.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

14/02/2017

sou




lucian freud




sou
sou
sou
mesmo contra vossa vontade sou
não sou este
o que desse palanque cogitais
sou aquele
aquele que daqui
deste meu reservatório
de ideias sou
sou assim
duro como pedra
mole como os pensamentos
tramados pelas mãos
sou
sou
sou
sou convencido no que sou
sou até um qualquer
sempre que quero
e quando não quero
também sou
hoje. por acaso. sou um ruído com olhos castanhos
vejo todos os sons com um sou
um sou único
talvez um sou com som
um que se ouve a si
para dizer
assim serei
com o meu som eu sou
sou
sou
sou
sou de um tamanho que já não existe
presente para o mundo
dos que nada são
sou afinal um sou só
só porque sou teimoso
para não ser um sou dos outros
sou meu
sou do meu sou
talvez louco. sim talvez
mas sou
sou






08/02/2017

epitáfio




pintura de michael borremans


onde o descanso não existe tudo permanece imutável – aceito então o dia tal e qual como o faço aparecer – a mágoa de ver a minha humanidade morrer já não é agonia nem aflição. é um atalho para a liberdade – a liberdade para o espírito também é possível ocorrer com o armagedon – “como direi. uma liberdade absoluta”. largada em voo de borboleta. num vagar feito de pressa. em voltas cegas de fantasia onde o daqui para acolá se torna uma dimensão impossível de medir no tempo – o momento cruel – a realidade só existe no agora – tudo que verdadeiramente existe em mim são campos inesgotáveis de malmequeres alinhados numa mestria ortodoxa. perfeita e objetiva – uma simbologia improrrogável a determinar com aspereza: culpado. condenado à pena de morte por asfixia – já não sou capaz de imaginar o impossível – espero numa espera que desespera – o dia seguinte será feito de um ventinho miudinho. fininho. gélido e ininterrupto – os corpos na hora da morte perdem calor – finalmente a tempestade perfeita imortalizará definitivamente a casa das utopias: morte também por asfixia – tudo que foi vida ficará reduzido a segundos de lembrança resolvidos numa nova contagem de tempo – mais de vinte mil dias resumidos à diferença entre o nascimento e a hora da morte – um sorriso para norte e uma pausa para o nada. em câmera lenta. e tudo tão real. tão cruel. e o punhal escondido por detrás de um coração que arrefeceu para pedra. sem sangue. sem raiva e sem esperança também. tudo isto numa alma que nunca se cansou de ser humana num mundo tantas vezes desumano – nem sempre a graciosidade nos enxerga como entendemos merecer – só o erro faz dos humanos mais humanos – como direi. uma liberdade absurda e absoluta só existe depois da morte – aqui estou prostrado. sem vos poder dizer nada de uma mágoa que já não quero compreender – sim. aceito para o bem ou para os malmequeres tombados ao pé da urna onde os resto mortais abraçarão o eterno do nada – partirei sozinho. se não há deus em vida também não há deus depois da vida – serão então as minhas virtude a trazer à lembrança uma saudade feita para a perfeição que acabou extinta por culpa da imperfeição – é noite. melhor. agora é sempre noite e o cérebro deseja o que o corpo que já não sabe fazer existir – alucinação – a celebração da morte não é utopia.  é liberdade perfeita – finalmente a aceitação do corpo tal e qual como o fabriquei – serei então um momento absoluto. prostrado horizontalmente num infinito de demónios soltos ao destino da imensidão esquecida onde a metáfora da despedida se faz com um: até sempre