio





pintura - gpttfried helnwein 



quando o silêncio me segreda
as memórias do passado vozeiam.
bradam. esperneiam
e eu. sem forças. e até porque preciso.
espero pelos demónios -
sem lagrimas
ouço o passado sem certeza no futuro
silêncio…
justifico as minhas razões
e amo...
[me]. [te]. [vos]
volta a confusão...
a paz espreita…
volta o silêncio
volta a dor
volta a loucura

o silêncio tem dias que mata







27/03/2018

deambulações noturnas XXVII






inês dourado





por mais escura que encontre a noite. por mais sofrimento que me traga.  por mais que me invente para não ser o que fui.  há uma coisa que a maldita noite [sei] não me traz: asas – ou se nasce com elas ou não se nasce – escrevo






24/03/2018

beijos brancos





gilberto de abreu





...de nuvem em nuvem
caminham mil beijos vestidos de branco

- para ti -

quando chegarem não te assustes
disse-lhes para te vestirem dos pés à cabeça
um deles. especial. dir-te-á ao ouvido:

   - gosto muito de ti -







23/03/2018

clarice lispector









"Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite."



22/03/2018

palavra do poeta






o poeta - roger-de-la-fresnaye





tenho dias que sem saber escrever
encontro um sonho para contar
dias em que nada sou sem a utopia
daqueles que me impelem a escrever -
são os mestres. os poetas
donos na proficiência de domar letras
e interrogo-me
como seria se apenas eu escrevesse?
seriam letras sozinhas. chorosas
moribundas do desgosto
despidas de emoção
da pureza das ideias
letras privadas do contraste das cores -
e o amarelo. seria verde?
não sei. sei que
o florir dos campos
seriam searas
ceifadas em campos vazios de saber
onde os pássaros voariam
apenas baixinho
e o poeta?
poderá ele morrer
sozinho entre palavras que nunca atracaram?
palavras azedas. onde o pólen
nunca voará -
palavra que é palavra 
veste-se para ser ouvida
acarinhada. açoitada
maltratada. amada
riscada. desenhada
ou apenas um aceno
no coração de quem precisa
palavra honrada será sempre de todos
desde que traga com ela
o orgulho de camões -
a nós. contadores de histórias
compete-nos somente
mantê-las virtuosas e belas -





19/03/2018

o dia dos meus filhos










hoje é o dia dos meus filhos e também é o dia do pai deles. vejam só. é o meu dia – sempre desejei este dia. sempre quis ter um dia que fosse partilhado com os meus filhos – não se pode ser pai sem ter filhos – sei que crescer é sempre muito doloroso e às vezes pergunto-me: que mais poderia fazer para ajudar os meus filhos a crescer [mais] felizes – não sei. não sei mesmo – sei que um pai sempre achará que nunca fez tudo o que estava ao seu alcance. nunca nada é suficiente quando se trata dos nossos filhos e da sua felicidade – mas que me perdoem os meus filhos se errei onde não deveria ter errado – quero que saibam que tudo o que fiz foi por amor. o mesmo amor que me juntou à sua mãe – com a nossa história de amor vieram vocês – e foi tudo tão planeado. tão sonhado. tão infinitamente bom saber que vinham perpetuar a nossa existência – vocês serão sempre a única razão para existirmos – mas é todo este amor impossível de escrever que me leva sempre a mais uma questão: será que um pai tem perdão quando erra por amor? não sei? também não quero perdão. pelo vosso bem-estar eu posso com o mundo todo às costas – acreditem. vocês nunca nos pesaram – por isso. neste dia que é nosso. o que vos peço. humildemente. não é o vosso perdão. peço-vos apenas a vossa compreensão. tudo que fiz foi escolher o que me pareceu ser o melhor para vocês – sei que errei em milhentas coisas. errei por excesso. errei por defeito. errei porque não queria que vocês errassem onde eu errei. errei porque vocês são demasiadamente preciosos para vos ter a meu lado tristes e infelizes. errei porque sempre quis ser pai e pai. acreditem. é complicado para carago mas um pai para envelhecer em paz só precisa mesmo da vossa compreensão – tudo fiz para que vocês fossem homens felizes e independentes – hoje já pouco ou nada depende de mim. vocês cresceram para lá das minhas mãos. estão enormes. são homens bons. como o avô. são dignos. são justos. são educados e mais do que preparadas para serem cidadãos honrados estão preparados para serem pais – nunca se esqueçam de serem pais com os vosso filhos – vocês são todos fantásticos. são todos diferentes mas todos meus. quer dizer. nossos. serão sempre nossos – para este nosso dia existir em pleno era o vosso avô descer do céu para nos abraçar – tenho a certeza de que não vai ser possível. mas é possível recordá-lo e dizer que o melhor capítulo da nossa história começou com ele – ele era especial – mas se de alguma forma nos estiver a ler. já que os desígnios de deus são insondáveis. quero que saiba que todos temos muitas saudades. muitas mesmo. e também quero que saiba que nos faz muita falta e hoje o dia também é seu – um dia voltar-nos-emos a abraçar. tenho a certeza – obrigado aos meus filhos por me imortalizarem com este dia – não desperdicem um segunda da vossa vida. sejam verdadeiros e confiem no triunfo do que está certo sobre o que está errado. tenho a certeza que a vida vos há de recompensar –  não deixem nada por fazer – procurem os sonhos e acreditem. sempre – um homem sem sonhos não vale grande coisa – feliz dia para nós






