.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

21/04/2021

eu. o meu pai. e o meu primeiro dia de trabalho - II

 


 






2º dia de trabalho 

fui oficialmente informado pelo administrador da empresa. o senhor meu pai. que ainda antes do nascer do dia viajaríamos para alcanena. cidade do distrito de santarém. conhecida pela capital da pele – esta pequena terra junto ao rio alviela possuía [ainda possui] uma importante indústria de curtumes. tratamento do couro cru com a finalidade de o preparar para a indústria transformadora: sapatos. vestuário de pele. carteiras e porta-moedas. bolsas de senhora. cintos e outras pequenas bugigangas – visitamos duas ou três empresas. deixamos encomendas de forma a satisfazer as necessidades das vendas. umas dezenas de pacotes de pele em várias cores. pedindo máxima brevidade na entrega. havia rotura de stock. precisávamos quanto antes que a matéria-prima chegasse à cadeia produtiva – com as compras realizadas. encetamos o regresso ao doce lar. estava ansioso. sempre adorei regressar a casa. ainda hoje adoro – em tempos viajei bastante. visitava feiras em vários países da europa. um ritual que se repetia duas vezes por ano: milão. florença. paris. madrid. barcelona. para ver tendências de moda. bolonha e frankfurt. para adquirir matéria-prima – logo nos primeiros dias de visita. depois de passar o entusiasmo de chegar a uma grande cidade do centro da europa. com centenas de anos e de história para descobrir e conhecer. com hábitos e costumes que em nada se assemelham com a afabilidade lusitana: nós caminhamos sempre a sorrir. com sol. sempre encantados por estarmos vivos – com o cinzentismo destes estranhos. sempre a prometer mau tempo. com ar de arrependidos de qualquer coisa que nunca consegui descortinar. passado pouquíssimo tempo. começava a sentir-me importunado numa terra que sabia não ser minha. sentia-me um estranho. faltava sol. brilho nos caminhantesfaltava-me conforto. nada de especial. apenas coisas simples: a minha cadeira. a minha cama. o meu lugar na mesa. aquele jeito especial de me sentar no sofá. o comando da TV. o telejornal da noite. a língua. há no que é nosso um bem-estar aconchegante e tranquilizador. em boa linguagem o que me faltava mesmo era a minha casa. tudo o que realmente era meu – o corpo com o tempo apropria-se das coisas mais incríveis. quando toma posse de alguns hábitos. por mais simples que sejam. incrusta-os na pele. uma espécie de artimanha para se sentir tranquilo – esta magia do lar permite-nos distender os músculos. purificar a alma. equilibrar-nos. ao fim de uns minutos ficamos facilmente a perceber o que realmente é importante. e tudo isto assente em gestos impercetíveis ao resto do mundo: o modo de meter a chave na porta. o arrumar as chaves na cardência.  o equilíbrio dos móveis: um quadro ali. a porcelana acolá. os relógios parados em horas conhecidas. o cadeirão a olhar a janela. ao canto a lareira que arde continuamente sem se ver. em cima da lareira uma escultura africana. e atrás das costas. a certeza de que encontraremos o corredor. o quarto. o escritório. e neste conforto mágico. o controle absoluto sobre o que queremos fazer a cada momento: porque mantemos as pernas silenciosamente paradas e não as arrastamos de um lado para o outro. porque vemos TV e não rádio. porque lemos um livro e não um jornal. fazemos o que fazemos apenas porque assim o entendemos. e se o nosso escolhimento obrigar o corpo a abandonar a sala. vai-se como se não se saísse daquele equilíbrio absurdo. mudamos sem mudar. continuamos numa bem-aventurança tranquila. alma e corpo numa simbiose com o espaço-matéria – estes hábitos que se repetem dia após dia. ano após ano. adquirem estatuto de norma. como se tudo em casa não passasse de um jogo de xadrez. todos se movimentam e ninguém embarra com ninguém. só vemos o que queremos ver. só ouvimos o que necessitamos ouvir. mexemo-nos sempre em linha reta. as curvas e as diagonais ficam para o outro mundo. se não gostamos de alguma coisa jogamos um peão em nossa defesa. e se algo se complicar. movemos a rainha e pedimos-lhe um xeque-mate. a rainha resolve qualquer ataque mais virulento às vezes é como se vivêssemos sozinhos tal é abstração de tudo o que nos rodeia. como se o sofá ou a cama se transformassem num elevador direto ao céu. o paraíso num apartamento – quando estamos num hotel não é assim. estamos ali porque não podemos ir para mais lado nenhum. aturamos aquelas pessoas porque não temos outras. vemos aquela TV e aquele programa como poderíamos ver outro que nos dava o mesmo. tudo é um aborrecimento. um exponenciador do mau.  o elevador não sobe para lado nenhum. desce ao inferno. em descidas vertiginosas. falta-nos tudo o que realmente é nosso. o silêncio magoa. a solidão rebuliça-nos. a saudade mostra-nos em desespero o que realmente é importante. falta-nos a nossa casa com a sua infinitude – a minha casa sempre me permitiu criar uma bolha protetora. um refúgio à prova de desgraça. por pior que me corresse o dia. era [é] naquele espaço mágico que recuperava a alma – ao meter a chave na porta era outro homem. os sorrisos cresciam. era invadido pela certeza dos hábitos. cada coisa no seu lugar. as vozes todas reconhecidas. minhas. e eu a despir-me do que não tem valor. os miúdos apareciam numa pressa boa. os braços corriam para os abraços. e o lar. com a sua poderosa magia restabelecia as ligações sanguíneas: tocamos uns nos outros. às vezes só com o coração. os olhos recuperam o compromisso suave e apaixonado. finalmente no mundo dos afetos – agora. que o tempo dos desprendimentos já passou. torna-se mais fácil defender as coisas que realmente são importantes. aquelas que nos prendem à vida. que nos fazem sorrir: a família. com a sua honra. a sua liberdade. a sua independência perante os interesses do mundo moderno e caótico – temos que ter um código. um ethos. e a certeza de que tudo em que acreditamos está protegido no nosso castelo – creio que este gosto pelo doce lar herdei da minha mãe. enquanto o meu pai gostava de girar pelo mundo. se pudesse sair. não ficava em casa. a minha mãe era o oposto. se pudesse ficar em casa. não saía – um certo dia o meu pai chega a casa com uma proposta que acreditava ser irrecusável para a minha mãe. tirar umas férias e viajarem juntos para a moscovo. a antiga união soviética – queria ver com os seus olhos. se era verdade ou não. a pobreza miserável que se vivia nos países socialistas – depois de muita insistência. e muito empenho para convencer a minha mãe a acompanhá-lo. incluindo eu. que tudo fiz para que não deixasse o meu pai viajar sozinho. seria uma belíssima oportunidade para tirarem um tempo só para eles. e ninguém mais do que a minha mãe merecia aqueles dias – não adiantou nada a nossa teimosia. a resposta foi sempre não. não me apetece. é muito longe. é muito frio. sei lá o que mais. o remédio foi mesmo o meu pai meter-se no avião sozinho – regressou a casa feliz. com um gorro ushanka. uma garrafa de vodka original. umas quantas matriocas encaixadas umas nas outras. e a certeza absoluta de que o socialismo não interessava a ninguém – durante um mês não se falou de mais nada. o meu pai não se cansava de nos dizer como aquele povo vivia miseravelmente. nem queria ouvir falar em socialismo. deus nos livrasse de tal infortúnio – a sua única alegria era saber que tinha agora mais argumentos para rebater a doutrina comunista com os amigos – a minha mãe estava-se nas tintas para os comunistas. para ela o que era mesmo importante era como vivia a sua família. ficar perto dos filhos sempre foi a sua grande viagem. quer dizer. nos últimos anos era mais estar perto de mim. era o único que ainda dependia dos seus proveitos. e a viver na sua casa em comunhão de bens – os meus irmãos estavam casados e arrumados nas suas novas vidas – a sua grande preocupação era que o avião caísse e eu ficasse órfão. sem meios de sobrevivência e a depender da família e amigos – são estas lembranças doces que agora. passados tantos anos. me adoçam as recordações. este amor terno. os filhos estavam sempre em primeiro lugar. mesmo quando se tratava de aproveitar um miminho merecido – este lado da minha mãe ia muito além do amor. havia em si uma tabela rígida de cuidados. sempre sustentada por situações catastróficas: não tens bicicleta porque pode vir um carro e atropelar-te. não vás por aquela rua. é muito escura e pode aparecer um malandro. não saias que está muito frio e podes apanhar uma pneumonia. não faças isto e aquilo porque o céu pode cair-te em cima