.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/12/2016

mande este ano para o covil de satanás – feliz 2017




foto - sampaio rego





e este raio do 2016 está finalmente em estado terminal – sou contra a eutanásia caso contrário à muito tempo que já lhe tinha deitado as mãos ao pescoço – para ser verdadeiro vos digo que este ano não me deixa grandes recordações. foi péssimo – resta-me a saúde de ferro que não se cansa de resistir aos anos – mas o caricato é que tenho a certeza de que o guardarei em memória até ao fim dos meus dias. tortura – só guardamos o que nos marca – positivamente. os que são mesmo especiais por motivos que muitas vezes a razão desconhece – negativamente. os que nos magoaram ou tiveram a crueldade de alterar o que aquilatávamos como certo e afinal era apenas fantasia – recordo com saudade uma passagem de ano passada na traseira de uma  toyota hiace com mais dois amigos e o brinde feito com champanhe do mais rasco. juramos felicidade para sempre – a juventude é inocente – recordo-me também de um fim de ano num hotel com a minha família. tinha eu os meus dezasseis anos – disse mal da minha vida e jurei que nunca mais entrava num ano novo com tanta etiqueta marica – lembro-me de outro em que passei o ano em viagem de automóvel e comemorei duas vezes o réveillon . em espanha o ano novo chega sempre mais tarde uma hora – troquei votos de felicidade com a minha maria joão – felizes com tão pouco – ficou também em  memória a primeira passagem de ano sem o meu pai. foi muito difícil – a saudade não me larga nestes dias. um pai é para sempre – e assim foi passando ano após ano até chegar a este triste e energúmeno ano de 2016 – estou-lhe com um raiva que já não o posso ver mais – acreditem. não vou festejar a chegado do novo ano porque acredito que pouco ou nada vai mudar – vou festejar com muito regozijo a partida do 2016 – se realmente há um deus nos confins do céu que não venha com desculpas de que se tem que perdoar o que é imperdoável – que se deixe de tretas e me mande este ano para o covil de satanás e o deixe a afoguear nas labaredas do inferno para sempre – feliz ano novo para todos os meus amigos e familiares – obrigado por estarem comigo


23/12/2016

23 de dezembro de 2016





foto - sampaio rego




parabéns meu amor – e ás doze badaladas entramos no teu dia de taça na mão – primeiro foi o silêncio. depois estendemos os olhos um ao outro. e por fim. tocamo-nos num beijo branco – ali ficamos num abraço que não queríamos terminar – estávamos felizes. por instantes o que sobrava do mundo deixou de existir – e o abraço cada vez mais apertado – erguemos as taças e aceitamos o destino com um sorriso que também é paz – eu disse que te amava e tu disseste-me que me amavas ainda mais e juras-te eternidade ao nosso amor prometendo continuar a enlaçar as mãos até que deus nos queira sorrir – e ali ficamos num silêncio coberto de lágrimas que não nos magoou por ser só nosso – há tanto de nós que não pode ser partilhado – és tão bonita meu deus. e eu sem saber onde deitar o teu corpo nestes braços cada vez mais entrevados  – perdoa-me meu amor por tudo em que falhei – eu deveria saber escrever muitas mais palavras. mas não sei – não sei tanta coisa – mas sei que te amo até ao infinito dos meus dias  


16/12/2016

15/12/2016

vou. por ali vou





pintura híper realista - fábio magalhães




vou – lá vou eu a deambular pelos caminhos da noite. sozinho. como sempre. só assim sou capaz de me encontrar com a realidade crua da escuridão silenciosa – e lá vou eu passo a passo para dentro da justeza das memórias  – caminhar no passado é quase sempre uma crueldade – vou. em passo certo vou. vou pela noite adentro. sem receio. sem cuidado. sem defesa – na noite só a verdade emerge. os fantasmas deixam de ser fantasmas. a ilusão esmorece com vergonha e os sonhos. finalmente. adormecem de cansaço – também eles necessitam de sossegar. não é fácil viver atrás de devaneios  – vou. vou tão louco hoje como ontem – vou. vou tal e qual como sou. vou à procura de outras vidas que são estrelas no céu – vou. vou saudade. vou dentro de mim. vou de mãos nos bolsos. vou envelhecido. vou num assobio que se desvanece num tempo que já não mereço – vou. vou com o corpo como posso. vou contra um vento que me alimpa a face do que me sobra em pesar – vou. vou de rua em rua. e em cada esquina uma marca de que por ali passei sem nada saber do destino fadado – vou. vou porque preciso de ir – é urgente ir – só a verdade elimina o medo da morte