18/03/2018

alma-que-sente






frida-khalo



mantenho-me acordado e enrodilhado em mim. recuso-me a dormir. olho o relógio e hipnotizo-me com o bater do coração – não tarda nada nasce o dia – mergulho na imaginação e revolvo-me mais uma vez à procura do que nunca encontrei. atiro o corpo de um lado para o outro e mantenho-me esperto. só o cansaço me dobrará – sussurro-me para saber que estou acordado. não quero ser sonho. tenho medo dos sonhos. tenho medo dos sonhos felizes e tenho medo de acordar dos sonhos que me fazem feliz – o vento corre veloz pelas frinchas e as portas replicam-no em barulho. estremecem imitando gente a sair. só a sair porque não ouço ninguém a caminhar em minha direção. faço silêncio dentro do meu silêncio. escuto o pavor de mim e do vento. arrepio-me. e a pele que me cobre lamenta-se de tudo. e é este tudo que não sei o que é que me ocupa o quarto todo – fico inquieto e como não sei rezar protesto com o divino. se soubesse talvez o fizesse. mas não sei. estou por minha conta. sempre estive por minha conta. nasci e cresci por conta do que sou e sou dono e senhor de todas as noites – cansado resisto segurando-me ao luar intermitente que passa nos intervalos da persiana. resgato-me ao escuro. a luz do luar é tudo o que tenho para sobreviver. e logo hoje que é lua minguante – estou esgotado e desapareço de mim a cada noite que passa. não gosto do que guardo no corpo. pesa chumbo. pesa morte e pesa dor – volto-me. mais uma volta. volto-me sem conta e invento soluções para o que não tem solução – distendendo-me num espasmo espontâneo. os tendões estalam e o corpo altera-se entre o medo e a resignação. se o coração encravar que se lixe – a noite é cada vez mais desumana – o corpo amarga. remorde-se vezes sem conta e a alma-que-sente cada vez mais acordada faz justiça pelas próprias mãos: mata uma mágoa – mas logo encontra outra ainda maior. tal como a matrioska russa. as mágoas nascem umas dentro de outras e quando uma desaparece há sempre uma maior que aparece a chamar-nos pelo nome – respondemos presente. um homem não se acobarda. morre de pé como as árvores e também que diferença faz mais dor ou menos dor – nem sempre se grita com a estropiação – e mais uma volta na cama e as voltas do corpo são as voltas da vida. de dia e de noite tudo igual. tudo incerto. tudo a magoar e a balança tombada para o lado que não entendo – o passado não é piedoso. o que guarda nunca se alterará – quero dormir. fecho os olhos mas não consigo fechar a memória. rebolo-me de um lado para o outro e não me encontro em nenhuma dos lados. estou só. completamente só e sem uma única palavra para me confortar – a memória consumida à medida do meu desespero. respiro a antecâmara da morte. sufoco. o coração aperta e os pulmões recuam. barricam-se na escuridão. e o ouvido já não quer socorro. quer silêncio. só silêncio e uma mão para não morrer sozinho – estendo a passadeira negra ao mal que me tocou. abro a porta do inferno e passa o impossível. de seguida o inacreditável seguido de perto pela dúvida que vem acompanhada pela incerteza e pelo desprezo. para logo depois. em gargalhada. aparecer a descrença abraçada à injustiça e. finalmente. vestida de preto. a renúncia ao que resta do mundo – e o travesseiro vazio pede cabeça que não pense porque não há dor maior do que uma cama sem sono



