.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

22/12/2010

tudo









ainda tenho de encontrar as palavras para te dizer tudo – tudo é pequeno. tão pequeno dentro. quero dizer: és tudo. mas tudo é tão pouco. tão só. tão curto. tão .....vazio. como eu. sem camisa branca. sem colarinhos engomados. sem botões de punho. sem roupa feita à medida. sem anel. nem branco nem amarelo. nem nada. não há nada que diga tudo. e ainda tenho tudo para te dizer. tanto. mas só os teus olhos sabem. só – e tudo é quase o nada. nada – és tu sempre tudo o que quero. tudo o que sinto quando respiras a meu pé – eu sou um tudo nada. um tudo nada de amor. um tudo maior que o céu. que o futuro. que a vida. que o tempo que resta – quando vejo os teus olhos. quando os olho por dentro. onde guardas ainda o menino que um dia te abraçou como se todas as primaveras de março morressem no teu sorriso. tudo dentro de mim diz que não tenho ainda o que deveria ter para te abraçar. para te beijar. para te segredar ao ouvido: tu és o meu tudo – mas não. não tenho esse tudo quando estás perto. não há palavras. a boca treme e até a ternura que trouxe do passado fugiu para um lugar que não conheço – dentro de mim tudo desaparece – tenho os olhos nas mãos. quando adormeces encosto-os ao teu peito. no teu cabelo enrolo a vida em caracóis bem apertados – deixo de respirar. o ar é todo teu. tudo é teu nas noites onde me desculpo por não ter tudo. um homem sem tudo é um homem desesperado – dormes. dormes como se fosse teu o primeiro sono. quando o amor era uma criança pequena – guardo no peito todas as lágrimas. as que afogam o coração até ao dia em que um de nós tenha de partir. são também tuas. todas – são tantos anos amor. são tantos anos. foram tantos anos que o meu coração migrou. está no teu peito. e é o teu nome que bate no meu peito agora. és a minha vida. és o corpo. o corpo que corre . que abraça. que grita. és. desde o dia em que me pediste tudo. não tinhas de mo pedir porque tudo és tu – tudo o que quero amor. tudo o que quero. é guardar os teus olhos para o dia. onde o tudo deixará de ser tudo. tu não estarás e eu partirei para um lugar diferente de tudo o que tive – não quero chorar por ti. não seria capaz. tu és tão bela. sempre foste. a pele ainda cheira às flores que um dia colhemos em junho. loucos. começamos a falar de amor até hoje. nunca paramos. mesmo quando de porta aberta o vento fazia gelar os corpos. nós falávamos. falávamos de amor. cada vez mais loucos – somos amor. tudo é amar-te – tu és tudo. tudo o que tenho para não chorar – de ti amor quero as lágrimas – quero que sintas a pele fria. gelada. de quem vai para o inferno. por saber que não mais te verei. quero sentir os teus lábios quentes. na minha carne gélida. quero que recebas a chave que me encerrará para sempre no lugar dos que sabem que o amor terreno não é eterno. quero os teus beijos desesperados por deslaçarmos as mãos . quero as tuas mãos ao pescoço e ouvir: nós fomos tudo um para o outro – jamais te poderei dizer tudo. não sei escrever amor. não sei amor. perdoa-me mas não sei fazer palavras. só sei dizer que não aguento viver sem ti.



08/12/2010

necrófago









quero um cadáver
para um poema
por nascer

dobrado
na ponta
sem nome
palavra
ou dor
que o anuncie

tombado
respira
parado
e em esforço
o silencio
que o peito sente

bem fundo
a noite
sempre
acontece

sobrevivo
entre a espada
e o papel



05/12/2010

é dezembro










o mau tempo de hoje. é dezembro – o frio que está pelos pés. mistura-se com este que me esfria as mãos – já não tenho forma de trabalhar as palavras com calor – se fosse ferreiro. temperava os adjetivos com tenazes. nas brasas. no fogo “que arde sem se ver”. com o maço da minha vida. com batimentos certos. ao compasso do coração: pum. pum. pum – firme – certos dias parecem-me os passos de alguém que regressa do meu passado –  em cima dele. do lado direito. mesmo ao lado da veia cava. construí um banco de ferro com todas as memórias que tenho – quando quero aliviar o peso da trouxa de palavras que trago na cabeça. sento-as. e lá sossegam – já tenho pouco tempo para perder o corpo – envelheceu. num tempo que verdadeiramente nunca foi meu –  agora. espero companhia. ninguém regressa. cada vez estou mais só –  do lado esquerdo uma mesa de pau-santo enfeitada com fotos a preto e branco – entre o banco e a mesa uma corda esticada segura um tipo de lençol rendado. tem figuras de santos desenhados a fio de ouro com crianças pela mão – ao centro. em fio de seda preta. o cálice sagrado da vida – é neste que misturo o sangue e as lágrimas que guardei na palma da mão – é tudo que tenho da vida. umas quantas lágrimas tingidas de vermelho ainda vivo – sei. sei que será este tule que um dia cobrirá o meu último suspiro – também eu terei uma foto na mesa e uma coroa de flores com duas fitas negras a dizer – saudade eterna – mas o coração ainda bate. bate. bate –  silêncio – talvez a vida pare a qualquer momento – escuto – fico com medo que o silêncio fique… assim como todos os silêncios. vazio. sem. sem gente sentada. sem futuro. sem olhos negros. sem língua. sem lágrimas e nem vento. nem brisa. nem quente. nem nunca. ninguém sussurra nestes ouvidos que ainda continuam a ouvir o bater do coração – é dezembro. e o dezembro traz sempre o inverno – ainda me lembro de ser natal em dezembro e não estar só.