29/11/2016

realejeiro






foto -sampaio rego



hoje acordei com uma caixa de música na cabeça – depois de um forte esforço supra-matinal lembrei-me do realejo – a questão que se curvou sobre o meu ar ensonado do antes do pequeno-almoço é saber que nome se dá ao homem que toca o realejo – nada me ocorreu na memória colectiva. recorri com a destreza possível das manhãs à memória selectiva e o resultado foi o mesmo. mais um nada – depois de farto o estômago. cansado da longa travessia do vazio da noite. com um “petit dejeuner” leve. mediterrânico pobre. pão com manteiga magra e uma meia de leite directa. esta tirada numa nespresso do famoso actor george clooney. e uma almoçadeira “xpto” com os dizeres: “breakfast” – percebi o motivo porque se fala tanto na globalização. o estrangeirismo está por todo o lado. faltou-me o financial times ao lado da tosta. e aquele ar de “self-made man” que a todo o momento arranca para o mundo dos negócios amarrado a “long cashmere coat”. “paraguas” e “petite serviette en cuir noir” – não aguentei a pressão da ignorância e abalei em busca do conhecimento. tem que haver um nome para o homem que toca o realejo – parti das premissas filosóficas do geral para o particular: - se os homens dos relógios são relojoeiros. logo os homens dos realejos são realejeiros – não me suou muito bem! há nesta palavra um paladar avinagrado. aziumado. assim… tipo iogurte fora de prazo – percebi. talvez tardiamente. que um homem que toca uma caixa de música nunca poderia ser realejeiro. impossível. esta palavra não tem dignidade. estaleca. não é arrebatadora. ninguém ouve um realejeiro por muita arte que o homem da música tenha a dar à manivela. (isto pensava eu. verão que vou mudar de ideias) – apenas os nomes simples perduram na história. manel. maria. tia alzira. tio tone. arménio. quim. sr. silva ou então um com “pedigree” . com sangue azul. um nome que só de olhar absorva toda a história dos antepassados. estou por exemplo a lembrar-me dos pauliteiros de miranda. o exemplo não podia ser melhor. o nome diz logo que estes gajos são do tempo do viriato. e os paus são apenas um pormenor. esta região tocaria outra coisa qualquer. o seu DNA é daqueles que não engana. e a música apareceria nem que fosse a bater com calhaus em latas de salsichas – pensei então que o nome mais apropriado para o homem do realejo seria realejumúsico – se este homem faz música tem toda a lógica este nome – mas a questão é saber que tipo de música o homem do realejo toca e se isso poderá influenciar o nome da sua arte – imaginei um realejeiro a tocar jazz. bem. o nome sofria logo uma mudança substancial. para cativar os aficionados do jazz o melhor seria o realejeiro chamar-se ou “realjazemúsico”. isto é. se este tivesse importado a caixa de new orleans e a música produzida pela manivela permitisse imitar a trompete do louis amestrong – depressa compreendi. que este nome ligado ao jazz era bastante castrador para os realejeiros da música popular. os ditos pimbas. e que nunca ouviram jazz – ficariam ligados a uma música influenciada pela comunidade negra. coisa que a nossa terra não está preparada. por aqui o fado ainda é que dita as regras – mas ainda há os nórdicos. os homens de cabelo loiro e olhos azuis. desgostosos com a conotação do instrumento à cultura do cabelo encarapinhado e pele escura. é certo e sabido. que este gajos emproados não iriam gostar. e o mais certo é o aparecimento de um movimento anti-realejo – estou perante um caso daqueles que em linguagem popular se pode dizer de bicudo – vou ter que ter muito cuidado com as tendências musicais. não posso castrar a clave do sol. o sol quando nasce é para todos. logo todas as tendências musicais tem que se rever neste novo nome – não sou homem para desistir de nada. mas depois de várias pesquisas “científicas” on-line. enciclopédia luso-brasileira. dicionários de várias línguas incluindo o chinês. o marroquino. romeno e o dos PALOPs. e outros meios que dispunha para levar a cabo esta espinhosa tarefa. concluí que afinal o nome que a linguística portuguesa construiu para este fazedor de música “box” é afinal um nome bem simples: o homem do realejo! abriu-se uma brecha na história para mim. posso finalmente criar um nome de um fazedor de arte musical com manivela. uma arte milenar com um novo nome para o homem criador de sons perfeitamente ligados entre si. quer isto dizer. música – este novo nome terá a dignidade que há muito tempo é devida a estes homens da música – será um nome próprio. capaz de ser sindicalizado. e suficientemente aglutinador para levar em frente a sua primeira associação de classe. suficiente forte para defender os seus interesses e capaz de lhes devolver a dignidade que nunca tiveram – estou espantado comigo. acabei de fazer uma regressão histórica. voltei às lutas dos trabalhadores do século XIX em Inglaterra. à revolução das massas. dos direitos do operariado. do movimento sindical. da conquista do salário justo. das desigualdades. enfim. a luta do proletariado contra o grande patronato – estou estarrecido. pela primeira vez faço parte da história. o meu nome será a grândola vila morena dos realejeiros. sou a revolução de uma classe – a partir de hoje o homem do realejo será o realejeiro com toda a dignidade que merece – estará ao mesmo nível dos relojoeiros. sapateiros. pistoleiros. politiqueiros – sinto-me satisfeito. não por mim que sou um insatisfeito compulsivo. sinto-me satisfeito pelos realejeiros de todo o mundo. e sei que não são poucos – mais tarde ou mais cedo a humanidade perceberá a importância dos realejeiros no desenvolvimento da arte musical neste novo mundo global – mas importante mesmo. é este acordar louco de um louco como este que vos escreve com prazer





25/11/2016

pensa[mente]






foto - sampaio rego



continuo a pensar – penso como esta coisa de pensar pode ser importante a esta hora da noite – tenho uns amigos loucos que dizem sempre que pensam muito – imagino que deve ser por se acharem pensadores – toda a vida os ouvi murmurar. em voz que bem pode ser alta. que são exímios pensadores – nunca percebi muito bem o que eles pensavam – penso que talvez por isso possam ser mesmo muito inteligentes – bem. talvez possa acontecer de que eu sem saber. por ignorância pura. possa ser ainda mais louco de que eles

.

vou dormir

.

antes de dormir deixo a minha reflexão:

1 – pela manhã posso ser outra pessoa;

2 – posso não me lembrar de nada;

3 – ter outro entendimento sobre loucura;

4 – já não ter amigos;

5 – não querer saber do que pensam os amigos;

6 – um [etc.] etecetera fica sempre bem num texto

.

talvez possa existir um conflito de interesses. pessoais. digo eu – estamos ainda no plano de animais racionais.






