.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

09/04/2021

eu. o meu pai. e o meu primeiro dia de trabalho - I










 

último dia de liceu


corria o ano de 1979 – se tinham vencido os primeiros cinco anos da revolução de abril. quando também eu tive a absoluta necessidade de fazer uma revolução na minha vida – já no liceu d. maria II. antigo liceu feminino. e a meio do segundo período de aulas do 9º ano. resolvi enfrentar o meu pai e dizer-lhe que queria deixar de estudar – são as duas únicas bofetadas que me faltaram na vida. e o mais caricato. as que ainda hoje sinto falta – apesar de raramente pegar num livro para estudar. talvez algumas horas no fim do terceiro período. altura do tudo ou nada. onde em esforço procurava o dez para passar com duas negativas: inglês e matemática – para estes cadeirões não havia possibilidade de recuperação para quem tinha mandriado o ano todo – não creio que tivesse qualquer tipo de dificuldade em assimilar os conteúdos lecionados. o meu único problema era déficit de atenção. aliado a um estado de alegria hiperativo. queria estar sempre onde não estava. aprisionado a uma vontade devoradora de saber tudo do mundo. as paredes sufocavam-me – havia tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo. o país estava em roda livre. todos os dias eram novidade: manifestações. debates políticos. governos a cair. bombas a explodir. sedes de partidos a arder. confrontos. perseguições políticas. militares na rua. manifestações de apoio ao MFA [movimento das forças armadas]. saneamentos nas empresas. nas universidades. nas escolas. nas fábricas. novos partidos políticos. não havia limites para a distração de um jovem faminto de vida – as cidades encheram-se de novos barulhos. as ruas abriram-se à liberdade. ninguém descansava. o ritmo era alucinante. as pessoas transbordavam alegria. rodopiavam continuamente. sempre com os olhos no ar. como se procurassem sempre mais alguma coisa. acredito até que algumas voavam. tal era leveza como se gastava os dias – emergia do seu interior um estado de alma de bem-estar. uma euforia descontrolada. boa. o paraíso não podia ser mais belo – havia. não só para mim. mas para todos os portugueses. um mundo novo à nossa espera: havia futuro. esperança. as mensagens dos novos donos da política ofereciam credibilidade. ao contrário dos de hoje. o futuro estava certo. haveria paz. pão. habitação. igualdade. fraternidade. verdade. e as paredes. outrora caiadas de branco. nasciam pelas manhãs pintadas de movimento revolucionário: fascismo nunca mais. o povo é quem mais ordena. 25 de abril sempre. o povo unido jamais será vencido. a terra a quem a trabalha. e a grândola vila morena do zeca afonso a tocar interruptamente. como se as chaimites se mantivessem em revolução desde aquela madrugada de abril – o cravo vermelho na ponta da G3 disparava para um novo mundo. finalmente uma sociedade mais justa e fraterna havia uma luz de bem-aventurança para os portugueses – para mim. adolescente que nada sabia de ditaduras.  a única que conhecia era a do meu pai. o 25 de abril foi como se me dessem um lego gigante. montava e desmontava os dias. sempre com resultados surpreendentes abril ofereceu-me o que já tinha dentro de mim: poucas regras e mais liberdade – talvez a melhor comparação seja o que aconteceu ao país depois de ganhar o campeonato europeu de futebol. imaginem essa explosão de alegria todos os dias. durante pelo menos os primeiros seis anos da democracia – foi fantástico – a juntar a esta loucura coletiva. o fim da guerra do ultramar. o que permitiu o meu irmão regressar mais cedo a casa. estava deslocado no pior cenário de guerra: guiné-bissau – com o fim da guerra em angola. moçambique. e guiné. chega também a independência para os seus povos. o que provoca o regresso de milhares de retornados a portugal continental – estes portugueses ultramarinos regressavam à terra dos seus pais. muitos deles já tinham nascido no império africano. e poucas ou nenhumas raízes