.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

17/11/2010

talvez um monólogo com deus









1.

fazia frio dentro de mim. foi a primeira vez que senti esse frio. no entanto o corpo não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. bem lá para o fundo. sentia tudo a gelar – estava sozinho. como sempre tinha as mãos metidas nuns bolsos fundos e vazios. tentava encontrar um pouco de mim. algo que ainda estivesse quente – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros a voar rumo às temperaturas do sul – nem sei o nome desses pássaros. vêm em bandos. voam com asas carregadas de coisas da vida. pedaços do tempo – lugares de quem vive com horizontes certos – já não tenho o tempo numerado. perdi-me dentro do corpo – já não há movimento de rotação. a noite nunca clareia. e a cada hora. uma visão do sol pintada na esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos dedos até aos mais recônditos espaços da minha carne. perfurada pela escara de viver sempre na mesma posição – com voracidade. mexo as mãos. é assim que sinto que estou vivo – entrelaço-as. deixo os dedos compreender que é na procura que acabo por aprender a sobreviver – faço dor. cerro os dentes. os olhos esburacam-se e a pele enrodilha-se na gritaria que me sobressalta sempre que tento pensar – caio no fundo de mim. queria tanto calor. queria tanto aconchego. no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de esperança. e eu queria tanto encontrar um braseiro que me atenuasse este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. acredito que talvez este seja o frio de fantasmas a vaguear dentro de mim. talvez procurem algo que sei que não tenho. nunca tive nada – estes desejos com o tempo morrem. morrem como todas as primaveras que inventei – mas o tempo passa. e estas primaveras que faziam flores. não mais voltarão a ter inverno. mesmo que com menos sol – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a vontade de ter outro futuro. percebi que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma disputa de tudo que cresce num pedaço de mim vagabundo – este frio nasce cada vez mais frio. alimenta-se desta minha vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes –


2.
hoje estou morto. esta coisa de morrer e continuar a pensar é de loucos. só ainda não sei bem quem morreu. espero que não seja aquele que costuma escrever a morte em vida – esse faz-me falta para o resto da jornada. tenho umas quantas palavras pensadas. desde ontem. à espera de tombarem em papel pardo. cru. daquele que é feito de restos de árvores que um dia fizeram uma floresta – estas palavras. também elas moribundas. agoniadas pelo tempo que levaram a ganhar forma literária. recusar-se-ão a dormir – as noites tornar-se-ão num inferno. e as manhãs cada vez mais distantes – estou louco. há dentro de mim um sofrimento. vive sem cadência. sem rumo ou trajecto. e atravessa uns todos que vivem num corpo só – tenho um tempo ainda em memória. um tempo em que os olhos não distinguiam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundi-os com as músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem nos meus anseios. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja assim. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez as suas mãos estejam trémulas pelo tempo que leva a fazer pessoas – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar jeitos de ser. jeitos de pensar. jeitos de resmungar. jeitos de conquistar amores – talvez nesse dia. deus estivesse também ele muito triste. desgostoso. aborrecido. zangado com o mundo de marionetes que imaginou – fazer deste pedaço de terra um paraíso – adão e eva já não trincam a maçã como antigamente. e a serpente que no passado rastejava por um solo sagrado. é agora um monstro com várias cabeças. caminha em cima de um par de andas – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – exausto pela dor de ver que até um deus. num acesso de raiva. me pariu assim. um assim que nunca foi capaz de numerar com um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso – passei a ser assim. uma coisa que como não é coisa nenhuma. um dia percebe que as sedielas que seguram a marionete estão entrelaçadas. enrodilhadas – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – magoado. cheio de feridas abertas e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca conseguiu acarinhar a sua face. que todos os dias olha para o seu interior para dizer que não suporta mais este mundo que construiu dentro de si – tenho que ter uma conversa com deus. talvez ele também necessite de ser perdoado. talvez ele permita que eu pegue numa mortalha e lhe limpe o suor do cansaço de ter que todos os dias contar comigo neste seu mundo – talvez entenda que ainda hoje estou à sua disposição para me poder explicar aquele mau dia – este deus vai ter que me ouvir. vou ter de saber porque me fez com vários corações. vermelhos. atrofiados. bastava-me um. um que soubesse escrever apenas versos de amor. versos capazes de me fazer chorar para além de um punhado de palavras que podem representar uma vida –