16/11/2016

moliceiro






imagem google






parei banhado pelas memórias
todos temos um dia que parar
mas queria tanto acabar de pé
nesta imagem reflectida sou dor



ouço vozes da lida jornaleira
almas sedentas gritam fome
e na labuta das rudes enxadas
nasce pão de mãos escarpadas



com gritos de raiva me faço subir
contra a corrente sofro a sorrir
nas costas do rio molices levava
bravura das almas atadas ao mar



hoje. apagado do tempo presente
subo e desço em sonhos perdidos
e na crença milagrosa de stª joana
lembro a fé das margens em festa



agora. aguardo a bravura do tempo
e no levantar destas minhas mãos
deixarei este meu ser mergulhar
nesta água que me viu nascer





 

12/11/2016

olhos cavados




foto google



lenço que cobre a alma
de espantos
onde olhos cavados são
rebentos tristes
são cor negra
do que vê e do que lê.
é o mundo das mulheres
que se cobrem até aos pés
são sonhos escondidos
atrás de um qualquer
lugar. onde homens
barbudos e cruéis.
punem as flores
com palavras
de allah




11/11/2016

tempo




foto - sampaio rego



tenho pena que alguns cérebros dentro deste espaço global não percebam que escrever para mim é passar a minha verdade a papel – a raiva é pelo caminho que percorri. pelo tempo que me enganei. e pelo desgaste que dei ao corpo em tempos que nunca contaram para o meu tempo agora. de tempos em tempos. corre sempre em mim o tempo dos que já não tem tempo – toda a arte necessita de tempo. e o tempo nos dias deste tempo é um tempo em que ninguém tem tempo para dar tempo – mas a grande verdade é que todos aqueles que perderam mal o tempo. não se podem nunca queixar da falta de tempo. mas apenas da falta de juízo




03/11/2016

ai




foto - sampaio rego


ai se um dia toco uma nova vida a sul. ai – talvez aí me pudésseis ver como realmente sou. doido. a gargalhar do siso. e os braços. vigorosos. fortes. decididamente amputados pela energia afirmativa numa indolência merecida – estou cada vez mais certo desta necessidade de aniquilar o que me resta da memória a norte – ai como estou certo –  a sul. existe o prometimento para um novo corpo. quem sabe com um novo nome. com outra forma de escrever. mais pausada. ponderada. precisa. justa e determinada. sem reticências. sem interrogações e sem vírgula a separar o sujeito do predicado – ai como vou ser afortunado – a vida andada a norte é uma oração complexa. dolorosa e de uma injustiça não entendível. onde as palavras que me fazem pessoa se concentram apenas na sobrevivência – um dia mais. será sempre um dia a mais – ai como isto é verdade – talvez por isso ainda aqui estou – um dia a mais. será sempre um dia a mais – ai como um dia pode fazer toda a diferença  – assim. neste dia que é hoje. sou ainda uma criatura humana. mesmo quando “não sou nada”. e sei que “nunca serei nada”“não posso querer ser nada”  apenas com mais um dia – “à parte isso. tenho em mim todos os sonhos do mundo” – nenhuma gaivota sobrevive à falta de vento – ai não sobrevive não

“Não sou nada.
 Nunca serei nada.
 Não posso querer ser nada
 À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

 A tabacaria - Álvaro de Campos, 15-1-1928





30/10/2016

carpinteiro - o mestre das madeiras




aguarela - carl larsson





antónio lobo antunes diz que é um carpinteiro das palavras – é um feitiço esta frase. não me canso de a reler – carpinteiro traz-me recordações de um passado feliz e tranquilo – em catraio lembro-me do meu pai chamar o carpinteiro a nossa casa – na maior parte das vezes não era para coisa de monta. um empeno numa porta ou uma qualquer gaveta encalhada. coisas da humidade – a madeira em casas antigas inchava pelo inverno e regredia na volumetria pelo verão – a solução era tirar umas raspas para debelar os empenos – de vez em quando aparecia um ou outro trabalho mais carote. um bisegre para uma parede esquecida a necessitar de umas quantas tábuas trabalhadas com habilidade – não havia máquinas como nos dias de hoje. as mãos eram a tecnologia-ferramenta-arte – para atingir este estatuto de artesão o trabalho começava bem antes de acabar a quarta classe – para muitos destes mestres da madeira a escola só lhes ensinou a somar as medidas tiradas a olho – eram tempos em que os estudos não estavam ao alcance de todas as famílias – no fim da primária muitas crianças tinham que largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar às despesas da casa – não havia dinheiro fácil e o remédio era encontrar rapidamente uma profissão. começar a aprender desde cedo a arte escolhida. sempre pelo seu progenitor. que o acompanharia até ao fim dos seus dias – todos os mestres começaram o seu ofício pelas tarefas menos qualificadas – depois de muitos sacrifícios. com muitas reprimendas. puxões de orelhas. ofertas de cargas de porrada e lá se ia compondo o artista – já em idade adulta. naquele tempo depois dos vinte e um anos. os mais capazes. os mais trabalhadores. os mais humildes. os mais aplicados e persistentes lá chegavam a mestres de marcenaria – era agora um pouco mais do que carpinteiro. era marceneiro – que honra – agora sim. este era o topo da profissão e com ela o orgulho de pertencer a uma classe profissional que se sabia especial na história da marcenaria portuguesa – com o titulo chegava também um salário semanal mais reforçado. o casamento. o respeito dos colegas de trabalho. do patrão e dos amigos – a família com o seu chefe era uma instituição respeitada no estado novo – a trilogia: deus. pátria e família – eram verdadeiros peritos na arte de trabalhar a madeira e tinham agora também a responsabilidade de preparar outros jovens para a vida adulta – eram mestres. professores e educadores – mas em minha casa o assunto tornara-se grave e aquela esquina da sala de visitas uma dor de cabeça – a situação estava caótica havia um canto da parede por preencher – já não havia paciência para ouvir as lamúrias da minha mãe. sempre preocupada com as visitas de amigos e familiares ao lar – ouvia-a muitas vezes dizer:

-- isto assim não está nada bem. é urgente e imprescindível um novo móvel para aquele cantotemos que resolver isto rapidamente. é uma vergonha. como posso receber visitas com este canto da sala neste estado – o que irão dizer

com este argumento já não havia volta atrás para o meu pai – o remédio era mesmo encomendar mais um móvel para sossegar a matriarca – lá aparecia um homem de bata cinza-triste. enfeitada com pequenas aparas. rolinhos de madeira feitos à plaina. todos tão certinhos que não me custava imaginar serem colocados à mão. um a um para abrilhantar e valorizar a arte de quem trabalha madeiras raras. exóticas e caríssimas – a minha mãe lá ia explicando o que queria enquanto o homem das madeiras acenava com a cabeça a tudo que a dona da casa e do dinheiro ia articulando. confirmando o seu bom gosto e saber. com intervenções cirúrgicas de quem tinha tirado um curso superior na arte de encantar os clientes – e lá ia dizendo o mestre:

-- a senhora sabe o que quer. vê-se que tem bom gosto. ainda o mês passado entreguei uma peça igual ao dr. zenha. a senhora sabe quem é não sabe?

perante um silêncio prolongado logo acrescentava:

-- tem consultório em frente ao jardim santa bárbara. é um grande médico. um dentista que estudou em coimbra. a “casa” está sempre abarrotar de clientela – nunca tem horas de sair – dizem que é um grande médico e muito boa pessoa – não desfazendo

a minha mãe fazia um gesto afirmativo com a cabeça – nunca percebi se aquele abanar de cabeça a dizer que sim era por conhecer mesmo o doutor ou apenas para não ficar mal na conversa – mas logo voltava à carga:

-- não quero daquelas madeiras ordinárias. quero tudo em castanho. bem sequinho. não quero cá madeiras empenadas ao fim de seis meses  – se empenar leva-os todos para trás e devolve-me o dinheiro e nunca mais lhe compro nada – um móvel é sempre um móvel e não é para meia dúzia de dias 

o artista garantia que podia estar descansada. o trabalho dele era sério. as madeiras usadas eram de qualidade e muito bem secas. tudo que saía da sua casa era da máxima perfeição. de total confiança e com a garantia da sua palavra

-- se alguma coisa não estiver ao gosto da senhora. chama-me que na hora resolvo o problema

sempre que entrava uma visita pela casa adentro logo a minha mãe fazia questão de comunicar em tom grave: é tudo em castanho. até as forras das costas. não quis nada em tabopan. e continuava com a sua dissertação de valorização do material e do seu bom gosto:

-- foram caros mas valeu a pena. são móveis para toda a vida. não foi barato mas é um gosto. afinal é para isto que tanto trabalhamos e esta é a nossa casa

– ainda bem que não foi verdade. a minha mãe ainda é viva e os móveis já se foram. mas a verdade é que nunca lhes vi uma peta de caruncho no castanho. outros tempos – sempre achei que o nome da madeira tinha origem na sua cor. mas não. era da árvore. mais tarde vim a saber que era o castanheiro – coitadas das castanhas. mortas para fazer móveis – estes homens especiais. mestres. domadores do formão faziam qualquer peça de mobiliário. mesas de sala de jantar. cadeiras. cardências. aparadores. camas com guarda-vestidos. cómodas e toucadores com espelhos laterais para que as senhoras pudessem ter uma visão perfeita da volumetria do seu cabelo. que na época. eram pulverizados com quilos de laca ultra fixadora – deitavam o pó de arroz em movimentos circulares que mais pareciam agroglifos deixando um nuvem no ar de um rosa-mate perfumado de pureza – eram artistas. eles e as senhoras – lembro-me da mobília de quarto da minha mãe. mais tarde passou para o meu quarto porque a minha mãe se aborreceu do d. josé – encomendou uma dona maria. estava mais na moda – sempre que tínhamos uma visita lá ia a minha mãe e o meu pai mostrar as mobílias. quando chegava ao quarto dizia com orgulho:

-- é estilo d. josé. toda em carvalho. custou-nos uma fortuna

o meu pai acenava com a cabeça em concordância com tudo que a minha mãe ia dizendo. também não podia ser de outra forma. tudo o que tocava em interiores do lar era da responsabilidade do mulherio – sempre me intrigou aquela coisa de dar nomes da nobreza portuguesa a mobílias de quarto. sabia que o d. josé tinha sido um rei de portugal. com o cognome o reformador devido às reformas que implementou no seu reinado – logo por isso me parecia ter sido um personagem real importante – mas a partir de certa altura o que me fez mesmo valorizar o seu  reinado foi a imponência da mobília com seu nome – a cama era realmente majestosa. carregadinha de bilros. pequenos e grandes. encaixados uns nos outros. todos torneados. feitos a formão. um a um –

-- uma mobília com aquele aparato de curvas e contracurvas não poderia ser de um rei qualquer – o problema era limpar o pó mas também confesso que não era da minha preocupação

estes mestres de bem trabalhar a madeira. gostavam de ostentar bigodes fartos. sempre enfeitados com pequenas partículas de serrim. dava-lhes um ar de excelência e profissionalismo – pelo aspeto do bigode jurava que os seus antepassados foram os responsáveis pelo aparecimento da caravela portuguesa – na orelha um lápis enorme. não era redondo. tinha um formato geométrico esquisito. com um crayon grossíssimo. dava para tudo. riscar as paredes. as madeiras. todas as explicações eram feitas a lápis e o projeto tirado da algibeira em cinco minutos – as medidas sempre alinhavadas a olho e anotadas por cima de traços que ninguém compreendia – escrita de talento – de vez em quando lá vinha a fita métrica para dar um ar de credibilidade ao mestre e por fim. para que não restassem dúvidas do seu profissionalismo rapava do nível. encostava-o á parede e com um olho fechado e outro aberto dava um suspiro que ninguém percebia muito bem se aquele arfar aflito significava desgraça ou aumento do preço final do produto – se realmente havia um problema o artista enrugava o sobrolho e deixava escapar por entre os lábios a preocupação:

-- vai ser o diabo

tudo isto era anotado num papel de cartuxo de mercearia. cinza claro trespassado por duas riscas azul forte – este cartão grosso servia também para colocar na testa da criançada sempre que as esmorravam – depois lá vinha a lenga lenga de que os galos cantavam à meia-noite. confesso que nunca ouvi nenhum – humedecia-se em água o papel cartuxo. colocava-se sobre o hematoma e ali ficávamos à espera que alguém dissesse:

-- podes tirar. já não cresce mais. estás pronto para outro – tudo se curava com amor

no passado era assim o mundo dos homens com profissões respeitadas – nesse tempo. ninguém era verdadeiramente rico. ninguém tinha carros de alta cilindragem. nem relógios de marca. nem roupa de marca. nem fins de semana prolongados. o único dia de descanso era o domingo. dia do senhor com a igreja a fazer questão de lembrar a obrigatoriedade da visita – e assim acontecia. vestia a melhor roupa. com solenidade. com brio e vaidade. peito para cima. ombros direitos. queixo firme. bigode aparado. cabelo com brilhantina e um sorriso que o vestia de dignidade de cima a baixo – acompanhado sempre pela esposa. discreta. sem ornamentos espalhafatosos. vestia um fato-saia-e-casaco singelo. em lã. cor neutra. nem fina nem grossa para assim usar o ano inteiro – engalanada. crente em deus e no futuro não se cansava de dar o braço ao seu marido numa vaidade de quem sabia que não tinha apenas um homem. tinha muito mais. tinha um artista que a sociedade respeitava –  tenho saudades desse tempo. tenho saudades da idade jovem da minha mãe. tenho saudades daquele jeito de ver o meu pai fazer todas as vontades à minha mãe – também em minha casa a honra se sentava à mesa –  e eu com um orgulho que me dura até hoje




29/10/2016

deambulações noturnas - XI




foto - sampaio rego


crescer para ser doce é o caminho mais fácil para envelhecer com fel – o excesso de afabilidade faz-nos viver assim assim – quem quer ausentar-se acertado não pode ser açucarado