01/12/2010

nem nunca









sinto-me entre a espada e a parede – tempos houve em que estava entre a parede e a espada – as palavras devolveram-me a razão. a minha razão – no passado invisível. envergonhada. escondia-se no silêncio – havia barulho a mais para os meus medos – nas minhas mãos havia ainda um par de papoilas. loucas por cores. viviam do sol. de um sol que nunca imaginei meu – assim. estava tão longe e nem sequer bicicleta tinha – os outros. já eram enormes. falavam tudo com tanto saber. eram gigantes. com umas bocas que quando abertas podiam guardar todas as bicicletas do meu imaginário. passavam velozes. nunca sorriam ou acenavam. penso que iam com pressa. talvez fossem donos do sol – se eu um dia tivesse uma boca assim. talvez também pudesse chegar ao sol – acreditei. no passado alguém me disse para acreditar. sempre – aos poucos. comecei a juntar todo o ferro-velho que fui encontrando pela estrada. separei todas as porcas e parafusos. fiz uma corrente. uma corrente resistente ao orvalho das noites frias – enchi os pneus de papéis escritos com os meus nadas. levantei os pedais que um dia o meu pai me ensinou a fazer. vendi um anel de família para comprar um casaco de couro e um boné – tirei-lhe as mangas. fiz um selim – à frente do guiador um livro de eugénio de andrade ilumina a estrada que escolhi. quero dizer ao sol que um dia ele também será meu – encontrarei a campainha que abrirá caminho entre os gigantes. mesmo aqueles que pela força dos deuses se fizeram pedra –



17/11/2010

talvez um monólogo com deus









1.

fazia frio dentro de mim. foi a primeira vez que senti esse frio. no entanto o corpo não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. bem lá para o fundo. sentia tudo a gelar – estava sozinho. como sempre tinha as mãos metidas nuns bolsos fundos e vazios. tentava encontrar um pouco de mim. algo que ainda estivesse quente – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros a voar rumo às temperaturas do sul – nem sei o nome desses pássaros. vêm em bandos. voam com asas carregadas de coisas da vida. pedaços do tempo – lugares de quem vive com horizontes certos – já não tenho o tempo numerado. perdi-me dentro do corpo – já não há movimento de rotação. a noite nunca clareia. e a cada hora. uma visão do sol pintada na esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos dedos até aos mais recônditos espaços da minha carne. perfurada pela escara de viver sempre na mesma posição – com voracidade. mexo as mãos. é assim que sinto que estou vivo – entrelaço-as. deixo os dedos compreender que é na procura que acabo por aprender a sobreviver – faço dor. cerro os dentes. os olhos esburacam-se e a pele enrodilha-se na gritaria que me sobressalta sempre que tento pensar – caio no fundo de mim. queria tanto calor. queria tanto aconchego. no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de esperança. e eu queria tanto encontrar um braseiro que me atenuasse este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. acredito que talvez este seja o frio de fantasmas a vaguear dentro de mim. talvez procurem algo que sei que não tenho. nunca tive nada – estes desejos com o tempo morrem. morrem como todas as primaveras que inventei – mas o tempo passa. e estas primaveras que faziam flores. não mais voltarão a ter inverno. mesmo que com menos sol – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a vontade de ter outro futuro. percebi que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma disputa de tudo que cresce num pedaço de mim vagabundo – este frio nasce cada vez mais frio. alimenta-se desta minha vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes –


2.
hoje estou morto. esta coisa de morrer e continuar a pensar é de loucos. só ainda não sei bem quem morreu. espero que não seja aquele que costuma escrever a morte em vida – esse faz-me falta para o resto da jornada. tenho umas quantas palavras pensadas. desde ontem. à espera de tombarem em papel pardo. cru. daquele que é feito de restos de árvores que um dia fizeram uma floresta – estas palavras. também elas moribundas. agoniadas pelo tempo que levaram a ganhar forma literária. recusar-se-ão a dormir – as noites tornar-se-ão num inferno. e as manhãs cada vez mais distantes – estou louco. há dentro de mim um sofrimento. vive sem cadência. sem rumo ou trajecto. e atravessa uns todos que vivem num corpo só – tenho um tempo ainda em memória. um tempo em que os olhos não distinguiam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundi-os com as músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem nos meus anseios. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja assim. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez as suas mãos estejam trémulas pelo tempo que leva a fazer pessoas – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar jeitos de ser. jeitos de pensar. jeitos de resmungar. jeitos de conquistar amores – talvez nesse dia. deus estivesse também ele muito triste. desgostoso. aborrecido. zangado com o mundo de marionetes que imaginou – fazer deste pedaço de terra um paraíso – adão e eva já não trincam a maçã como antigamente. e a serpente que no passado rastejava por um solo sagrado. é agora um monstro com várias cabeças. caminha em cima de um par de andas – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – exausto pela dor de ver que até um deus. num acesso de raiva. me pariu assim. um assim que nunca foi capaz de numerar com um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso – passei a ser assim. uma coisa que como não é coisa nenhuma. um dia percebe que as sedielas que seguram a marionete estão entrelaçadas. enrodilhadas – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – magoado. cheio de feridas abertas e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca conseguiu acarinhar a sua face. que todos os dias olha para o seu interior para dizer que não suporta mais este mundo que construiu dentro de si – tenho que ter uma conversa com deus. talvez ele também necessite de ser perdoado. talvez ele permita que eu pegue numa mortalha e lhe limpe o suor do cansaço de ter que todos os dias contar comigo neste seu mundo – talvez entenda que ainda hoje estou à sua disposição para me poder explicar aquele mau dia – este deus vai ter que me ouvir. vou ter de saber porque me fez com vários corações. vermelhos. atrofiados. bastava-me um. um que soubesse escrever apenas versos de amor. versos capazes de me fazer chorar para além de um punhado de palavras que podem representar uma vida –