da cabeça – os cuidados da minha mãe eram sempre uma tragédia grega. nunca partia uma perna ou tinha uma constipação. não. ia sempre direto à morgue – a minha mãe ligou-me para sempre aos afetos. não que fosse uma mãe que andasse sempre de volta dos filhos. mas nos momentos mais improváveis e complicados estava sempre presente. sempre pronta a abdicar do seu bem-estar. com o seu exemplo de amor-abnegado. de sacrifício. de perseverança. energia e resistência – trabalhou como ninguém. dando sempre o exemplo a quem dependia da sua liderança. ninguém fazia nada que ela também não o fizesse. seis dias por semana. antigamente não havia a semana-americana. trabalhava-se aos sábados – ligada à máquina de costura. a dar ao pedal. sem motor elétrico. só apareceu uns anos mais tarde. sem tirar os olhos da ponta da agulha. ou nas mesas de montagem dando forma ao material. no controle da produtividade. nos acabamentos. era o coração da empresa. era a minha mãe que escorava. com a sua qualidade de trabalho e liderança. o sucesso da empresa. era a engrenagem principal de uma máquina que mantinha a família unida. e a viver de uma forma tranquila. nada nos faltava – o meu pai sabia disso. e também sabia que sem a sua companheira possivelmente nunca teria chegado ao que chegou – não posso permitir que os meus filhos não saibam que [também] o seu destino está conexo ao trabalho dos avós. todos nós. eu e os meus dois irmãos – houve um momento em que toda a família dependia dos resultados da fábrica. e por mais que tenhamos participado no seu crescimento.  dando-lhe um rumo de maior qualidade. com mais moda. o que é certo. é que quando lá chegamos a empresa já existia – a nossa excelente qualidade de vida só foi possível porque em determinada altura da vida dos meus pais. tiveram coragem e a determinação para realizarem um sonho. e deste modo. permitir que os seus filhos. e também os netos. pudessem crescer com um pouco mais de conforto – resolveram criar uma bonita unidade de produção familiar. e com grande esforço trouxeram-na até aos nossos dias. passando muitas dificuldades. sofrendo imenso – o seu exemplo é a sua maior herança. por mais que façam nunca os meus filhos conseguirão gastá-la. perdurará para sempre. até ao último dia da sua vida – quando cheguei à empresa. rapidamente percebi o destino que levariam os pacotes de pele que tínhamos comprado – chegados à fábrica. eram distribuídos pelos cortadores. todos homens especializados e já com muitos anos de profissão – uma arte que começava sempre por materiais menos nobres: forro. cartão. tela. espuma. matéria-prima mais barata e mais fácil de cortar – a pele era. e ainda é. um produto caríssimo. evitar desperdícios. encaixar os moldes de corte na perfeição. era só para os mais capazes. apenas estes chegavam à categoria de cortadores de pele de primeira – o resto da confeção estava a cargo apenas de mulheres. mesas de trabalho. máquinas de costura. e acabamentos – com o produto terminado seguia para o armazém e distribuído por lojas da especialidade em todo o território nacional. incluindo as ilhas da madeira e açores – de uma forma simplificada era mais ou menos isto que a fábrica dos meus pais transformava: pele de animais tratada em bolsas de senhora. nada mais – era um produto muito caro pelo preço dos materiais e pela elevada incorporação de mão de obra especializada – comprar uma bolsa de pele. nesse tempo. não era fácil. ainda hoje é complicado. mas não creio que haja dúvida que passados quase quarenta anos tudo está mais facilitado. antigamente a pobreza era mesmo pobreza. era miserável e agonizante – ainda não havia quotas de emprego para as mulheres. poucas estavam no mercado de trabalho. e mais escasso era encontrar mulheres mais ou menos bem remuneradas. por isso a sua disponibilidade económica para comprar moda era reduzida – apenas um número muito pequeno de mulheres podia comprar uma bolsa de pele: professoras. funcionárias ligadas ao estado. ou camarárias. eram a exceção. tudo o resto andava com bolsas sintéticas ou de saca plástica – o país era muito rural. as cidades pequenas. quase todas as mulheres se vestiam de preto. lenço na cabeça. com saia até aos pés. com sapatos de tacão raso. muitas de chinelos. e não era raro vê-las descalças – não havia sistema de proteção social. não havia serviço nacional de saúde. uma grande parte da população era analfabeta ou apenas com a quarta classe – havia pouquíssimos milionários. quem tivesse cem contos era riquíssimo. e as casas reduzidas à simplicidade. tudo muito singelo e prático: um rádio. cama. mesa e uns quantos bancos. e pouco mais – a televisão era estravagância rara. poucas famílias se permitiam a esse luxo – os automóveis eram ainda mais escassos. lembro-me de que na nossa rua só o meu pai tinha automóvel à porta. tínhamos mais quatro ou cinco vizinhos com automóvel. mas estavam na garagem e só saíam para levar a família à missa dominical no santuário do sameiro – o tecido empresarial era também paupérrimo. a sua sobrevivência assentava em baixos salários e no sacrifício dos trabalhadores. eram os novos escravos da revolução industrial. trabalho indigno. mal remunerado. e pouco produtivo – as empresas com condições de trabalho insalubres. sem estratégia. maquinaria deficiente e ultrapassada. produtividade e competitividade nula. protegidos por leis do trabalho completamente obsoletas – o 25 de abril trouxe os sindicatos. completamente politizados e desajustados da realidade social. afetos aos delírios dos partidos de esquerda – toda esta amálgama de incoerências permitia tanto ao patronato. como aos trabalhadores. uma comodidade tática: não damos nada em troca. mas também não nos podem pedir nada – a classe patronal era igualmente maltratada pelo aparelho do estado. isso não mudou nada. hoje é igual. a máquina tributária alienava por completo a possibilidade de as empresas se modernizarem – as importações de matéria-prima eram praticamente proibidas. as autorizações para trazer produtos novos estavam vedadas. e por fim. um escudo que não era aceite em lado nenhum. viajávamos com moeda estrangeira na carteira. marcos. francos ou dólares. o nosso escudo não tinha cotação no mercado financeiro europeu. em nenhuma parte do mundo – o país esteve fechado ao exterior durante quase meio século. as mentes estavam impreparadas para aceitar mudanças. depois da revolução as transformações na sociedade começaram a acontecer rapidamente. nem sempre bem. nem sempre com juízo. com políticos incompetentes. com corruptos. chegamos ao que somos hoje. pode não ser grande coisa. mas acreditem que é bem melhor do que há quarenta anos – por essa miséria consentida e autorizada. é que a principal produção da fábrica se baseava em sintético. era a sua base de faturação. talvez um pouco mais de noventa por cento. a pele era residual – foi nesta realidade que começou o meu segundo dia de trabalho. levantar cedíssimo. não havia as autoestradas de hoje. o caminho fazia-se vagarosamente pela nacional número um – era muito custoso e cansativo viajar naquele tempo. trezentos quilómetros de estrada ruim. passar pelo interior das cidades e vilas era um martírio. filas intermináveis de camiões. sem possibilidade de ultrapassagens. os quilómetros eram feitos a passo de lêsmia – possivelmente foram os trezentos quilómetros mais longos da minha existência. o meu pai aproveitou o vagar da viagem para me dar a maior lição de moral da vida – naquela conversa havia um misto de pai versus patrão. por isso não tive outra alternativa senão ouvir e calar – ao patrão podia passar-lhe alguma coisa pela cabeça e despedir-me. ao meu pai. como meu tutor. podia dar-me dois estalos. acreditem que seria muito mais rápido que o despedimento – estava encurralado entre duas superpotências. ambos na posse dos códigos para lançar sobre mim um ataque arrasador – o meu pai começou por me relembrar que foi minha a iniciativa para terminar com os estudos. e apesar de não concordar. a única alternativa que tinha agora era tornar-me num homem adulto. exigindo-me um comportamento responsável.  empenho. desta vez não podia falhar – a fábrica era um assunto sério. com regras rígidas para cumprir. tinha o dever. por respeito à família. de me tornar um exemplo para os trabalhadores. para todos os efeitos. aos seus olhos. eu também era patrão – de um momento para o outro começa-se a abater sobre mim um vendaval terrível. não no céu. não na estrada. mas dentro do carro. o meu pai começa a debitar as regras que teria de cumprir e respeitar a partir daquele dia:

.

1º - tens que estar na fábrica antes dos funcionários. 7.40 a porta tem que estar aberta

2º - começas como cortador de forros e conforme vais aprendendo a arte vamos-te entregando outros trabalhos com mais responsabilidade

3º respeitas os teus irmãos que são mais velhos e têm muita mais experiência

4º os encarregados [arlindo e zé meireles. este sindicalista da intersindical] são importantíssimos. tens obrigatoriamente que os respeitar como superiores. ouves o que eles dizem. e tenta aprender tudo o que puderes com a sua experiência. eles e a tua mãe são os mestres

5º dá-te ao respeito aos funcionários e nada de muitos risos nem confiança. é preciso mão dura para os manter na linha [isto dito pelo meu pai só podia ser para gargalhar. ele que se desfazia em sorrisos e confiança]

6º se tudo correr bem entras para sócio da empresa com uma quota igual aos teus irmãos. o que eles ganham passas também a ganhar [os meus pais não se cansavam de repetir que para eles não havia diferenças entre os filhos]

– irás ganhar quatro contos e trezentos para começar. o ordenado mínimo. se correr tudo bem. não criares problemas. mostrares interesse. aprenderes a arte. vamos-te aumentando o ordenado [o meu pai falava sempre no plural pois não fazia nada sem o consentimento da minha mãe]

.