28/10/2016

as cartas do tarot




foto - sampaio rego




tudo que ouço fica aqui [olhos]. aqui onde o descanso não existe e tudo o que é real permanece imutável – abano esta mágoa de ver a minha compaixão desaparecer. sei agora que já não é agonia. é aceitação – impossível dizia eu – o cosmos desfaz os impossíveis – a possibilidade nos impossíveis existe – a racionalidade matemática também se pode transformar numa equação errante em milésimas irracionais – estas milésimas loucas passam a existir apenas para quem faz questão de viver com justeza – errado. digo eu. e a conta feita pela centésima vez e o erro escondido nos detalhes. no destino. no coração que herdamos e que só bate como ele quer – a borracha na mão para apagar o que não é apagável. modificável. transformável. rasurável – na vida tudo é a branco ou a preto. tudo é virtude ou tropeção. tudo é destino. interação e ocasião súbita – tudo se resume a flaches de luz que viajam a uma velocidade que nunca entenderemos – estavas lá. não importa onde. como estavas. estavas e disseste presente e o mundo engoliu-te. digeriu-te e faz de ti um príncipe onde as contas dão sempre certas pelo arredondamento não das centésimas mas das unidades – se te vomitou tudo está acabado. por mais contas que faças o resultado terminará sempre num quase estava certo se não fosse aquela décima. aquela nesga. aquele pé que nos rasteirou. aquela rua que nunca deveríamos ter tomado. aquela casa que nunca deveria ter sido comprada pelos nossos pais. aquela parteira que não nos deixou cair – não há arredondamento para as centésimas – enfim. o erro só é erro quando retira mérito a quem o produz – eu não produzi absolutamente nada. sou apenas destino – sempre acreditei na vida. mesmo quando me pareceu impregnada de um coeficiente elevado de erro – sempre acreditei que o mais certo venceria o incerto. que os caminhos sinuosos chegassem ao mesmo destino dos que são feitos de retas. e que a glória mais saborosa fosse feita de sacrifício – o povo de israel andou quarenta anos à procura da terra prometida. sofreram umas quantas perseguições. provações. humilhações. arrependimentos. hesitações. dúvidas. mas no final a certeza de que aquele era o caminho correto – o triunfo do bem sobre o mal. dos virtuosos sobre os impuros. da amizade sobre o desconhecido. do céu na terra em vez da glória pós morte com a ressurreição à direita de um pai que nunca foi meu – o castigo divino é a nossa memória que em vida não perdoa o destino que não escolhemos e o seu erro –  a dor é viver – e o corpo iludido com o que afinal estava escrito desde o nascimento – juro que não sabia caso contrário recusava-me a nascer – nunca entendi nada de destinos. de famílias e da sua história. das suas tradições. do caminho. das raízes. que de tanto caminharem ficamos sem saber de onde vieram – talvez um cruzado. um judeu convertido ao catolicismo. um escravo que de tanta miscigenação acabou por ficar branco. um agricultor da idade das trevas. marinheiro nos descobrimentos. um homem ao serviço de deus. do diabo. da morte – não sei que caminho percorremos para chegar aqui – sou o que sou e só sei de mim numa parte desta caminhada sempre mortal – sei do meu pai. sei do que ele me disse. tantas vezes sem a atenção que merecia – mas queria o meu próprio caminho – tolo. o que era importante mesmo era saber mais do seu caminho para ficar a saber mais do meu – sei que era boa pessoa. sei que guardava o mundo num abraço inesgotável e que sorria do seu passado com desprezo – vivia em paz num corpo aformoseado por uma bondade capaz de enfeitiçar a dor. o sofrimento. a amargura. a aflição. a angústia – e assim fez um pé de meia que nunca foi capaz de o usar – o destino roubou-lhe o final feliz. morreu preso a uma maldição que nunca quis acreditar ser merecido. esqueceu-se de tudo. até de si e partiu sem uma única palavra que o vestisse como se partisse para ser recebido por deus. morreu nu de tudo – com ele só levou o destino – como dizem os castelhanos: no creo en brujas pero que las hay las hay – no meu caso substituiria as bruxas por feiticeiros – as cartas em cima da mesa distribuídas em cruz como manda o livro de s. cipriano – um valete de ouro. uma dama de ouro. um rei de ouro e o enforcado de cabeça para o inferno enquanto a viúva pede à morte perdão pelo desdém com que o seu amado vive os últimos dias de vida – baralho e lanço novamente o destino para a mesa e o resultado igual. apenas o enforcado está cada vez mais enforcado e a viúva cada vez mais viúva e o negro mais negro – não há nada que possamos fazer contra o destino. as cartas estão na mesa desde o dia em que nascemos e por mais que as embaralhes. que as cortes ou que as cruzes. o enforcado nasceu enforcado e estará sempre de pernas para o ar – o natal está aí. não tarda nada – no natal temos a família que amamos e os amigos que nos restam e nenhum enforcado pode matar o meu espírito de natal – depois do natal... voltarei a deitar as cartas e então posso ser o enforcado com as pernas para a cova porque já pouco me importa




25/10/2016

23/10/2016

entrego-me a um café. fazem-me companhia?




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entrego-me a um café. cremoso. gostoso. aromático e espesso. aprecio-o. tomo-lhe o paladar numa degustação inocente e silenciosa – deixo-o acontecer dentro de mim sem nenhum obstáculo entre o seu aroma e o meu silêncio – o corpo experimenta a cafeína como se fosse a primeira toma da manhã. não é – escurece o dia e o corpo – o coração acelera desorganizado. trémulo. sem perceber o motivo de tanto apego à vida. revolve-se. inquieta-se. cospe fantasmas teimosos. resgata memórias perdidas. ajusta-se a conflitos vergonhosos e resiste com voracidade a batimentos confusos – mais um pequeno gole. pequeníssimo. o tempo e o café tem que durar – a cafeína endurece a voz com uma energia forçada. esta fica rouca. fula. desconexa. a comer sílabas e ideias também. atabalhoa-se e profetiza ora raiva. ora resignação – quando a alma adoece o corpo desaparece – tal como os bêbados um corpo drogado diz sempre a verdade – e o café numa espera perfeita liberta um vapor de quem arde no seu interior – o silêncio [interior também] resiste num absolutismo implacável  – olho-me de cima a baixo e não me encontro –

estou perdido. não me descubro em lado nenhum a não ser na cor do café – olho-o com atenção. é negro. um negro absoluto – percebo que para lá deste negro não existe nada – o silêncio é agora. também. de um negro-café-absoluto. com aroma – recupero o ritmo cardíaco normal num sossego aromático – tudo me parece tão distante. tão do começo do mundo. dos dinossauros – extinguiram-se atropelados por um cometa idiota. dizem que vinha do lado do oriente. perdido e desorientado  caiu aqui como podia ter sido noutro lado qualquer – a partir desse dia nada foi igual. nasceu um novo mundo – eram bichos enormes. fortes. poderosos. temíveis. maiores que todas as plantações de cafeeiros – sucumbiram por inabilidade ao novo mundo – continuo distante de tudo que me rodeia – o corpo reclama mais droga. mais cafeína. mais descuido para matar a lucidez – só perdido me posso encontrar – talvez esteja na hora de me procurar. de dar duração à vida. existir – um homem só existe vivo – encosto-me a mim. entrelaço as mãos. o coração com as veias e prometo ao corpo um último gole de café quente. enquanto o armageddon. na minha janela.  se faz anunciar em forma de vento delicado –