3.
hoje estou morto. esta coisa de morrer e continuar a pensar é de loucos. só ainda não sei bem quem morreu. espero que não seja aquele que costuma escrever a morte em vida – esse faz-me falta para o resto da jornada. tenho umas quantas palavras pensadas. desde ontem. à espera de tombarem em papel pardo. cru. daquele que é feito de restos de árvores que um dia fizeram uma floresta – estas palavras. também elas moribundas. agoniadas pelo tempo que levaram a ganhar forma literária. recusar-se-ão a dormir – as noites tornar-se-ão num inferno. e as manhãs cada vez mais distantes – estou louco. há dentro de mim um sofrimento. vive sem cadência. sem rumo ou trajecto. e atravessa uns todos que vivem num corpo só – tenho um tempo ainda em memória. um tempo em que os olhos não distinguiam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundi-os com as músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem nos meus anseios. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja assim. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez as suas mãos estejam trémulas pelo tempo que leva a fazer pessoas – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar jeitos de ser. jeitos de pensar. jeitos de resmungar. jeitos de conquistar amores – talvez nesse dia. deus estivesse também ele muito triste. desgostoso. aborrecido. zangado com o mundo de marionetes que imaginou – fazer deste pedaço de terra um paraíso – adão e eva já não trincam a maçã como antigamente. e a serpente que no passado rastejava por um solo sagrado. é agora um monstro com várias cabeças. caminha em cima de um par de andas – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – exausto pela dor de ver que até um deus. num acesso de raiva. me pariu assim. um assim que nunca foi capaz de numerar com um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso – passei a ser assim. uma coisa que como não é coisa nenhuma. um dia percebe que as sedielas que seguram a marionete estão entrelaçadas. enrodilhadas – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – magoado. cheio de feridas abertas e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca conseguiu acarinhar a sua face. que todos os dias olha para o seu interior para dizer que não suporta mais este mundo que construiu dentro de si – tenho que ter uma conversa com deus. talvez ele também necessite de ser perdoado. talvez ele permita que eu pegue numa mortalha e lhe limpe o suor do cansaço de ter que todos os dias contar comigo neste seu mundo – talvez entenda que ainda hoje estou à sua disposição para me poder explicar aquele mau dia – este deus vai ter que me ouvir. vou ter de saber porque me fez com vários corações. vermelhos. atrofiados. bastava-me um. um que soubesse escrever apenas versos de amor. versos capazes de me fazer chorar para além de um punhado de palavras que podem representar uma vida –



4.
meu deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que até os sinos tocam a defunto. porque não vens tu falar-me? deverias ter esse cuidado. sempre que alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. pelo menos de uma palavra penso ser digno. não necessitas de grandes formalidades. esperava que me dissesses qual o caminho a seguir. ou então. que mandasses um mensageiro. um anjo. um qualquer pacóvio daqueles que nunca pecou nem por pensamentos. actos ou omissões. um daqueles que nunca teve coragem para te questionar e sempre batia com a mão no peito quando se tratava de pronunciar o teu nome – ainda tens a oportunidade. para me irritares. de me mandares uma beata que. arrependida. se ajoelha no confessionário e pede perdão. por todos os nomes que te chamou na vida que lhe destinaste. ao lado de um estupor que se embebeda e a enche de porrada para destilar os fígados – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. às vezes até fico na dúvida se sabes que existo – um homem sem honra é capaz dos maiores disparates. e é nesse momento que sobe à montanha mais alta para te dizer que necessita de ti – já no seu topo. com as estrelas à distância de uma mão estendida. deixa cair o corpo no baloiço das incertezas – sentado no penhasco. lembra todas as vidas que ainda tem dentro de si. não chora. deixa apenas cair umas pequenas lágrimas na palma da mão. amarra-as com toda a força e olha para o céu para ver se te vê – o chão fica ali tão perto. e as luzes do mundo são ainda pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem o meu nome. toda a fé está tomada por gente sem rosto – sei que esta fé ainda existe pelos sorrisos que deixei para trás. um atrás de outro. até já não ter um único para me poder lembrar de como é sorrir. mesmo para ti – um dia. disseram-me que eras também meu pai. e a um pai há sempre a obrigação de se ter um sorriso. mas eu já não sei como se fazem sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. e percebo que num único passo todas as interrogações voarão para a eternidade – estou triste. sinto cada vez as estrelas mais perto – não te exigiria mais do que apenas um bilhete com uma palavra tua assinada pelo teu punho. para então poder acreditar que ainda és tu que mandas neste mundo. neste medo que existe dentro dos meus olhos – podes não crer mas ainda quero acreditar que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – não quero admitir que tens os olhos vendados. nem muito menos uma espada amarrada à mão que um dia mandou fazer milagres – sempre ouvi dizer que não suportas a violência. ainda me lembro da minha catequista me contar umas quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de orgulho por pertencer à tua família – ainda me lembro da primeira vez que me ensinou o pai nosso. disse-me que era uma forma especial de comunicar contigo. de te fazer feliz. de me ouvires – passei noites a dizer-te este pai nosso. repetia-o. repetia-o. repetia-o. pensava sempre que um dia ias ficar tão feliz que me falarias – acabava por cair de sono. com os olhos espetados num retrato onde na parede o teu filho subia ao reino dos céus acompanhado por uma dezena de anjos – o que mais me impressionava eram os raios de luz que lhes serviam de guia para se sentar à tua direita. eram tão brilhantes. sempre que acordava olhava para o céu na busca de uma luz que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes deixava-me apenas com os ossos do corpo na mão. e as dúvidas já quase não tinham corpo para o continuar a ser – nunca entendi muito bem essa treta de dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora. muitas vezes amargurada pela ingratidão de quem jamais iria aprender as letras com aquelas formas arredondadas. recorria severamente à sua palma da mão para me trazer à razão de um abecedário universal que eu não compreendia – nunca soube ao certo se era por não saber juntar as letras. ou se era por ser o único que usava suspensórios por cima da camisa branca bem ajeitada com o botão apertado junto ao pescoço. de cabelo bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar todos os invernos. mesmo os que nasciam no quadro preto de uma escola que se dizia primária – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha de um anjo da guarda. benzida no mesmo dia que me entregaram a ti numa pia de pedra rodeada de santos e promessas de protecção – nunca ganhei coragem para lhe oferecer a outra face. bem que queria ser como tu. mas não conseguia. nem era pela dor. era pelo orgulho. queria ser diferente – nunca entendi porque me batia e  nem compreendia porque é que tu na parede. com os olhos pregados em mim. nada fazias – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz. mas. meu deus. então os milagres que sempre me disseram que fazias. onde paravam? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me aliviar das diferenças que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho. a escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a sua vida já o era – apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes reservaste. sorriam. todos menos eu. e eu que tanto queria. tanto mesmo – o único caderno de linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu nome. o “d”. saía do carreiro. nunca percebi o porquê do teu nome sair sempre fora das minhas margens – a vara. reservada para os dias que a professora descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma varada e a seguinte. eu sempre olhava para ti – naquela parede descoberta de qualquer adorno. apenas existias tu. queria tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre. daqueles que me tinham feito acreditar em ti. parasses aquela vara maldita. aquele desespero. aquele nunca. que parecia nunca acabar – mas não. tu nada fazias. continuavas na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer. ignoravas-me. fazias de conta que nada existia. a mim e a todos os outros que como eu te imploravam para os acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa triste e desanimado por não encontrar crianças com cadernos com linhas na escola. nunca me apareceste a dizer uma palavra. nunca sequer vi uma pomba branca – nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que me dissesses que o meu caminho iria ser um inferno. eu aceitaria. ainda acreditava naquelas histórias do teu filho. nos milagres de fazer ver os cegos. e aquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou de lázaro. que voltou das trevas para te poder abraçar e acreditar que tu eras afinal a vida certa – sabes! nesses dias em que me contavam essas histórias eu chorava. de alegria. por todos aqueles que te puderam apertar a mão e dizer: - obrigado por me dares um caminho – apesar de tudo eu sempre te perdoei por nunca me teres aparecido naqueles momentos difíceis. pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisa mais de ti do que eu –