para o que entendia da arte até que não era muito mau o ordenado. recebia um pouco mais que o ordenado mínimo. enquanto os meus irmãos já recebiam quase vinte contos – o que eu não sabia. e foi uma grande surpresa. é que passei logo a receber o mesmo vencimento que os meus irmãos. em soslaio a diferença era desviada para uma conta do montepio – com este dinheiro amealhado. um pouco antes dos dezanove anos. pude comprar um carro novo. um talbot vermelho. pela módica quantia de quatrocentos e sessenta e quatro contos e trezentos escudos – naquele tempo ainda se fazia a rodagem aos motores. uma seca total. amarrei em mais três amigos e marchamos para paris. mas isto é outra história. muito louca. muito estranha. e muito excêntrica. um dia destes passá-la-ei a papel – lá fomos galgando quilómetros sempre a dar no ceguinho. o que me levou às primeiras interrogações: será que fiz bem em deixar de estudar? numa coisa o meu pai tinha razão. fui eu que decidi abandonar os estudos. a solução era aguentar. não havia volta atrás – o que o meu pai não percebia era a minha vergonha em pedir-lhe a semanada ao domingo. o problema não era a mão estendida. os meus pais davam-me de bom agrado. era a minha consciência. não me sentia merecedor daquela nota. quinhentos escudos. muito dinheiro para um miúdo que em troca não lhes dava nada – o meu trabalho era estudar e eu não o fazia. era malandro. e quem assim se comporta não é digno da bondade de seus pais – a minha consciência sempre foi o meu calcanhar de aquiles – esta foi a única razão. pelo menos a que mais me atormentava. porque deixei os estudos – não estava a conviver bem com o peso na consciência. acordava e deitava-me a pensar que não era correto o que fazia – não tinha necessidade nenhuma de deixar os estudos. os meus pais pagar-me-iam o que fosse necessário até que acabasse o curso superior. para eles o importante era mesmo tornar-me doutor – tive um amigo que foi tirar direito para coimbra aos dezoito anos. acabou já passava dos trinta. regressou a braga com mulher e filho – hoje anda aí com o curso debaixo do braço. feliz da vida. farto de ser doutor de leis. e ninguém quer saber se demorou seis. ou doze anos. se pediu dinheiro aos pais. se o estragou. se lhe pesou a consciência. se foi digno ou não. é doutor e ponto final – eu podia ter feito igual. talvez até trazer mais do que uma mulher. e uma ranchada de filhos. a licenciatura para a minha mãe dava direito a quase tudo – não estou arrependido. nem gosto de pensar muito nisso. o que sei. é que se fosse para coimbra. não teria os filhos que tenho. nem a maria joão. nem este amor que sinto por eles. e em boa verdade. seria impossível viver sem isso. são a razão porque escrevo a minha vida. sem eles desconheceria que o belo existe – a viagem foi dramática não só pela lição de moral. mas também pela falta de tabaco. fumava mais de dois maços por dia. sempre às escondidas. claro que o meu pai sabia desse meu vício maldito. ele foi o grande culpado. fumava tanto como eu – durante o período de racionamento. logo após o 25 de abril. encheu o guarda-vestidos com dezenas de volumes ritz – fumava ele e eu. surripiava-lhe um maço por dia. não ligava nenhum à sua contabilidade. fosse tabaco ou dinheiro. para o meu pai dava o mesmo – por via dessa sua indiferença pelos bens materiais é que eu tinha quase todos os dias um suplemento à semana. pela manhã a lurdes sempre que arrumava o quarto dos meus pais encontrava no chão umas quantas moedas. o meu pai á noite dobrava as calças pelas vincas. e ao colocá-las na cadeira os trocos espalhavam-se silenciosamente pela alcatifa. era um puto muito abastado para aquela época – com esse seu despreendimento. nunca deu fé de que estávamos a fumar a meias. e a semana reforçada – apanhou-me umas quantas vezes de cigarro na boca. muitas vezes tive que engolir o fumo. naquele tempo os filhos só fumavam em frente aos pais a partir dos dezoitos anos. a maior idade dava passagem direta ao estatuto de adulto – foi muito duro. paramos para tomar café da parte da manhã e logo que pude corri para a casa de banho para tirar duas passitas. outra correria no fim do almoço. e assim me fiquei. meia dúzia de puxadas até chegar a casa ao fim do dia – agora é-me fácil confessar que no começo o trabalho não me correu muito bem. precisava de movimento. estava habituado a andar de um lado para o outro. aquela campainha maldita para pegar e largar a laboração deixava-me louco. era parecida com a campainha do liceu. só com uma diferença. nunca havia feriado. nunca havia falta de trabalho – estar parado em frente a uma mesa de corte. amolar a faca. acertar os moldes. deixava-me louco – tudo aquilo que tinha imaginado estava de pernas para o ar. começaram a surgir as primeiras gotas de sangue nas orelhas. e nunca mais consegui estancar a hemorragia – mas o impensável aconteceu. apaixonei-me pela indústria. pela moda. e principalmente pela sua criação – vivi esta paixão mais de vinte anos. como todas as paixões um dia acabam. às vezes por saturação. outras. porque nos abandonam – a minha não acabou. nem me abandonou. foi roubada pelos políticos. foi moeda de troca com a china. a alemanha e frança passaram a vender os seus carros de luxo aos novos milionários chineses. em sentido inverso. começaram os chineses a vender o seu têxtil na europa. infelizmente incluía o meu ramo – uns anos antes os nossos políticos pediram-nos para nos modernizar. tínhamos que ser competitivos no mercado europeu. assim fizemos. dotamos a empresa com maquinaria de ponta. contratamos dezenas de pessoas. ultrapassamos a centena e muitos. éramos uma das maiores empresas. bonita. moderna. estávamos muito à frente da concorrência. lançamos novos produtos. cintos. artigo de viagem. marroquinaria. uma metalurgia preparada para responder às necessidades internas. uma secção com todo o tipo de banhos: ouro. prata. cobre e níquel. e de um momento para o outro tiraram-nos o tapete e ficamos a concorrer diretamente com os asiáticos – obviamente que era impossível – mas esta é outra história que nascerá mais lá para a frente – confesso que às vezes a ferida abre e revolta aparece – um dia. mais lá para diante. quando tiver um pouco mais de coragem. registarei em papel o fim do nosso modo de vida – entretanto o terceiro dia estava prestes a acontecer. e as surpresas também

 

[continua com a 3ª e última parte]