que saudades de um cigarro. daquele fumo a deslizar para o inferno de um português suave – eu e o tabaco suaves – sempre me senti um homem suave quando me entregava ao silêncio – confisco-te as beatas. e assim ficava obrigado a entregar o fim de cada cigarro ao amigo confiscador – era o preço que pagava aquele que era portador de um maço de tabaco – não era o puto mais rico. tinha era mais sorte no acesso ao dinheiro – os amigos confiscaram-me a vida em pontas de cigarros – ainda os guardo dentro de mim – muitas vezes ouço sussurrar: há outro mundo para além da tua janela – são eles. tenho a certeza – uma vez amigo. amigo eterno – mas da minha janela já não se chega a lado nenhum – há um montão de coisas que acumulei enquanto fui vivendo: um livro da primária. uma espiga amarela pintada num fundo preto. uma coleção de cromos da bola. um colégio de padres onde o diabo encarnou. uma revolução de abril que nunca terminou. muitas conversas a entrarem pelas noites dentro. sexo bom e mau. correrias quase sempre para lá da realidade. tropeços sem explicação e mais umas quantas ninharias que prefiro não falar – velharias que perderam valor no tempo. gastaram-se na inutilidade e acabaram por tapar a janela de futilidades –  

resta-me o café. o seu aroma. e esta forma de estar sentado – estou de lado e já nada me embarra. tudo me passa ou pela frente ou pela parte de trás – no fundo da chávena aquecida a borra. enlameada de um negro pestilento. parece acabadinha de chegar de um navio negreiro – mas a borra nunca deixará de fazer parte do café por mais pestilenta que nos pareça aos olhos – sem borra não há café – perdido em conflitos interiores mexo e remexo o que me sobra na chávena com a força de um mandingo – mexer não me serve para nada. o que é borra borra fica – resta-me a janela e a borra do café tal e qual como é – do lado de fora da janela o tempo remexe-se [também] num vagar que não é o da mão que revolve a borra – mesmo tomado pela cafeina. pedrado. sei que o que me resta é a apenas esta borra. é ela que me faz viver – talvez esteja a exagerar e a questão possa ser analisada em base de uma doença mental. quem sabe o problema reside no sistema nervoso. ou em mim. intrinsecamente meu. nascido. criado e desenvolvido para me fazer crescer assim como sou. prenho de infinitos. preso a um cordão umbilical do tempo dos dinossauros –

mas para que serve esta conversa. para que serve falar destas coisas todas se o que interessa mesmo são as borras do café e o seu aroma – e eu a mexer. e o melhor do café tombado no fundo da minha garganta. morto por já não ser grão. e o aroma perdido para sempre numa viagem escura ao centro do corpo e o paladar esgotado pelo esforço de o manter perto da boca que é como quem diz. perto de quem me pode ouvir – já pouco resta do café agora misturado em ácidos estomacais. agita a chicote a minha única doença comprovada pela ciência: úlcera gástrica – a loucura nenhum médico foi capaz de a comprovar apesar de a médica de família já me ter dito que o meu maior problema não era o café mas sim o cérebro – talvez tenha razão – e lá estou eu com a colher para trás e para a frente como se tudo dependesse do sentido com que guio a mão. revirando tudo que é passado como se fosse uma borra gigante – estou aqui pedrado como se a vida fosse esta colher minúscula e tudo o que lhe vai dentro – mal-agradecido. enquanto mexo estou vivo e tenho amigos que já partiram. já não mexem colheres – que é feito do luís vieira? deve estar no céu. todos os meus amigos tem direito ao céu –

era um bom rapaz. gostava de ser guarda-redes. gostava de voar para as bolas. era calado mas maroto que chegasse – o tabaco e o pulmão levaram-no quando estava mais bonito do que nunca. era pai – todos os pais são bonitos – tenho saudades dele. tenho saudades daquela puberdade em que espreitava-mos pela janela do seu terraço a sua empregada a despir-se num vagar que nos levava à lua – ela sabia que as crianças são feitas de pressas – que sofrimento – e a descoberta de que afinal eramos mesmo machos – era ele malandro. a empregada ainda mais e eu valia pelos dois – que alegria. creio que foi a primeira mulher que vi nua. logo dum terraço de onde se via tanto da minha cidade – em frente a igreja do carmo badalava os sinos enquanto as pombas esvoaçavam pânico com o tocar das horas – só mais tarde percebi o pânico das horas – sou doido por relógios – ainda hoje gosto de janelas e continuo a ter uma casa com terraço onde as gaivotas que guardo em mim podem agarrar o vento noto. quente. criador de nuvens e sonhos cristalinos – já não creio voltar a ver nenhuma mulher nua por uma janela. mas também para que me interessa hoje ver uma mulher nua numa janela se elas andam nuas por todo lado –