13/03/2018

representar o pensamento por meio de caracteres





pintura - jean-michel folon




a escrita:
são encontros de palavras
ordenam-se por interesses
comunicacionais

melieiro. o escrevente
exorna com:
traço
aprumo e labor

uma panóplia de
enxertos requintados
esteticismo em apelo
ao regresso às artes

acaba a coluna em:
galanteios ao leitor
um apelo à paixão
eterna




11/03/2018

a noite e os pássaros de ruy belo






gustavo rosa





é noite. vagueio. vagueio em ruas que aos poucos se fizeram minhas – vagueio porque é noite escura e sei que depois de uma noite escura nasce a luz e com a luz renasce a esperança e sempre que há esperança os “pássaros de ruy belo voltam a nascer nas pontas das árvores” – é noite. é março. e é inverno em todo o mundo e em mim também. as noites estão cada vez mais escuras e eu sem saber o que fazer a tanta imensidão de negro – é noite. vagueio. vagueio porque o corpo continua a mendigar fé. a suplicar luz e esta só chega quando as manhãs brilham com o canto dos pássaros – com a escuridão não se veem as árvores e sem árvores não há pássaros e sem pássaros “as árvores não cantam” e a primavera não nasce – o que faz um homem sem primavera? não sei. sei que “amo as árvores principalmente as que dão pássaros” – pergunto. que é feito das minhas árvores e dos meus pássaros? calaram-se como se me cala o coração – dizei-me vós senhor que sois dono de todas as coisas do mundo. dizei-me porque me roubaram as árvores. dizei-me uma palavra e sei que serei salvo – e agora senhor em que mundo cantam os meus pássaros? em que mundo senhor? – se na noite o silêncio me cura. a luz que me entregas faz-me morrer como morrem os dias de inverno: frios. escuros. sozinhos e sem um único pássaro – deixa-me poisar na noite como se fosse um pássaro e quando te encheres de mim deixa-me cair nos teus braços. pois tu sabes. tal “como pássaros. poisam as folhas na terra quando o outono desce veladamente sobre os campos” – vagueio triste. desgostoso e amargurado. vagueio comigo. sozinho. com o passado num relógio a bater termo e a vida escorrer-se devagarinho. segundo a segundo. olho-me para matar saudade e não me encontro. já não me lembro de mim. tenho saudades de ouvir os meus pássaros. acordar com o doce sabor da primavera mesmo que os campos se cobram de medo e geada – não quero morrer longe de mim. não me posso esquecer das minhas gaivotas e de todas as árvores que dão pássaros. não posso. ainda necessito de saber “quem é que lá os pendura nos ramos? e de quem é a mão. a inúmera mão?” – e o corpo parado em março como se fosse outono a anunciar inverno. e nem um único pássaro a nascer neste mês de morte e primavera – as árvores sem pássaros é silêncio que mata – só este meu abandono me ocupa com coisas que não servem para nada – imobilizo-me para ouvir o que não digo. o coração bate. ouço-o. ouço-o para saber que existo. e ele bate para se fazer sentir no mundo – não existe mais nada entre nós a não ser o bater estardalhado do coração e o silêncio do corpo. estamos sozinhos e o mundo abandonado de tudo que é meu – “gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores” tal como eu emano do nome com que me batizaram – faço de conta de que não estou onde estou. sorrio secretamente. trinco os lábios enquanto o corpo se mutila num futuro que começou no dia anterior e encolho-me até que o corpo volte à posição fetal. escondo-me dentro de mim porque fora já nada existe – até os pássaros de ruy belo partiram. foram ter com o poeta – perdoai-me senhor. perdoai-me se não encontrei no corpo os desígnios da tua palavra. perdoai-me por não nascerem pássaros nas minhas árvores. mas sabes. não sou poeta e só os poetas são capazes de domar as árvores. só os poetas sabem falar com os pássaros e só “os pássaros fazem cantar as árvores” eu não sou nada. não tenho árvores que dão pássaros. não tenho nada além do que sobra de mim que não é nada – “eu [apenas] amo as árvores. principalmente as que dão pássaros”


este texto faz referência a algumas proposições com pássaros e árvores do poeta ruy belo e estão devidamente identificadas no texto



02/03/2018

e se...






imagem - google




leio a biografia de ernest hemingway e resisto à sua dor numa contemplação silenciosa e serena – interrogo-me. como seria eu se tivesse nascido em mil novecentos e sessenta e um? e se tivesse nascido na américa? e se trocasse a minha coca cola zero e me afundasse em álcool? e se a guerra infindável da minha escrita começasse a perguntar por quem os sinos dobram? não sei o que seria. em boa verdade nada sei. acreditem. nem sei muito o que é que me leva a escrever este texto meio maluco. afinidades. creio – hoje. com o hemingway por perto. estou convencido de que se fosse possível cavar um buraco a partir da minha terra este iria dar à américa. chegado lá. só teria que comprar uma arma para matar as palavras. não as que escrevo. porque essas já nascem mortas. as que me vivem na cabeça e que me enganam com esperança – estamos em dois mil e dezoito. março. às portas da primavera e do inferno e eu num ato de contrição: por minha culpa. máxima culpa vos escrevo não o que tenho na cabeça mas o que me falta nas mãos – sossego. afinal nunca saí de onde estou. sou desta terra de portas abertas e que tudo vê por um canudo. finjo-me morto e entrego-me ao pensamento até que uma voz me resgate para o barulho do mundo – morrer não é uma chatice é um desígnio que compramos e nos permite nascer. só não nos dizem o dia em que partimos. iludem-nos com tempo. como se o tempo fosse uma equação simples de calcular. não é. nem sempre viver cem anos é melhor do que cinquenta – viver é conduzir numa autoestrada em hora de ponta a duzentos quilómetros por hora. fazer dois piões. entrar por uma galgueira. andar em duas rodas. evitar trinta e três acidentes enquanto falamos ao telemóvel e sorrimos para o retrovisor com desdém porque o que fica para trás já não nos serve para nada – ninguém quer saber o que fizeste. só o presente faz futuro – quando damos conta chegamos ao destino meia hora mais cedo com a sensação de que o mundo está todo atrasado – estamos no nosso velório. louvado seja o senhor