20/04/2021

17 de abril de 2021

 




cinema paraíso é o filme da minha vida. uma história de amizade e amor entre duas improváveis personagens: totó e alfredo – vejo o filme regularmente. e em todas as visualizações sinto o que senti quando o vi pela primeira vez: uma enorme emoção. diria. uma enorme perturbação boa na alma – a maria joão é a minha maior amiga. é como se tivesse o cinema paraíso em exibição contínua em casa. e sempre que a olho. e não há dia nenhum que não o faça. sinto uma perturbação boa. e interrogo-me: porque razão deus a colocou a meu lado? só pode ter sido para me amparar quando cambaleio. para me dar a mão quando estou perdido. para me mostrar que a nossa vida faz ainda mais sentido com o passar dos aniversários – nesta nossa história de amizade. o amor trouxe-me os meus maiores amigos: os meus filhos – todos os dias agradeço as manhãs que despertam em mim. é com elas que renasço para o meu mundo: a família. temos uma bonita história juntos. e logo logo. os amigos. se vocês soubessem como amo os meus amigos. sem eles o colorido dos dias não seria o mesmo – obrigado por darem esperança e paz ao meu tempo – sinto-me grato e muito feliz. tudo o que realmente é importante. eu tenho – o meu muito obrigado a todos os amigos que gentilmente se lembraram de mim

P.S. – claro que me fazem muita falta os que já não estão entre nós: o meu pai. a minha mãe. o meu sogro. e a minha cunhada zeza – se não fosse a sua ausência este dia seria perfeito


09/04/2021

eu. o meu pai. e o meu primeiro dia de trabalho - I










 