3.
hoje estou morto. esta coisa de morrer e continuar a pensar é de loucos. só ainda não sei bem quem morreu. espero que não seja aquele que costuma escrever a morte em vida – esse faz-me falta para o resto da jornada. tenho umas quantas palavras pensadas. desde ontem. à espera de tombarem em papel pardo. cru. daquele que é feito de restos de árvores que um dia fizeram uma floresta – estas palavras. também elas moribundas. agoniadas pelo tempo que levaram a ganhar forma literária. recusar-se-ão a dormir – as noites tornar-se-ão num inferno. e as manhãs cada vez mais distantes – estou louco. há dentro de mim um sofrimento. vive sem cadência. sem rumo ou trajecto. e atravessa uns todos que vivem num corpo só – tenho um tempo ainda em memória. um tempo em que os olhos não distinguiam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundi-os com as músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem nos meus anseios. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja assim. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez as suas mãos estejam trémulas pelo tempo que leva a fazer pessoas – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar jeitos de ser. jeitos de pensar. jeitos de resmungar. jeitos de conquistar amores – talvez nesse dia. deus estivesse também ele muito triste. desgostoso. aborrecido. zangado com o mundo de marionetes que imaginou – fazer deste pedaço de terra um paraíso – adão e eva já não trincam a maçã como antigamente. e a serpente que no passado rastejava por um solo sagrado. é agora um monstro com várias cabeças. caminha em cima de um par de andas – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – exausto pela dor de ver que até um deus. num acesso de raiva. me pariu assim. um assim que nunca foi capaz de numerar com um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso – passei a ser assim. uma coisa que como não é coisa nenhuma. um dia percebe que as sedielas que seguram a marionete estão entrelaçadas. enrodilhadas – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – magoado. cheio de feridas abertas e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca conseguiu acarinhar a sua face. que todos os dias olha para o seu interior para dizer que não suporta mais este mundo que construiu dentro de si – tenho que ter uma conversa com deus. talvez ele também necessite de ser perdoado. talvez ele permita que eu pegue numa mortalha e lhe limpe o suor do cansaço de ter que todos os dias contar comigo neste seu mundo – talvez entenda que ainda hoje estou à sua disposição para me poder explicar aquele mau dia – este deus vai ter que me ouvir. vou ter de saber porque me fez com vários corações. vermelhos. atrofiados. bastava-me um. um que soubesse escrever apenas versos de amor. versos capazes de me fazer chorar para além de um punhado de palavras que podem representar uma vida –