os ligava à nossa continentalidade cinzenta destroçados por uma descolonização caótica. chegaram a portugal só com a roupa no corpo. sem recursos financeiros. sem habitação. sem trabalho. sem nada. alguns sem esperança de um recomeço pela idade avançada – a única ferramenta para sobreviver que traziam consigo era um dinamismo excecional. e um sentido de liberdade que nós desconhecíamos. com o seu empreendedorismo revolucionaram rapidamente toda a estrutura do mundo do trabalho. social e económico. foram a grande alavancagem para um novo país. eram diferentes. gente sem preconceitos e com a mente aberta ao mundo – o país do fado. fátima e futebol mudou radicalmente para melhor. foi restabelecido o direito à greve. às manifestações. vários sindicatos foram formados. acabou a censura. passamos a ter uma RTP livre. jornais a escrever a verdade. os cinemas começaram a passar filmes interditos. os bares começaram a estar abertos até de madrugada. apareceram as casas de jogos. as mulheres deixaram cair as roupas pretas e embelezaram-se com cores e pinturas. as rotinas dos portugueses alteraram-se radicalmente – com a revolução política chegou também a revolução dos costumes. e a revolução sexual dos jovens – lá ia rolando pela vida estudantil conforme queria e entendia. as notas andavam entre o quase dez e o dez e um pouquinho. mas sempre com um sorriso nos lábios e mil coisas por fazer – reprovei uma única vez. a tragédia aconteceu no primeiro ano da revolução – confesso que injustamente. mesmo muito injusto – foi um ano muito difícil. com imensas greves estudantis. piquetes grevistas proibiam a entrada dos alunos no estabelecimento de ensino. liceu sá de miranda. as reuniões gerais de alunos [RGA] eram consecutivas e violentíssimas. o CDS e o MRPP confrontavam-se em grandes cenas de pancadaria – vivia-se um clima de muita instabilidade. o país estava em convulsão. a escola não era exceção. este jardim plantado à beira mar estava a ferro e fogo – para pôr cobro a estes confrontos a reitoria [comissão de gestão] via-se obrigada a pedir a intervenção musculada da COPCON [comando militar criado pelo movimento das forças armadas]. invadia o liceu aparatosamente em carros militares e emergiam de G3 por onde lhes desse na telha – era um temor permanente. ninguém podia garantir segurança a ninguém. havia no meio escolar medo e indefinição persistentenão se sabia se as escolas abriam portas. se havia greve geral. ou se os professores eram todos saneados. uma macacada que nos mantinha num estado de completo caos – no tempo da ditadura não havia este tipo de conflitos. os reitores eram respeitadíssimos e a única autoridade dentro das escolas. e se houvesse necessidade de uma intervenção mais pujante. a PIDE resolvia o problema rapidamente. era tudo enjaulado – a única crise académica tinha acontecido em coimbra em 1969. um derivado do maio de 68 em frança. e apesar da convulsão social. salazar resolveu a crise à bastonada e mais umas quantas prisõeslembro-me de os militares entrarem no bar da escola. a confusão instalou-se. de um lado as forças da direita. do outro as da esquerda radical. todos tentavam fugir para algum lado. o problema é que só havia uma porta de saída. o remédio foi saltar da janela para a rua [stª margarida]. felizmente era um primeiro andar e tudo não passou de um susto – nesse ano quase não tivemos aulas. e as que tivemos foram uma bandalheira completa. os professores em pânico optaram pelo facilitismo. a bola de neve acumulava conflitos. e dia para dia ficava maior e incontrolável. os problemas sucediam-se em cascata. começaram a surgir os primeiros casos de agressão. faltas a vermelho de mau comportamento eram às dúzias. e a matéria cada vez mais simplificada para evitar chumbos e convulsões estudantis – ninguém tinha mão nos alunos. reitoria. professores. auxiliares. todos tentavam sobreviver à incerteza política. estávamos com um pé numa outra ditadura: a comunista – as revoluções eram diárias. e o medo instalou-se não só