último dia de liceu


corria o ano de 1979 – se tinham vencido os primeiros cinco anos da revolução de abril. quando também eu tive a absoluta necessidade de fazer uma revolução na minha vida – já no liceu d. maria II. antigo liceu feminino. e a meio do segundo período de aulas do 9º ano. resolvi enfrentar o meu pai e dizer-lhe que queria deixar de estudar – são as duas únicas bofetadas que me faltaram na vida. e o mais caricato. as que ainda hoje sinto falta – apesar de raramente pegar num livro para estudar. talvez algumas horas no fim do terceiro período. altura do tudo ou nada. onde em esforço procurava o dez para passar com duas negativas: inglês e matemática – para estes cadeirões não havia possibilidade de recuperação para quem tinha mandriado o ano todo – não creio que tivesse qualquer tipo de dificuldade em assimilar os conteúdos lecionados. o meu único problema era déficit de atenção. aliado a um estado de alegria hiperativo. queria estar sempre onde não estava. aprisionado a uma vontade devoradora de saber tudo do mundo. as paredes sufocavam-me – havia tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo. o país estava em roda livre. todos os dias eram novidade: manifestações. debates políticos. governos a cair. bombas a explodir. sedes de partidos a arder. confrontos. perseguições políticas. militares na rua. manifestações de apoio ao MFA [movimento das forças armadas]. saneamentos nas empresas. nas universidades. nas escolas. nas fábricas. novos partidos políticos. não havia limites para a distração de um jovem faminto de vida – as cidades encheram-se de novos barulhos. as ruas abriram-se à liberdade. ninguém descansava. o ritmo era alucinante. as pessoas transbordavam alegria. rodopiavam continuamente. sempre com os olhos no ar. como se procurassem sempre mais alguma coisa. acredito até que algumas voavam. tal era leveza como se gastava os dias – emergia do seu interior um estado de alma de bem-estar. uma euforia descontrolada. boa. o paraíso não podia ser mais belo – havia. não só para mim. mas para todos os portugueses. um mundo novo à nossa espera: havia futuro. esperança. as mensagens dos novos donos da política ofereciam credibilidade. ao contrário dos de hoje. o futuro estava certo. haveria paz. pão. habitação. igualdade. fraternidade. verdade. e as paredes. outrora caiadas de branco. nasciam pelas manhãs pintadas de movimento revolucionário: fascismo nunca mais. o povo é quem mais ordena. 25 de abril sempre. o povo unido jamais será vencido. a terra a quem a trabalha. e a grândola vila morena do zeca afonso a tocar interruptamente. como se as chaimites se mantivessem em revolução desde aquela madrugada de abril – o cravo vermelho na ponta da G3 disparava para um novo mundo. finalmente uma sociedade mais justa e fraterna havia uma luz de bem-aventurança para os portugueses – para mim. adolescente que nada sabia de ditaduras.  a única que conhecia era a do meu pai. o 25 de abril foi como se me dessem um lego gigante. montava e desmontava os dias. sempre com resultados surpreendentes abril ofereceu-me o que já tinha dentro de mim: poucas regras e mais liberdade – talvez a melhor comparação seja o que aconteceu ao país depois de ganhar o campeonato europeu de futebol. imaginem essa explosão de alegria todos os dias. durante pelo menos os primeiros seis anos da democracia – foi fantástico – a juntar a esta loucura coletiva. o fim da guerra do ultramar. o que permitiu o meu irmão regressar mais cedo a casa. estava deslocado no pior cenário de guerra: guiné-bissau – com o fim da guerra em angola. moçambique. e guiné. chega também a independência para os seus povos. o que provoca o regresso de milhares de retornados a portugal continental – estes portugueses ultramarinos regressavam à terra dos seus pais. muitos deles já tinham nascido no império africano. e poucas ou nenhumas raízes os ligava à nossa continentalidade cinzenta destroçados por uma descolonização caótica. chegaram a portugal só com a roupa no corpo. sem recursos financeiros. sem habitação. sem trabalho. sem nada. alguns sem esperança de um recomeço pela idade avançada – a única ferramenta para sobreviver que traziam consigo era um dinamismo excecional. e um sentido de liberdade que nós desconhecíamos. com o seu empreendedorismo revolucionaram rapidamente toda a estrutura do mundo do trabalho. social e económico. foram a grande alavancagem para um novo país. eram diferentes. gente sem preconceitos e com a mente aberta ao mundo – o país do fado. fátima e futebol mudou radicalmente para melhor. foi restabelecido o direito à greve. às manifestações. vários sindicatos foram formados. acabou a censura. passamos a ter uma RTP livre. jornais a escrever a verdade. os cinemas começaram a passar filmes interditos. os bares começaram a estar abertos até de madrugada. apareceram as casas de jogos. as mulheres deixaram cair as roupas pretas e embelezaram-se com cores e pinturas. as rotinas dos portugueses alteraram-se radicalmente – com a revolução política chegou também a revolução dos costumes. e a revolução sexual dos jovens – lá ia rolando pela vida estudantil conforme queria e entendia. as notas andavam entre o quase dez e o dez e um pouquinho. mas sempre com um sorriso nos lábios e mil coisas por fazer – reprovei uma única vez. a tragédia aconteceu no primeiro ano da revolução – confesso que injustamente. mesmo muito injusto – foi um ano muito difícil. com imensas greves estudantis. piquetes grevistas proibiam a entrada dos alunos no estabelecimento de ensino. liceu sá de miranda. as reuniões gerais de alunos [RGA] eram consecutivas e violentíssimas. o CDS e o MRPP confrontavam-se em grandes cenas de pancadaria – vivia-se um clima de muita instabilidade. o país estava em convulsão. a escola não era exceção. este jardim plantado à beira mar estava a ferro e fogo – para pôr cobro a estes confrontos a reitoria [comissão de gestão] via-se obrigada a pedir a intervenção musculada da COPCON [comando militar criado pelo movimento das forças armadas]. invadia o liceu aparatosamente em carros militares e emergiam de G3 por onde lhes desse na telha – era um temor permanente. ninguém podia garantir segurança a ninguém. havia no meio escolar medo e indefinição persistentenão se sabia se as escolas abriam portas. se havia greve geral. ou se os professores eram todos saneados. uma macacada que nos mantinha num estado de completo caos – no tempo da ditadura não havia este tipo de conflitos. os reitores eram respeitadíssimos e a única autoridade dentro das escolas. e se houvesse necessidade de uma intervenção mais pujante. a PIDE resolvia o problema rapidamente. era tudo enjaulado – a única crise académica tinha acontecido em coimbra em 1969. um derivado do maio de 68 em frança. e apesar da convulsão social. salazar resolveu a crise à bastonada e mais umas quantas prisõeslembro-me de os militares entrarem no bar da escola. a confusão instalou-se. de um lado as forças da direita. do outro as da esquerda radical. todos tentavam fugir para algum lado. o problema é que só havia uma porta de saída. o remédio foi saltar da janela para a rua [stª margarida]. felizmente era um primeiro andar e tudo não passou de um susto – nesse ano quase não tivemos aulas. e as que tivemos foram uma bandalheira completa. os professores em pânico optaram pelo facilitismo. a bola de neve acumulava conflitos. e dia para dia ficava maior e incontrolável. os problemas sucediam-se em cascata. começaram a surgir os primeiros casos de agressão. faltas a vermelho de mau comportamento eram às dúzias. e a matéria cada vez mais simplificada para evitar chumbos e convulsões estudantis – ninguém tinha mão nos alunos. reitoria. professores. auxiliares. todos tentavam sobreviver à incerteza política. estávamos com um pé numa outra ditadura: a comunista – as revoluções eram diárias. e o medo instalou-se não só nos liceus. mas de uma forma geral em toda a sociedade. ninguém estava certo do que poderia acontecer no dia seguinte – num desses dias de revolução louca. um