4.
meu deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que até os sinos tocam a defunto. porque não vens tu falar-me? deverias ter esse cuidado. sempre que alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. pelo menos de uma palavra penso ser digno. não necessitas de grandes formalidades. esperava que me dissesses qual o caminho a seguir. ou então. que mandasses um mensageiro. um anjo. um qualquer pacóvio daqueles que nunca pecou nem por pensamentos. actos ou omissões. um daqueles que nunca teve coragem para te questionar e sempre batia com a mão no peito quando se tratava de pronunciar o teu nome – ainda tens a oportunidade. para me irritares. de me mandares uma beata que. arrependida. se ajoelha no confessionário e pede perdão. por todos os nomes que te chamou na vida que lhe destinaste. ao lado de um estupor que se embebeda e a enche de porrada para destilar os fígados – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. às vezes até fico na dúvida se sabes que existo – um homem sem honra é capaz dos maiores disparates. e é nesse momento que sobe à montanha mais alta para te dizer que necessita de ti – já no seu topo. com as estrelas à distância de uma mão estendida. deixa cair o corpo no baloiço das incertezas – sentado no penhasco. lembra todas as vidas que ainda tem dentro de si. não chora. deixa apenas cair umas pequenas lágrimas na palma da mão. amarra-as com toda a força e olha para o céu para ver se te vê – o chão fica ali tão perto. e as luzes do mundo são ainda pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem o meu nome. toda a fé está tomada por gente sem rosto – sei que esta fé ainda existe pelos sorrisos que deixei para trás. um atrás de outro. até já não ter um único para me poder lembrar de como é sorrir. mesmo para ti – um dia. disseram-me que eras também meu pai. e a um pai há sempre a obrigação de se ter um sorriso. mas eu já não sei como se fazem sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. e percebo que num único passo todas as interrogações voarão para a eternidade – estou triste. sinto cada vez as estrelas mais perto – não te exigiria mais do que apenas um bilhete com uma palavra tua assinada pelo teu punho. para então poder acreditar que ainda és tu que mandas neste mundo. neste medo que existe dentro dos meus olhos – podes não crer mas ainda quero acreditar que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – não quero admitir que tens os olhos vendados. nem muito menos uma espada amarrada à mão que um dia mandou fazer milagres – sempre ouvi dizer que não suportas a violência. ainda me lembro da minha catequista me contar umas quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de orgulho por pertencer à tua família – ainda me lembro da primeira vez que me ensinou o pai nosso. disse-me que era uma forma especial de comunicar contigo. de te fazer feliz. de me ouvires – passei noites a dizer-te este pai nosso. repetia-o. repetia-o. repetia-o. pensava sempre que um dia ias ficar tão feliz que me falarias – acabava por cair de sono. com os olhos espetados num retrato onde na parede o teu filho subia ao reino dos céus acompanhado por uma dezena de anjos – o que mais me impressionava eram os raios de luz que lhes serviam de guia para se sentar à tua direita. eram tão brilhantes. sempre que acordava olhava para o céu na busca de uma luz que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes deixava-me apenas com os ossos do corpo na mão. e as dúvidas já quase não tinham corpo para o continuar a ser – nunca entendi muito bem essa treta de dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora. muitas vezes amargurada pela ingratidão de quem jamais iria aprender as letras com aquelas formas arredondadas. recorria severamente à sua palma da mão para me trazer à razão de um abecedário universal que eu não compreendia – nunca soube ao certo se era por não saber juntar as letras. ou se era por ser o único que usava suspensórios por cima da camisa branca bem ajeitada com o botão apertado junto ao pescoço. de cabelo bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar todos os invernos. mesmo os que nasciam no quadro preto de uma escola que se dizia primária – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha de um anjo da guarda. benzida no mesmo dia que me entregaram a ti numa pia de pedra rodeada de santos e promessas de protecção – nunca ganhei coragem para lhe oferecer a outra face. bem que queria ser como tu. mas não conseguia. nem era pela dor. era pelo orgulho. queria ser diferente – nunca entendi porque me batia e  nem compreendia porque é que tu na parede. com os olhos pregados em mim. nada fazias – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz. mas. meu deus. então os milagres que sempre me disseram que fazias. onde paravam? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me aliviar das diferenças que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho. a escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a sua vida já o era – apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes reservaste. sorriam. todos menos eu. e eu que tanto queria. tanto mesmo – o único caderno de linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu nome. o “d”. saía do carreiro. nunca percebi o porquê do teu nome sair sempre fora das minhas margens – a vara. reservada para os dias que a professora descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma varada e a seguinte. eu sempre olhava para ti – naquela parede descoberta de qualquer adorno. apenas existias tu. queria tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre. daqueles que me tinham feito acreditar em ti. parasses aquela vara maldita. aquele desespero. aquele nunca. que parecia nunca acabar – mas não. tu nada fazias. continuavas na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer. ignoravas-me. fazias de conta que nada existia. a mim e a todos os outros que como eu te imploravam para os acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa triste e desanimado por não encontrar crianças com cadernos com linhas na escola. nunca me apareceste a dizer uma palavra. nunca sequer vi uma pomba branca – nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que me dissesses que o meu caminho iria ser um inferno. eu aceitaria. ainda acreditava naquelas histórias do teu filho. nos milagres de fazer ver os cegos. e aquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou de lázaro. que voltou das trevas para te poder abraçar e acreditar que tu eras afinal a vida certa – sabes! nesses dias em que me contavam essas histórias eu chorava. de alegria. por todos aqueles que te puderam apertar a mão e dizer: - obrigado por me dares um caminho – apesar de tudo eu sempre te perdoei por nunca me teres aparecido naqueles momentos difíceis. pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisa mais de ti do que eu –