13/11/2010

o tempo que o tempo tem









o dia alterou
o relógio
sempre fugiu
até o big ban
dos ponteiros
só os segundos
correm

00.01 pm

o escritor
construtor de ilusões
não diz:
hoje é sempre ontem

palavras
ideias
emoções
lágrimas
crenças
pessoas
histórias
fotos
guerras
ambições
loucuras
falsidades
namoradas
vicissitudes
ejaculações
rendições
tudo.
tudo. sempre tudo

de ontem
é o tudo
antes dos ponteiros
a cadência do tempo

pensar reclama
saber hoje:
estou longe no tempo
sou de ontem

do papel
o cheiro de uma floresta
do tinteiro
o alquimista
ontem
a máquina do sol nascente
mãos grossas piores
ainda ontem
foram
pés com barbatanas

hoje só é
leitura
curta pelo
tempo
no vosso relógio
serei sempre
imaginação

momento

00.17pm

o relógio
faz
tic-tac

momento
no não silêncio
curto este bater
tic-tac
é de hoje



in. visões do corpo



10/11/2010

estes lados. nossos









hoje tenho entre os dedos um pedaço de terra. trouxe-a de um jazigo para amaciar esta saudade – desde que partiste sinto-me tão perdido. tinha ainda coisas encaixotadas do passado para te dizer. eram importantes. digo eu – não devias ter apanhado esse autocarro. bem sabes que o caminho por aí é demorado. estreito. essa estrada é tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escura. – tenho medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã às cores. fazia-te bem mais novo. era lã pura. combinava contigo – um dia vesti-o. irritei-me. não me assentava nos ombros. sempre foste mais aprumado - tinhas as costas sempre tão direitas – as minhas. bem. as minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço a acreditar que é possível viver nos sonhos – ontem consegui falar-te com os lábios. sempre depois daquele beijo obrigatório na face. quente. senti eu – deixaste-me ficar um trago açucarado na boca. mel – calei-me. guardei-o no silêncio criado pelos meus olhos. nosso – apeteceu-me estender as mãos. tocar-te – tive medo de acordar. guardei a mão na algibeira. onde tenho cravada a linha da vida que um dia foi cortada pela tua ausência – nesta linha que continua a crescer aos ésses . criei uma árvore em terra fértil quando ainda não via todas as folhas. algumas viviam no topo das árvores. sem luz – era pequeno demais e tu viravas-me sempre para nascente – nos dias em que me pegavas ao colo. as árvores eram enormes – a vida ainda acontecia nos teus braços. fortes. tão fortes que sempre sorria quando me erguias em direcção ao céu – ainda nem imaginava que havia um céu capaz de receber todos aqueles que gostamos – apenas sabia de um jardim infantil criado para mim – havia sempre tanta gente a dizer coisas neste jardim. faziam um quase barulho. talvez um quase música – tu. falavas como se as palavras ainda não tivessem sido inventadas – nunca paravas – e nos teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas – neste mundo. havia um baloiço que nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais tarde haveria de ser também meu – regressavas sempre. por mais que o tempo matasse o próprio tempo. sempre com um sorriso. sempre o soube – parecia tudo tão simples. bem sei que tu também eras simples – este baloiço andava para lá e para cá devagar. havia ali algo que eu ainda não percebia. sabia apenas que voava sempre de norte para sul – tu bem que me apontavas o caminho. mas era demasiado pequeno para entender que até o sol um dia pode morrer – mas não desistias. os teus gestos eram sempre palavras novas na certeza de ver um homem feliz – na tua presença o baloiço nunca parava: livre. procurava sempre novas palavras. novos ouvidos. novos olhares. novos gestos. esquecias sempre o teu caminho. cortavas o futuro. alagavas todos os longes. ficava apenas um ali. um acolá – as argolas de ferro que te seguravam à vida já rangiam – nesses dias. ouvia-se o vento. mal eu sabia que este ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas ainda amparado no sinal da cruz com que te deitavas – tu ainda tinhas um deus. ele também era meu. estamos amuados – para te ser franco dele nada sei – no ar as folhas chamavam o outono – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se e as cordas começaram a chorar – nesse dia que viajaste fiquei tão só – tínhamos ainda tanta coisa para dizer – mais tarde um homem de chapéu preto chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma chave com um fita preta sem nenhuma palavra tua – tu não eras homem para partir sem palavras. não eras – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou fora. não aborreças a tua mãe – alguém te enganou. digo eu –fomos enganados – tiraram-te a memória para puderes partir sem boca – a dor comeu o silêncio – sei que um dia vais voltar. ou então esperarás por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho que usavas na carteira. nunca mais o vi. acredito que volte contigo – sei que um dia me vais pedir para falar da vida que guardo todos os dias – enterro tudo num buraco. onde criei a árvore – a pá é a tua voz.