eramos felizes com coisas do arco do diabo – os seus filhos devem estar grandes. tomara que sejam felizes e saibam que o pai era um miúdo fantástico – o pior da morte é partirmos sem deixar nada para que os outros possam entender o que por aqui andamos a fazer – é do que tenho medo. desde miúdo que tenho medo desta morte que nos rouba não a vida mas a nossa existência. a nossa missão enquanto homens com ambição. com consciência. com paixão. com uma vontade de abraçar o mundo e de o trazer para dentro do corpo – já não tenho peito para o mundo por mais pequeno que seja. estou completo – na minha janela o tempo corre com todos os vagares do mundo – quando o mundo é feliz o tempo corre sempre mais devagar. ninguém tem pressa de tomar um outro café quando o que acabamos de tomar ainda está amarrado ao céu da boca conservando todas as particularidades do local onde nasceu – eu nasci numa rua onde já não moro. nem eu nem nenhum dos meus amigos. nem o campo da feira. nem o campo dos padres. nem a casa de pasto luso brasileira. nem a celestinha da lusitana. nem o sr. capa batateiro que usava uma calça fazenda larga em que se notava os testículos a baterem-lhe no joelho –

não vivem ali mas vivem noutro sítio. uns no céu. outros noutras ruas com direito a céu – eu não vivo ali nem em nenhuma rua que me permita olhar o céu como o fazia com os meus amigos – já não tenho coragem de pedir o céu –  vivo no inferno à tanto tempo que já não seria capaz de me habituar às alturas – do café já só há restos da sua existência. quase não dá para um gole. ficaram ao menos as marcas na chávena para testemunhar que um dia existiu – uma nesga de sol atiça-me a vontade de viver – agarro – mas logo a deixo fugir – tudo se me escapa das mãos – o café está morto. como a maior parte de mim – remastiga o estomago que grita por já não aguentar mais a cafeina – não quero mais suplementos de vida – e a borra cada vez mais densa. pastosa. escura. melosa e o cheiro pestilento ao café retardado impulsiona a mão a mexer cada vez com mais força – toda esta força feita sem sentido. sem tino. demente. louca. ás vezes para a direita. às vezes para o fim do mundo –tudo se resume ao fundo de uma chávena e uma mão perdida em voltas que já não me levam a lado nenhum e a borra cada vez mais minha por tanto lhe mexer e todo eu sou disparate com tanta volta da colher e o corpo a pedir uma sombra para descansar – dói-me tudo e não sei o que é este tudo –

não sei nada. nunca soube nada e sempre procurei saber tudo – e a borra em agitação agarra-se à colher minúscula como se o paladar genuíno só existisse verdadeiramente nas borras do café – porque sou assim? não sei – e a janela grávida de mil e uma coisa que nunca fui capaz de aprender e a ilusão débil desaparecida num excremento de café – está na hora de me absolver e parar de mexer no que sobra de mim – e a borra cada vez mais escura. negra-morte. enquanto o pensamento me leva para a frente de um punhal que não para de me chamar para dentro de si – como te resisto se a borra um dia acabar? tudo o que escrevo é agora com uma mão. a outra amarra o último sopro de esperança – mais nada pode fugir do interior da chávena. não aguentava – e a colher de um lado para o outro ao encontro das paredes que já não separam o antes do desespero – tudo está misturado. perdido num infinito de reflexões que não encaixam com nada racional – só a chávena continua bonita. talvez seja da porcelana ou da luz que lhe entra pela janela – e o corpo a pedir contas de tudo que ficou para trás. de tudo que ficou por fazer. de tudo que não fui capaz de trazer para dentro de um futuro que fede como borra de café – estou cansado. muito cansado. quase a tombar com todas estas palavras que esperneiam como se o café pudesse acabar a qualquer momento – escrevo –

escrevo para permitir ao futuro arquivar com veracidade estas minhas divagações loucas. irracionais quase suicidas mas também gentis. delicadas. frágeis que me ajudam a conservar a coerência nesta degustação silenciosa – mas não adianta. já não vou a tempo de as escolher com cuidado. já não são minhas. são da cafeina. são desta loucura que mata cada segundo do que ainda mexo dentro de mim – a borra do café cada vez mais borra e o açúcar desaparecido de tanto mexer – um dia todas as palavras serão borra de café – não há terra que suporte nenhuma plantação de palavras. nem de propósitos. nem promessas. nem de coisa nenhuma. porque só pode nascer o que é semeado – no meu corpo  todas as palavras morrerão com o último gole de café – escrevo – escrevo porque são as palavras que me seguram na viagem para dentro do punhal – resisto. o aroma de café cada vez mais distante e a chávena a pedir à razão para não pingar para dentro da lâmina – e a borra cada vez mais seca. mais compacta enquanto o interior da chávena ainda mais preta e a porcelana a esgotar-se enquanto os dedos que a seguram agoniam num esforço final para a aguentar junto ao corpo – e a janela com o mundo todo do outro lado e eu cada vez com menos força para o visitar –


sou a cada momento mais desta chávena. desta borra. deste negro com cheiro a café que por ser borra não deixou de nascer num cafeeiro ao lado de milhões de grãos de café – resta-me a mão que amarra o último sonho. mantenho-a presa a um corpo que tem ainda dois olhos maiores que a janela – estou absolutamente parado. os livros acumulam-se para um novo mundo que não sei se verdadeiramente existe e a leitura adiada para uma próxima vida onde as chávenas do café sejam apenas chávenas e o café só café e os sonhos mais que sonhos e a força da mão que mexe as borras morra de cansaço e o negro parta como vidro e voe como gaivotas –

vou tomar mais um café. fazem-me companhia?