13/11/2010

o tempo que o tempo tem









o dia alterou
o relógio
sempre fugiu
até o big ban
dos ponteiros
só os segundos
correm

00.01 pm

o escritor
construtor de ilusões
não diz:
hoje é sempre ontem

palavras
ideias
emoções
lágrimas
crenças
pessoas
histórias
fotos
guerras
ambições
loucuras
falsidades
namoradas
vicissitudes
ejaculações
rendições
tudo.
tudo. sempre tudo

de ontem
é o tudo
antes dos ponteiros
a cadência do tempo

pensar reclama
saber hoje:
estou longe no tempo
sou de ontem

do papel
o cheiro de uma floresta
do tinteiro
o alquimista
ontem
a máquina do sol nascente
mãos grossas piores
ainda ontem
foram
pés com barbatanas

hoje só é
leitura
curta pelo
tempo
no vosso relógio
serei sempre
imaginação

momento

00.17pm

o relógio
faz
tic-tac

momento
no não silêncio
curto este bater
tic-tac
é de hoje



in. visões do corpo



10/11/2010

estes lados. nossos









hoje tenho entre os dedos um pedaço de terra. trouxe-a de um jazigo para amaciar esta saudade – desde que partiste sinto-me tão perdido. tinha ainda coisas encaixotadas do passado para te dizer. eram importantes. digo eu – não devias ter apanhado esse autocarro. bem sabes que o caminho por aí é demorado. estreito. essa estrada é tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escura. – tenho medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã às cores. fazia-te bem mais novo. era lã pura. combinava contigo – um dia vesti-o. irritei-me. não me assentava nos ombros. sempre foste mais aprumado - tinhas as costas sempre tão direitas – as minhas. bem. as minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço a acreditar que é possível viver nos sonhos – ontem consegui falar-te com os lábios. sempre depois daquele beijo obrigatório na face. quente. senti eu – deixaste-me ficar um trago açucarado na boca. mel – calei-me. guardei-o no silêncio criado pelos meus olhos. nosso – apeteceu-me estender as mãos. tocar-te – tive medo de acordar. guardei a mão na algibeira. onde tenho cravada a linha da vida que um dia foi cortada pela tua ausência – nesta linha que continua a crescer aos ésses . criei uma árvore em terra fértil quando ainda não via todas as folhas. algumas viviam no topo das árvores. sem luz – era pequeno demais e tu viravas-me sempre para nascente – nos dias em que me pegavas ao colo. as árvores eram enormes – a vida ainda acontecia nos teus braços. fortes. tão fortes que sempre sorria quando me erguias em direcção ao céu – ainda nem imaginava que havia um céu capaz de receber todos aqueles que gostamos – apenas sabia de um jardim infantil criado para mim – havia sempre tanta gente a dizer coisas neste jardim. faziam um quase barulho. talvez um quase música – tu. falavas como se as palavras ainda não tivessem sido inventadas – nunca paravas – e nos teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas – neste mundo. havia um baloiço que nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais tarde haveria de ser também meu – regressavas sempre. por mais que o tempo matasse o próprio tempo. sempre com um sorriso. sempre o soube – parecia tudo tão simples. bem sei que tu também eras simples – este baloiço andava para lá e para cá devagar. havia ali algo que eu ainda não percebia. sabia apenas que voava sempre de norte para sul – tu bem que me apontavas o caminho. mas era demasiado pequeno para entender que até o sol um dia pode morrer – mas não desistias. os teus gestos eram sempre palavras novas na certeza de ver um homem feliz – na tua presença o baloiço nunca parava: livre. procurava sempre novas palavras. novos ouvidos. novos olhares. novos gestos. esquecias sempre o teu caminho. cortavas o futuro. alagavas todos os longes. ficava apenas um ali. um acolá – as argolas de ferro que te seguravam à vida já rangiam – nesses dias. ouvia-se o vento. mal eu sabia que este ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas ainda amparado no sinal da cruz com que te deitavas – tu ainda tinhas um deus. ele também era meu. estamos amuados – para te ser franco dele nada sei – no ar as folhas chamavam o outono – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se e as cordas começaram a chorar – nesse dia que viajaste fiquei tão só – tínhamos ainda tanta coisa para dizer – mais tarde um homem de chapéu preto chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma chave com um fita preta sem nenhuma palavra tua – tu não eras homem para partir sem palavras. não eras – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou fora. não aborreças a tua mãe – alguém te enganou. digo eu –fomos enganados – tiraram-te a memória para puderes partir sem boca – a dor comeu o silêncio – sei que um dia vais voltar. ou então esperarás por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho que usavas na carteira. nunca mais o vi. acredito que volte contigo – sei que um dia me vais pedir para falar da vida que guardo todos os dias – enterro tudo num buraco. onde criei a árvore – a pá é a tua voz.