07/11/2010

cruz ansata









não tenho palavras para segurar a cabeça que comprei naquela loja de ferro velho. pende para o lado. o lado onde não há coração. onde morrem todos os verbos que amparam a injustiça – os braços. outrora selvagens e vigorosos. caíram desesperados – apareceu a ferrugem. uma que conheci em tempos. corrosiva. matava todos os nomes – podem ruir a todo o momento. talvez tivessem crescido demais. e as línguas cuspissem encantos sem nada saber de braços com mãos dependuradas – agora não sei se desespere ou se espere – mesmo com toda a indiferença que sempre guardei – por detrás do olhar temo pelas minhas mãos – habituei-me a este corpo. despido. descalço. trago apenas à cinta uma sacola de couro e de letras – fazem uma vida – sorrisos poucos. lágrimas muitas – dos olhos redondos brilhantes já pouco resta. soltam-se agora pedaços de raiva – nasceram talvez na menina dos olhos. sempre tão sensível – sempre acreditou em tudo que via. ingénua – voltou tudo novamente. o tempo dentro de mim afinal é uma mentira – pensava que já me tinha esquecido dos amigos e agora vieram estes. os novos. os arrumados. os eleitos sem direitos. sem teto procuram hipérboles como o diabo procura o pecado. talvez sejam parentes – sorte a minha. uma vida inteira a segurar o olhar dos que sempre acharam que não havia palavras dentro de mim – não me posso calar novamente – estas mãos também escrevem. não matam nenhuma palavra – bem sei que não sou fidalgo. e ainda não tenho aquele anel de ouro feito de hematite negra – e a cor negra que trago no corpo é de arranjar comida para fazer trabalhar as mãos – mas são sempre estas que escrevem. apenas estas. assim. cheias de marcas. de veias. de cicatrizes fechadas de dor – são as minhas mãos – estou revoltado. porque me roubaste o nome que escrevia apenas para dizer as minhas coisas. não a ti. não ao teu mundo. nem sequer àqueles que gostam deste sinal que tenho na face – escrevo para mim. para ser feliz como nunca fui – vê o que fizeste destas mãos. umas mãos ásperas. só hoje? talvez sim. talvez para sempre – também se pode escrever ásperas no meio de um substantivo comum – malditos sejam – a escrita não é só um dom. é dor. é gozo. é ejaculação. é orgasmo. é vida. é esperança – a escrita é essencialmente isto de ser o que sou quando escrevo. e quando escrevo sou isto – repito. sou isto.



04/11/2010

mau tempo









tenho as palavras alteradas. talvez por isso as gaivotas continuem em terra – até aquela gaivota malhada que sempre se fazia ao vento norte. com asas a rasgar a espuma que me caía do canto da boca me virou as costas – talvez lhe fale um dia destes. talvez lhe diga que o mar é infinito aos meus olhos. ou talvez lhe vire as costas – verei o que fazer com as palavras. talvez guardá-las para sempre do sal que as corrói – mas do mar nunca tirarei os olhos. foram baptizados por um deus que não sabia escrever. sabia apenas equilibrar – nasceram as marés





23/10/2010

alegoria da mente









acordei
trago aberto nos olhos um sonho
uma flor

colheste-a
[para me matar]

amor?

bem sei
é um sonho



in. visões do corpo



10/10/2010

palavras desamparadas









acordei sobressaltado – puxei-me para cima dos quadris e sentei-me no topo da cama. virei-me para sul por causa do mau olhado. o norte traz sempre ventos frios e húmidos – há uma janela quase quadrada que me apaga a solidão. é lá que ponho os olhos a sossegar – lá fora. nos socalcos do olhar. mesmo ao pé do beiral. já há gente a correr atrás da vida – pego num dente de alho e penduro-o ao pescoço. sinto que posso precisar da proteção contra uns demónios conhecidos. não tenho medo das suas crueldades. mas aborrecem-me com merdas que muitas vezes não entendo – adivinho que há dentro de mim umas cogitações que querem ganhar forma num espaço que está entre o que estou a pensar e o que estou a ver – estas cogitações. são coisas que ondulam nesta cabeça meia louca. meia torta. meia inclinada para o lado da loucura – são ideias que mais parecem barcos à deriva no meio do oceano. subindo e descendo a ondulação sempre ao correr de um vento que ninguém sabe onde nasceu – neste mar sem fim. há peixes que se alimentam deste emaranhado de ideias. nadam como se tudo em que penso fossem águas calmas. águas tranquilas. águas sem predadores ou mesmo sem leões marinhos – nem sei se são estúpidos ou arrogantes. talvez as duas coisas – habituaram-se a uns refúgios seguros que tenho por detrás dos olhos – sempre que os fecho. nada mais é capaz de perigar dentro deste oceano de pensamentos loucos. ainda desconhecidos – há profundezas que desconheço completamente – é nestas alturas que sinto a morte nos dentes. fico com medo. vejo tanta coisa esquisita. às vezes até há nomes que chamam por mim. ruídos que já me foram familiares – um dia. até ouvi a campainha da minha escola. aquela que me fazia sair a correr à procura da vida que imaginava cheia de coisas belas – nestas memórias. meias loucas. permanece a imagem de um sargaceiro vestido de fato amarelo. trauteia umas quantas canções de sereias que já morreram – eram do tempo de ulisses. meias mulheres meias feiticeiras. das profundezas dos mares. faziam sorrir homens destemidos. mesmo aqueles que nunca foram embalados enquanto amamentados por peitos secos de amor – coitado! esqueceu-se que está com água até à cintura e a maré continua a subir – e as algas que em tempos eram abundantes são agora meia dúzia de ideias desprendidas de um cérebro em decomposição – talvez seja melhor içar a bandeira vermelha. talvez assim volte a subir às dunas de areia onde costuma descansar o corpo coberto de sal – também ele quando fecha os olhos consegue ver as gaivotas a bicar as incongruências da imaginação – um dia morrem os dois. e nem as ideias com guelras sobreviverão. morrerão sentadas no areal da praia a chorar a morte do corpo.