grupo de alunos da minha turma lembrou-se de sanear a professora de física e química. uma parvoíce só possível em período revolucionário. tínhamos todos acabado de entrar no liceu. crianças dos doze aos treze anos. putos sem juízo. sem nenhuma capacidade de avaliar os conteúdos lecionados. ainda a precisar de biberon. e do pé para a mão. só porque a professora não permitia abandalhamentos na sua sala de aulas. resolveram saneá-la – sempre fui contra o saneamento. sempre achei as acusações de fascista e sem mestria para lecionar uma autêntica barbaridade. uma ignominianenhuma revolução. por mais força que tivesse o seu movimento. me levaria a participar numa injustiça. não me podia permitir entrar num embuste. assinar uma petição falsa sobre uma professora que o único defeito era ser realmente professora. e não permitir que um grupo de alunos arruaceiros tornassem as aulas num circo. com faltas de educação gravíssimas – apesar de brincalhão e rufia. não estava habituado ao caos. respeitar as pessoas mais velhas era algo sagrado na minha educação – fui muitas vezes posto na rua por brincadeiras. por falta de atenção. por diversas idiotices fruto da idade. mas nunca por faltar ao respeito a um professor – no fim do ano despedia-me dos professores ou com um beijo. ou com um cumprimento de mão. e todos eram unanimes em dizer que não se importavam de me ter no próximo ano. tinha era que me portar um pouco melhor. algo bastante difícil. ou mesmo impossível – os saneamentos não estavam na minha frágil convicção política. tornei-me então militante do CDS aderindo à juventude centrista. única oposição à esquerda marxista. o PS e PSD ainda não tinham implantação nos liceus – na época nem sei se aderi ao partido porque acreditava na democracia cristã ou por pena dos seus dirigentes e militantes. era um partido atormentado. as sedes assaltadas. os seus militantes insultados e perseguidos. ser-se do CDS era muito difícil. considerado um partido do antigo regime. onde estavam refugiados todos aqueles que colaboraram e ajudaram a perpetuar o estado novo durante quase meio século ser do CDS era ser fascista. capitalista. aristocrata. a alta finança de um país empobrecido – ninguém da nossa família se enquadrava neste quadro de gente endinheirada. pelo contrário. foi com muito sacrifício que conseguiram construir um património que assentava exclusivamente numa fábrica. e as fábricas só tem valor quando tem trabalhadores e laboram. e os principais obreiros dessa criação eram os meu pais – estou quase certo que optei pelo CDS por ser o partido mais desditoso. sempre tive uma inclinação para me juntar aos mais desfavorecidos. os mais fracos. ou com menos possibilidade de se defenderem – os tempos da política em portugal escaldavam. estávamos a um passo da guerra civil. os confrontos físicos entre as várias tendências sucediam-se a um ritmo cada vez mais perigoso. e a linha limite da tolerância ultrapassada várias vezes – a liberdade alcançada com o 25 de abril não se aplicava à democracia cristã – eram tempos muito conturbados e perigosos. e por via de todas essas incertezas e violência. optei por manter uma posição discreta no liceu. não deixando que ninguém percebesse qual era o meu posicionamento político. e assim evitar males maiores não só para mim. mas também para a minha família. que sendo patrões eram considerados reacionários e capitalistas – o problema é que fui tão discreto que a professora não percebeu de que lado eu estava. pelo meu silêncio deve ter pensado que era um dos cérebros do movimento para a sanear – tal como eu também se manteve em silêncio. esperou pelo fim do ano para ajustar contas com os alunos. e sem contemplações escarrapachou-me na pauta uma negativa que me tirou o ano. mesmo tirando positiva nos dois testes do terceiro período – revoltei-me. apeteceu-me fazer-lhe tudo. mas era novo e resolvi seguir em frente. o que vale um ano na vida de um jovem. nada – a professora nunca compreendeu que eu fui dos poucos a votar a sua continuidade. sempre a defendi. é verdade que nunca me expus. nunca teve em mim um aliado. mas dentro do que me era possível fui alertando os meus colegas de turma para a injustiça que estávamos a cometer. não estávamos a ser íntegros. dignos. e podíamos arranjar problemas difíceis de solucionar com a sua substituição – nunca foi saneada. tenho a certeza de que foi decisiva a minha intervenção junto dos colegas mais frágeis – foi uma grande desilusão quando as notas chegaram à pauta. o vinte cinco de abril fez-me o seu primeiro estrago – se me perguntarem o nome de algum professor do liceu não sou capaz de dizer. nenhum me aprisionou pelo seu valor. pelo seu carisma. ou pela excecionalidade do seu método de ensino. nenhum me deixou uma marca positiva para recordar. com exceção desta senhora professora: isabel manta. fiquei com a cicatriz no corpo – foram umas férias complicadas. sentia-me responsável pelo insucesso. apesar de não ter tido grandes problemas com o chumbo. os meus pais atribuíram a culpa à revolução. era verdade. mas não era toda a verdade. podia ter feito muito mais. devia ter feito muito mais – vivia cada dia com uma intensidade estonteante. sentia-me empurrado pela vida e pelas pessoas que ia conhecendo. era assim como se andasse sempre no meio da turba. comprimido. empanturrado entre as diferenças. feliz. a querer ver tudo. a querer sentir o que cada uma daquelas almas sentia. e uma vontade de atracar em todas aquelas fantásticas luzes com vida – os dias corriam velozmente sempre num estado de sofreguidão. procurava a felicidade nas coisas mais simples. que fossem fáceis de consumir. atolava-me nas oferendas da vida a cada instante. como se tudo não fosse mais que uma faísca. e em cada instante de luz. cegava-me por olhar para tanto lugar ao mesmo tempo – tudo faiscava. e todos os lugares olhavam para mim. num apelo misericordioso. enfeitiçando-me. dizendo-me: vem para aqui. é muito melhor do que aí – e lá ia eu. sem nunca me interrogar porque o fazia – o corpo recusava-se a parar. não sei se para fazer a vontade à alma. ou apenas pela inércia do movimento. vivia sem lei. sem regras. sem estratégia. o que a mente quer que aconteça. acontece. e quando não acontece é a providência de deus – deixei de controlar o destino. também não sei se era possível controlar. ia porque queria ir. porque o corpo pedia para ir. porque parado sentia-me a morrer – a multidão aumentava a cada dia. às tantas já não era uma multidão. mas o mundo todo a consumir-me.  deixei de andar. passei a flutuar nas nuvens. ia para onde me levassem – embebedei-me com o mundo. que sem saber. pouco mais era do que a minha terra com todos os amigos que amava. e do cimo dessa multidão percebi que o que via não tinha fim. nem eu tinha fim. era imortal. e a boca sôfrega falava: para a frente é que é o caminho. e os sonhos amarrados às costas em gritos de euforia. cada vez mais pesados. e as mãos vazias. vazias de quase tudo que lhe dessem sentido. arrogantes chamavam ao medo covarde. desenhavam abraços rápidos para um tempo que afinal era longínquo. nunca imaginei que a vida fosse tão longa para quem não faz o que está certo na altura certa – corria tão depressa que rapidamente deixei de perceber que viver é também comtemplar. parar. refletir. preparar o corpo e alma para o desconhecido. para dias mais distantes – só a noite me sossegava – era um mau aluno. principalmente por ser preguiçoso e entender que a vida fora dos espaços escolares era muito mais atrativa. vivia-se um novo paradigma. tudo acontecia à velocidade da luz. não havia tempo a perder com manigâncias. a liberdade estava em marcha. o liceu esperaria por mim – o meu pai não fez grande esforço. ou nenhum para me demover do abandono escolar. talvez por lhe ter prometido que entraria no regime noturno e passaria a trabalhar de dia na empresa familiar – acredito que na base desta aceitação estaria o meu feitio imprevisível. senhor de um nariz empinado. de um saber que afinal não era coisa nenhuma. era loucura