nos liceus. mas de uma forma geral em toda a sociedade. ninguém estava certo do que poderia acontecer no dia seguinte – num desses dias de revolução louca. um grupo de alunos da minha turma lembrou-se de sanear a professora de física e química. uma parvoíce só possível em período revolucionário. tínhamos todos acabado de entrar no liceu. crianças dos doze aos treze anos. putos sem juízo. sem nenhuma capacidade de avaliar os conteúdos lecionados. ainda a precisar de biberon. e do pé para a mão. só porque a professora não permitia abandalhamentos na sua sala de aulas. resolveram saneá-la – sempre fui contra o saneamento. sempre achei as acusações de fascista e sem mestria para lecionar uma autêntica barbaridade. uma ignominianenhuma revolução. por mais força que tivesse o seu movimento. me levaria a participar numa injustiça. não me podia permitir entrar num embuste. assinar uma petição falsa sobre uma professora que o único defeito era ser realmente professora. e não permitir que um grupo de alunos arruaceiros tornassem as aulas num circo. com faltas de educação gravíssimas – apesar de brincalhão e rufia. não estava habituado ao caos. respeitar as pessoas mais velhas era algo sagrado na minha educação – fui muitas vezes posto na rua por brincadeiras. por falta de atenção. por diversas idiotices fruto da idade. mas nunca por faltar ao respeito a um professor – no fim do ano despedia-me dos professores ou com um beijo. ou com um cumprimento de mão. e todos eram unanimes em dizer que não se importavam de me ter no próximo ano. tinha era que me portar um pouco melhor. algo bastante difícil. ou mesmo impossível – os saneamentos não estavam na minha frágil convicção política. tornei-me então militante do CDS aderindo à juventude centrista. única oposição à esquerda marxista. o PS e PSD ainda não tinham implantação nos liceus – na época nem sei se aderi ao partido porque acreditava na democracia cristã ou por pena dos seus dirigentes e militantes. era um partido atormentado. as sedes assaltadas. os seus militantes insultados e perseguidos. ser-se do CDS era muito difícil. considerado um partido do antigo regime. onde estavam refugiados todos aqueles que colaboraram e ajudaram a perpetuar o estado novo durante quase meio século ser do CDS era ser fascista. capitalista. aristocrata. a alta finança de um país empobrecido – ninguém da nossa família se enquadrava neste quadro de gente endinheirada. pelo contrário. foi com muito sacrifício que conseguiram construir um património que assentava exclusivamente numa fábrica. e as fábricas só tem valor quando tem trabalhadores e laboram. e os principais obreiros dessa criação eram os meu pais – estou quase certo que optei pelo CDS por ser o partido mais desditoso. sempre tive uma inclinação para me juntar aos mais desfavorecidos. os mais fracos. ou com menos possibilidade de se defenderem – os tempos da política em portugal escaldavam. estávamos a um passo da guerra civil. os confrontos físicos entre as várias tendências sucediam-se a um ritmo cada vez mais perigoso. e a linha limite da tolerância ultrapassada várias vezes – a liberdade alcançada com o 25 de abril não se aplicava à democracia cristã – eram tempos muito conturbados e perigosos. e por via de todas essas incertezas e violência. optei por manter uma posição discreta no liceu. não deixando que ninguém percebesse qual era o meu posicionamento político. e assim evitar males maiores não só para mim. mas também para a minha família. que sendo patrões eram considerados reacionários e capitalistas – o problema é que fui tão discreto que a professora não percebeu de que lado eu estava. pelo meu silêncio deve ter pensado que era um dos cérebros do movimento para a sanear – tal como eu também se manteve em silêncio. esperou pelo fim do ano para ajustar contas com os alunos. e sem contemplações escarrapachou-me na pauta uma negativa que me tirou o ano. mesmo tirando positiva nos dois testes do terceiro período – revoltei-me. apeteceu-me fazer-lhe