07/10/2010

quadro negro










passei pé ante pé
o giz
no quadro negro
tremeu

sabe
sabe coisas de mim
coisas
coisas sem interesse
normais
anormais para os que passam

mas os cegos
[alguém se lembrou deles?]
esses
os cegos sem olhos
lêem com as mãos

ladrões de palavras
ainda se fossem só de palavras

mas o giz
o giz
esse nunca mais o vejo



03/10/2010

outubro – deixa-me rir









não sei se estou triste
estou
por agora aqui

tenho uma parte de mim numa mão
os olhos na chuva
os pés na lua

lá longe. amália
trauteia a saudade
é domingo. é outubro


in. visões do corpo



29/09/2010

deceções e conceções ao sujeito poético









tenho um punhal guardado desde o tempo em que as pessoas lutavam por coisas de nada – abri a gaveta escondida por detrás dos meus fígados. mesmo ao lado da moela que tritura tudo aquilo que me fazem – voltei ao passado. tempos em que o coração vivia aos saltos na boca – este músculo. retorce-se sempre que o paladar altera o tamanho das papilas gustativas. estas. incham como se tivessem sido mordidas por abelhas assassinas e rebentam em total excentricidade de linguagem – abre-se a porta ao palavrão. ao calão. às putas. aos caralhos. aos fodasses e por último até aparece uma puta que pariu esta merda toda – que seria de mim se voltasse a usar este punhal? – esta herança da luta contra as injustiças. esta coisa que cresceu com um tempo que não foi só meu e faz de mim tudo o que sou hoje – imaginei-me a tentar matar um poema. um poema pequeno. muito pequeno. quase um haikai. sem brilho. sem rimas. sem musicalidade. envolto em total mistério. sem família. sem casa. como aqueles sem abrigo. sujos com quanta merda o mundo dos limpos faz – fizeram a sua casa ao ar. sem o azul do céu. conservam apenas a noite para poderem sonhar. reconfortam-se num banco de talas geometricamente perfeito. vermelho para realçar os farrapos esburacados pelas traças da comichão e falam em silêncio para uma cidade de pedra – nunca estes corpos escutaram um eco do que disseram em agonia. em desespero. em raiva por não perceber os buracos numa roupa que nunca foi nova no seu corpo – apenas um grilo teimoso continua a cantar. já não canta por ele. canta por todos os bancos ocupados por corpos que vivem em silêncio – canta. canta até o romper do sol. canta até ficar sem voz ou sem esperança – em tempos. num destes bancos geométricos onde um corpo esburacado teima em viver. nasceu uma flor de esperança aos seus pés – crescera-lha entre os dedos ainda gretados pelas últimas noites de orvalho – era verão e estava sentado defronte para o sol. sabe que necessitará daquele calor para os dias frios que se avizinham. em silêncio. olhava para um futuro quase terminável e tão gélido pela solidão de quem já não sabe pedir socorro – um dia. acordou com uma voz de criança. pensou que era um sonho. mas a flor tinha partido com toda a esperança. todas as letras que um dia sonhara para fazer um ramo de papoilas amarelas – tudo tinha desaparecido. restava-lhe apenas o banco vermelho com as talas geometricamente colocadas de sul para norte. era assim que se deitava. tinha os olhos acomodados no horizonte – desisti de matar poemas. nunca terminaria com a poesia. por muitos que matasse. haveria sempre mais a nascer nas mãos de quem não sabe o que são odes poéticas – é preciso mais. muito mais para acalmar os meus desassossegos. tenho que fazer mais. muito mais – pensei então em matar um poeta. um daqueles que pensa que escreve. que faz rimas. faz amuletos. faz elogios. faz sonetos. faz prosas. faz troça. faz asneiras. até faz com que a pouca arte que me cai das mãos chore de raiva por não lhe poder dizer que a vida tem palavras. que nunca perceberá a verdadeira importância de alguns vocábulos juntos – esta coisa de trazer tanta coisa de um passado que já é distante. sem nunca ter parado para descansar. sem nunca ter aliviado a carga a olhar para uma flor que fosse. mesmo que ainda não tivesse desabrochado. mesmo que a primavera estivesse ainda no cair da folha – podia ao menos ter chorado. quando choro nunca estou só. sinto a face a mudar as formas. os músculos gemem em silêncio. só dentro da carne é visível a metamorfose da dor em água – por fora. nascem sulcos arados pela vontade de ter uma nova oportunidade para sentir o alívio superar a dor. abrem-se novos caminhos pelo meio da tristeza. deixa-se passar a vida desfeita em água. em cascata. passa pelos lábios. ao de leve fico com o sabor das profundezas da alma e depois. sem os olhos poderem guardar a transparência da vida liquidificada. parte para a imensidão do pó. sem sequer um adeus – fico apenas com um gelo na face. é o vento a secar a dor por detrás da carne – caio em mim. sei agora que estes poetas loucos nunca andam só. amparam-se uns aos outros nos desgostos da vida. acasalam as pernas de pau com que riscam o chão por onde passa todo o sonhador. todo o sem abrigo. todo o homem nu com todas as palavras capazes de florir o mundo – no chão. sem saberem. desenham a desilusão. a amargura. o fel de todas as angústias da vida. apenas da sua vida que sem saberem nada é para quem faz da vida uma passagem – olhei para o punhal. olhei com os olhos esbugalhados e ainda manchados de dor. olhei. olhei e guardei-o – já não sou homem para gastar palavras feitas de lâminas – fechei-o à chave. com duas voltas e um cordão de sisal fechado a lacre – o selo são as minhas impressões digitais – coisas que a escrita de alguns poetas nunca terá – não compensa matar o que já morreu – estes poetas já morreram para quase tudo. agora escrevem para matar o tempo que os há de comer.