juvenil. irresponsabilidade. arrogância. petulância. e tudo isto com uma falta de humildade gritante – sempre entendi que apenas eu era dono do meu destino. e lembro-me [bem] de ter alguns conflitos com o meu pai por não acatar as suas demandas. tivemos momentos complicados – farto das guerras que foi tendo com o meu crescimento. optou por me deixar seguir o meu próprio destino – finalmente consegui ter alguma acalmia na relação com o meu pai – mesmo assim estou certo que não foi de seu agrado – da minha mãe é que não foi mesmo. queria à força que eu fosse dentista. talvez porque na época havia poucos dentistas em braga. os que havia ganhavam muito dinheiro. e era muito difícil arranjar uma consulta. esperava-se meses para broquear um dente – realizou o seu desejo com um neto. o meu filho mais velho luís deu-lhe esse gosto. formou-se em dentária – no dia da sua formatura foi a minha mãe que lhe deu as pancadinhas na cartola. nunca a vi tão feliz. foi muito saboroso ver aqueles olhos cheios de luz e orgulho – a minha mãe partiu com esse desgosto. não me viu doutor. viu-me homem. homem ressuscitado. homem de família. finalmente tinha chegado ao meu mundo: o mundo dos afetos – a família é a minha única missão nesta passagem terrena – retomando a história principal. vivíamos o período em que o partido comunista tinha uma grande implementação nacional. estava em curso as ocupações selvagens das empresas e das terras. saneamentos indiscriminados. e graves conflitos sociais por todo o país – o meu pai estava em pânico. em cada esquina morava um comunista de foice e martelo. daqueles que davam injeções aos velhinhos. pronto para o sanear. para lhe roubar a menina dos seus olhos. a fábrica era a razão da sua vida – resolveu então comprar uma caçadeira e umas quantas caixas de zagalotes. mais uma pistola de 9mm. armado até aos dentes. só lhe faltava o camuflado e as pinturas de guerra na face. jurava que se algum comunista lhe entrasse na empresa o carregava de chumbo – as notícias de ocupação das empresas eram diárias. o medo estava instalado na classe patronal. por isso quis acreditar que num momento tresloucado matasse mesmo um comunista. mais tarde percebi que seria impossível. o meu pai já tinha passado os cinquenta. estava a degustar pela primeira vez a vida. tinha passado por muitas dificuldades para erguer a empresa. queria paz. não tinha vocação para a arte da guerra. o mais certo seria saírem todos aos abraços. a cantar a internacional socialista – era um homem respeitado. principalmente pelos trabalhadores. todos gostavam dele. nunca dizia não a ninguém. o sr. lopes tinha um coração maior que o corpo – tenho tantas histórias fantásticas para contar do meu pai. era ele mesmo um contador de histórias. exímio. doce. humilde. justo. o seu grande prazer era estar rodeado de amigos – um dia até poderei escrever algumas das narrativas do meu pai. o que não sei. e não sei mesmo.  é se conseguirei impregná-las com a sua magia. a alegria com que as contava. a paz com que as embelezava. e a serenidade como aceitava o que lhe tinha corrido menos bem – cada história era uma lição de vida. um exemplo. um modo de nos dizer: a vida são dois dias. vivam. sejam felizes. preocupem-se apenas com o que não pode ser comprado infelizmente só compreendi algumas dessas lições já depois de ter partido – fruto desses ensinamentos. tento evitar a todo o custo que aconteça aos meus filhos [e descendência] os erros que cometi com a minha surdez da juventude – confesso que não sou um homem sossegado pelas escolhas que fiz. apesar de sentir que a aceitação está cada vez mais perto. muita coisa aconteceu nesta minha caminhada que não aconteceria se tivesse optado por outro caminho. e isso também não gostaria de ter perdido – por isso o meu desígnio é agora escrever. e quem sabe. os meus descentes compreendam mais rapidamente o que são. e porque o são – há uma fio condutor que atravessa todas as gerações de uma linhagem. e mais uma vez. se tivermos a cabeça no lugar. percebemos rapidamente que somos o que somos. não por obra do acaso. mas por obra de pertencermos a uma família ligada a esse fio. acredito que vai muito para além do DNA – esse fio que nos liga de geração em geração. através dos séculos. por mais que se tente não é possível quebrá-lo. diria mesmo que é feito da liga mais resistente do universo: linhagem é essa resistência invisível que faz de nós o que somos. com defeitos e virtudes. altos ou baixos. bons ou maus. sorridentes ou sérios. com os olhos a brilhar ou apagados. com a vontade infinita de nunca vergar às adversidades. ou render-se à primeira dificuldade – nós lutamos. o meu pai lutou. eu lutei. os meus filhos à sua maneira irão lutar também – a glória está na forma como nunca desistimos de nada. e nunca no que conseguimos alcançar – talvez os meus filhos comecem agora a compreender melhor porque fui um pai exigentíssimo com a escola. com a sua formação para homens adultos. como diria a minha cunhada maria josé. são o meu sol. vê-los brilhar é saber que não falhei – um homem precisa sempre da ajuda do plural. quando se é novo é muito difícil ver e sentir o plural. fazer o certo ainda se torna mais complicado quando a sociedade valoriza sempre o que é mais brilhante e vistoso. mas o meu plural é a família. não sei onde começou. e também não sei quando acabará. mas sei. neste incrível momento. que os meus filhos podem descobrir mais rapidamente o porquê de serem o que são. e eu adoro aquilo que eles são – às vezes interrogo-me o que é um miúdo inteligente. pois bem. um miúdo inteligente é aquele que faz o que está certo no momento certo – eu não fiza juventude está cheia de armadilhas. saber priorizar o que realmente é importante é sinónimo de inteligência. na juventude diria que é talvez inteligência emocional – é essa inteligência que nos momentos mais complicados da vida nos leva a optar por fazer o que é mais correto – descobrir o caminho certo só está ao alcance dos mais iluminadosusei tardiamente essa inteligência emocional. mas felizmente a família deu-me um rumo. optei por ela. fazendo emergir dos destroços a capacidade de superação e perdão. não de esquecer o que me aconteceu de menos bom. mas projetando-me rapidamente para novos desafios. novos recomeços. aceitando o erro ou o destino como um processo de aprendizagem. um ensinamento para me tornar melhor e mais justo – agora que a idade já começa a colorir os dias com as cores outonais. resolvi aprender a queixar-me o menos possível. em boa verdade sou um afortunado. tudo o que é realmente importante tenho comigo. ao meu lado. ou na memória – assim foi. despedi-me do liceu aos dezasseis anos prometendo a mim mesmo que voltaria mais tarde. com outra postura para os livros – e fui para o mundo do trabalho. algo que nunca tinha experienciado. em boa verdade era o menino da mamã. não fazia coisa nenhuma. o que necessitava a lurdes providenciava. nunca me faltou absolutamente nada. bem tratado. bem alimentado. bem vestido. bem calçado. e sempre com dinheiro no bolso. pela semanada que o meu pai me dava todos os santos domingos. que era tanto como alguns amigos recebiam num mês. alguns num ano – agora imaginem que o meu primeiro dia de trabalho é nada mais. nada menos. que o 1º de maio. dia do trabalhador e feriado nacional – pensei logo com os meus botões. isto vai correr bem. ainda não fiz nada e já tenho um dia ganho – era um dia de multidões. o PCP e a intersindical. com grande implantação e capacidade de mobilização. juntava milhares de trabalhadores em todas as cidades do país – apesar de ainda não ter tido um único dia de trabalho. na verdade. e oficialmente. era um trabalhador. e por via desse novo estatuto. não podia faltar à comemoração do meu dia. era importante estar no meio da minha classe. apesar de ser filho de patrão – ao meu segundo dia de profissional de moda. chego já cansado à nova labuta. participar nas manifestações do dia anterior deixou-me sem energia. mas motivação não me faltava



brevemente 2º parte - segundo dia de trabalho