07/11/2010

cruz ansata









não tenho palavras para segurar a cabeça que comprei naquela loja de ferro velho. pende para o lado. o lado onde não há coração. onde morrem todos os verbos que amparam a injustiça – os braços. outrora selvagens e vigorosos. caíram desesperados – apareceu a ferrugem. uma que conheci em tempos. corrosiva. matava todos os nomes – podem ruir a todo o momento. talvez tivessem crescido demais. e as línguas cuspissem encantos sem nada saber de braços com mãos dependuradas – agora não sei se desespere ou se espere – mesmo com toda a indiferença que sempre guardei – por detrás do olhar temo pelas minhas mãos – habituei-me a este corpo. despido. descalço. trago apenas à cinta uma sacola de couro e de letras – fazem uma vida – sorrisos poucos. lágrimas muitas – dos olhos redondos brilhantes já pouco resta. soltam-se agora pedaços de raiva – nasceram talvez na menina dos olhos. sempre tão sensível – sempre acreditou em tudo que via. ingénua – voltou tudo novamente. o tempo dentro de mim afinal é uma mentira – pensava que já me tinha esquecido dos amigos e agora vieram estes. os novos. os arrumados. os eleitos sem direitos. sem teto procuram hipérboles como o diabo procura o pecado. talvez sejam parentes – sorte a minha. uma vida inteira a segurar o olhar dos que sempre acharam que não havia palavras dentro de mim – não me posso calar novamente – estas mãos também escrevem. não matam nenhuma palavra – bem sei que não sou fidalgo. e ainda não tenho aquele anel de ouro feito de hematite negra – e a cor negra que trago no corpo é de arranjar comida para fazer trabalhar as mãos – mas são sempre estas que escrevem. apenas estas. assim. cheias de marcas. de veias. de cicatrizes fechadas de dor – são as minhas mãos – estou revoltado. porque me roubaste o nome que escrevia apenas para dizer as minhas coisas. não a ti. não ao teu mundo. nem sequer àqueles que gostam deste sinal que tenho na face – escrevo para mim. para ser feliz como nunca fui – vê o que fizeste destas mãos. umas mãos ásperas. só hoje? talvez sim. talvez para sempre – também se pode escrever ásperas no meio de um substantivo comum – malditos sejam – a escrita não é só um dom. é dor. é gozo. é ejaculação. é orgasmo. é vida. é esperança – a escrita é essencialmente isto de ser o que sou quando escrevo. e quando escrevo sou isto – repito. sou isto.



04/11/2010

mau tempo









tenho as palavras alteradas. talvez por isso as gaivotas continuem em terra – até aquela gaivota malhada que sempre se fazia ao vento norte. com asas a rasgar a espuma que me caía do canto da boca me virou as costas – talvez lhe fale um dia destes. talvez lhe diga que o mar é infinito aos meus olhos. ou talvez lhe vire as costas – verei o que fazer com as palavras. talvez guardá-las para sempre do sal que as corrói – mas do mar nunca tirarei os olhos. foram baptizados por um deus que não sabia escrever. sabia apenas equilibrar – nasceram as marés