27/09/2010

torre do tombo









não consigo ver o teu branco por mais que o tente imaginar. nem o meu! – um que tinha nas palavras que te oferecia para seres meu amigo. mesmo aqueles malmequeres de pétalas brancas. que tantas vezes comprei para embelezar os sírios que acendia para alumiar a memória dos que sempre me quiseram bem. perderam a cor. as pétalas caíram para nunca mais formarem uma flor – bem tento deitar-te a mão sempre que escreves – ainda sou daqueles que acredito que a cor dos cabelos não coincide com os teus olhos. mas das tuas mãos esperava muito mais – mesmo que fosses um cometa. daqueles que apenas passam nas noites de luar a largar vapor a alta velocidade – podias sempre dizer: que chatice! afinal. este sou eu. assim com esta mistura de tons que muitas vezes não são cor nenhuma. são tonalidades mate. sem brilho. sem luz . sem racionalidade – mas há dias que sou tanta coisa. melhor. sou tudo. sou as palavras justas. aquelas que se vestem de arte para partilhar o tempo que todos os dias consumo – cada vez temos menos tempo para ser aquilo que queríamos ser – fiquemos com aquele que já alcançamos.






24/09/2010

f.a.m.a









neste passeio da fama
descobri a arte da lama

se rima é apenas
porque tenho penas

não de gaivota
mas de idiota

por juntar palavras
que apenas foram cagadas

por gente em solidão
assim como:
putrefacção



22/09/2010

dezembro é já aí





Van Gogh - Homem sem esperança





amarrei na armadura que guardo por detrás dos dentes. tirei os olhos fora. despenteei o cabelo e berrei. berrei tão alto que todo o meu interior abalou – já não sou o mesmo homem desde o dia em que vi partir a ambição de ser um pedaço de ferro temperado. esta chuva fria que sempre faz no mês de setembro amolece-me – merda de berro. silencioso para todos os ouvidos que carrego comigo – berrei para dentro. os olhos saíram para um mundo que eu não gosto. cavalgaram por entre umas flores tingidas de verde – em tempos. pelas manhãs. eram uma tela branca em busca de um farol que me alumiasse o dia. o negro nascia pelo acordar da noite. salpicando o luar dos sonhos adiados – mandei as mãos trémulas buscá-los. sei que apesar de tudo. são capazes de os convencer a mergulhar novamente nestas órbitas feitas de osso de dinossauro – encontrei-os numa poça de suor de um cavalo-marinho que andava a lavrar um campo de papoilas. tinha um assobio na boca para chamar a atenção de todas as aves que por ali passavam – havia um castanheiro plantado ao alto por um moleiro que tinha um periquito para levar o pão que as mós de uma vida de burro tinham moído – era a imagem perfeita do quadro de van gogh. não há esperança – este homem também é feito de falta de esperança. apenas o coração ainda bate em dias mudos. bate devagar. afinal a vida corre depressa demais – no topo da árvore. do lado direito. vivem duas gaivotas – do lado esquerdo um melro de bico amarelo – ao centro um abutre chegado do corno de áfrica. estava de férias. trazia ainda como merenda um pedaço de uma gazela que já se tinha cansado de correr – o melro. servia apenas para assustar um espantalho que vivia encostado a uma espiga vermelha. desde o dia que tentaram semear esperança entre giestas – o abutre. é o único que sabe sempre onde a carne vai cair sem vida. mantém a ordem na desordem – paciente. vê nas nuvens o destino dos que caminham sem raciocínio. vive da morte. de qualquer morte. até da morte da esperança – a gaivota de asas redondas. gastas pela erosão do vento norte. já não voa. observa enquanto lê um livro do jorge reis-sá. um que fala da morte em dezembro – a outra gaivota. sem asas. louca por querer alcançar de uma só vez o que estava para lá da linha que um dia tinha imaginado. atirou-se abaixo do castanheiro que já não dava fruto há mais de um século – pobre gaivota. caiu em cima da única formiga que todos os dias gritava a dizer que o destino dela tinha que ser cumprido – por muito curto que o voo fosse. a morte tinha que ser engolida pelo único ar que ainda lhe restava nos pulmões – a queda é apenas uma consequência de um dia ter imaginado que nasceu com asas – o castanheiro cresceu demais – talvez o corte pela metade. dezembro é já aí.



17/09/2010

ó meu deus









ainda há quem acredite que eu tenho um nome – ó meu deus. para que raio querem eles saber o meu nome se moro dentro de uma caixa onde apenas guardo o nada – o nada é a minha vida – é neste nada que encontro quase sempre uma palavra para salvar – palavras antigas. tristes. sufocadas por um tempo sem ponteiros – salvam-se nas leituras. onde apenas o vosso olhar sabe atormentar a procura da redenção – é o leitor. também este sem nome – o nada. é uma coisa que eu encontrei para esboçar todas as coisas belas que um dia descobri que me caíram das mãos – ó meu deus. agora que pensava que jamais o nada teria corpo. mãos. pernas a correr à frente dos olhos. descubro que o nada afinal não pode ser nada – ó meu deus. logo agora que estava quase a quebrar o aloquete daquela caixa de ferro que um dia guardou uma criança morta de doçura – ó meu deus. e agora que faço à chave? talvez a meta dentro de um envelope aberto. fechada. continuará a caixa de ferro gravada com as iniciais s.r. – em baixo. as palavras trabalhadas a cinzel de prata: morrerá sem saber o dia em que nasceu – pensava que estava mesmo para nascer – abrupto. caía de entre pernas – estatelado num chão feito de memórias dos dias que vivi sem nada. procurava a antítese – numa lousa negra pregada a uma parede que dividia o nada do todo. podia ler eugénio de andrade:

Escrevo

Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal ou do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.

ó meu deus. e agora. quando as mãos forem entaladas pelo olhar dos que me julgam – serás tu mais uma vez o culpado. só podes ser tu. és o único que me podes perdoar da injustiças de ter a camisa ainda negra – ó meu deus. quero tanto escrever. esqueci até de rezar.


Anjo da guarda
Minha companhia
Guardai a minha alma
De noite e de dia






16/09/2010

sem rosto










tentei falar com uma gaivota. andava a voar. parecia-me feliz. mesmo assim disse-lhe que gostava de lhe explicar que também eu descanso no seu mar – respondeu-me não me respondendo. continuou a voar. suponho que é a sua linguagem para me dizer que também é mar – continuou a voar em círculos – eu também falo em círculos. podia falar em linha recta. mas quem me ouviria? apenas as gaivotas. aquelas que vivem do outro lado do oceano – essas como estas voam nos meus olhos. gostam do mar como eu. voam para comunicarem. escrevem com as asas novos caminhos – também eu só sei comunicar assim. voando. sozinho. sem nome. sem rosto e sem ontem. só assim encontro tempo para dizer as coisas que nunca foram ditas – olho para as mãos. e choro. por ver tanta palavra nua resistir a um tempo que já é tempo demais para mim – quero escrever. dizer-vos o que sou. sem que nos vossos olhos posso ver a minha face. não quero ombros. não quero descansar em nenhuma palavra construída para me abrigar. quero voar. escrever. escrever. escrever. quero voar com as minhas gaivotas e dizer-vos que sampaio. sou eu. este que escreve a loucura de nunca saber dizer nada com voz – sampaio. sou eu. assim. sem formas. sem roupa. sem caneta na mão – ainda tenho tanto para vos contar. necessito de voar livre – preso estou eu desde o dia que alguém me perguntou o nome. não sei o que respondi. talvez… que era eu.



13/09/2010

eco









deito os olhos ao chão. sempre o faço quando tenho vergonha das imagens que o meu passado me devolve – o eco – este eco não termina nunca. há sempre um ontem a nascer hoje – enlouqueço. amarro o corpo a uma tábua de espinhos. preciso de me distrair com a dor. cerro os olhos. os braços já não chegam aos ouvidos. e da boca resta apenas a gengiva magoada de tanto mastigar as palavras que regurgitam de um tempo que não viveram – pouco resta de mim nestes dias de ecos. fui perdendo bocados aos poucos. restam-me dois cotos presos a ombros moribundos. teimam em cair para a frente – ainda me lembro daqueles braços. chegavam ao chão. eram grandes. cheguei a plantar jardins. regava-os com o suor que me caía da esperança – um dia uma papoila apanhou-me um desabafo. puxou-me. abraçou-me forte. choramos juntos. ficamos amigos – nunca lhe falei. encostava-me ao caule a contar os dias que ainda me faltavam para morrer – ficou amarela – morreu uma semana depois – ensinou-me a morte – enterrei-a virada para sul. onde o sol vive sem humilhações e as gaivotas brilham em ventos contra-alísios – ainda hoje visito a sua casa eterna. descanso. é aqui que ainda dou conta de mim. falo-me – agora conto-lhe os dias que vivi desde o dia em que a vi partir. talvez um dia saiba que ainda há esperança para mim – talvez um dia eu lhe possa contar uma história de: ERA UMA VEZ – era uma vez uma vida. que ainda hoje vive à procura da vida.



07/09/2010

algumas ainda não foram inventadas









sentei-me a ouvir o mar num bocado de terra virgem de crueldade. não que fosse um dia. onde os meus ouvidos fossem capazes de dar grandes ouvidos ao silêncio que o mar docemente soletra com o movimento das marés – nunca percebi este vai e vem da água. nunca sei o que vem para ficar. nunca sei o que a água traz ou o que vem buscar. sei apenas que este movimento é igual ao que sinto com as ideias. estas. também vêm e vão. umas vezes frias. outras a ferver. algumas carregam lágrimas. outras esperança. outras ainda conseguem trazer palavras inchadas por se saberem adoptadas – mas o que é do mar sempre será reclamado pelo mar. fico sempre sem saber o que fica para o amanhã – no dia seguinte. quando já não há marés a baloiçar no meu olhar. tenho um punhado de ideias idiotas – da última vez que a água me tocou nos pés. deixou-me ficar uma medusa venenosa – eram palavras que não entendia e nos seus tentáculos uma estrela apagada – tinha caído do céu numa noite de luar – cravado no seu coração. o eixo imaginário que segura a terra a uma rotação que não regula coisa nenhuma – pobre estrela – deitei-me. deixei a maré subir. cobriu-me de palavras. quase todas loucas. algumas ainda não foram inventadas – só eu as compreendo – como eu quero que tu me compreendas.



02/09/2010

putas de palavras









hoje. no resto do sol que ainda falta consumir vou descalçar um sapato. apenas um sapato – caminharei por um desejo que tenho em mente – mancarei – para nunca mais esquecer esta vontade de ter o que nunca vou ter – mas a puta da vida saberá que até a mancar saberei caminhar – sou doido varrido – este que escreve é doido. mas escreve – escreve uma merda qualquer. loucura. dizem as palavras que moribundas caem no papel – algumas tombam mortas de tanto gemerem dentro de mim – não me peçam piedade. não me peçam uma nova oportunidade – vocês. as nobres. as que dizem sempre tudo. já subiram para todos os papéis que fui capaz de escrever – até aquele muro. o da minha vergonha. tem palavras que nunca me quiseram receber – putas. não vos perdoarei – se para mais nada servem. morrereis. não às minhas mãos. sereis espetadas pelo crayon deste lápis que acabei de afiar – no fim. restará apenas a aguça que fez da minha ferramenta a lança que vos trespassou – eu. louco sem saber porque. meterei a mão. afiando-a cada vez mais – ficará tão fina que quebrará com as primeiras geadas de inverno.