tudo. mas era novo e resolvi seguir em frente. o que vale um ano na vida de um jovem. nada – a professora nunca compreendeu que eu fui dos poucos a votar a sua continuidade. sempre a defendi. é verdade que nunca me expus. nunca teve em mim um aliado. mas dentro do que me era possível fui alertando os meus colegas de turma para a injustiça que estávamos a cometer. não estávamos a ser íntegros. dignos. e podíamos arranjar problemas difíceis de solucionar com a sua substituição – nunca foi saneada. tenho a certeza de que foi decisiva a minha intervenção junto dos colegas mais frágeis – foi uma grande desilusão quando as notas chegaram à pauta. o vinte cinco de abril fez-me o seu primeiro estrago – se me perguntarem o nome de algum professor do liceu não sou capaz de dizer. nenhum me aprisionou pelo seu valor. pelo seu carisma. ou pela excecionalidade do seu método de ensino. nenhum me deixou uma marca positiva para recordar. com exceção desta senhora professora: isabel manta. fiquei com a cicatriz no corpo – foram umas férias complicadas. sentia-me responsável pelo insucesso. apesar de não ter tido grandes problemas com o chumbo. os meus pais atribuíram a culpa à revolução. era verdade. mas não era toda a verdade. podia ter feito muito mais. devia ter feito muito mais – vivia cada dia com uma intensidade estonteante. sentia-me empurrado pela vida e pelas pessoas que ia conhecendo. era assim como se andasse sempre no meio da turba. comprimido. empanturrado entre as diferenças. feliz. a querer ver tudo. a querer sentir o que cada uma daquelas almas sentia. e uma vontade de atracar em todas aquelas fantásticas luzes com vida – os dias corriam velozmente sempre num estado de sofreguidão. procurava a felicidade nas coisas mais simples. que fossem fáceis de consumir. atolava-me nas oferendas da vida a cada instante. como se tudo não fosse mais que uma faísca. e em cada instante de luz. cegava-me por olhar para tanto lugar ao mesmo tempo – tudo faiscava. e todos os lugares olhavam para mim. num apelo misericordioso. enfeitiçando-me. dizendo-me: vem para aqui. é muito melhor do que aí – e lá ia eu. sem nunca me interrogar porque o fazia – o corpo recusava-se a parar. não sei se para fazer a vontade à alma. ou apenas pela inércia do movimento. vivia sem lei. sem regras. sem estratégia. o que a mente quer que aconteça. acontece. e quando não acontece é a providência de deus – deixei de controlar o destino. também não sei se era possível controlar. ia porque queria ir. porque o corpo pedia para ir. porque parado sentia-me a morrer – a multidão aumentava a cada dia. às tantas já não era uma multidão. mas o mundo todo a consumir-me.  deixei de andar. passei a flutuar nas nuvens. ia para onde me levassem – embebedei-me com o mundo. que sem saber. pouco mais era do que a minha terra com todos os amigos que amava. e do cimo dessa multidão percebi que o que via não tinha fim. nem eu tinha fim. era imortal. e a boca sôfrega falava: para a frente é que é o caminho. e os sonhos amarrados às costas em gritos de euforia. cada vez mais pesados. e as mãos vazias. vazias de quase tudo que lhe dessem sentido. arrogantes chamavam ao medo covarde. desenhavam abraços rápidos para um tempo que afinal era longínquo. nunca imaginei que a vida fosse tão longa para quem não faz o que está certo na altura certa – corria tão depressa que rapidamente deixei de perceber que viver é também comtemplar. parar. refletir. preparar o corpo e alma para o desconhecido. para dias mais distantes – só a noite me sossegava – era um mau aluno. principalmente por ser preguiçoso e entender que a vida fora dos espaços escolares era muito mais atrativa. vivia-se um novo paradigma. tudo acontecia à velocidade da luz. não havia tempo a perder com manigâncias. a liberdade estava em marcha. o liceu esperaria por mim – o meu pai não fez grande esforço. ou nenhum para me demover do abandono escolar. talvez por lhe ter prometido que entraria no regime noturno e passaria a trabalhar de dia na empresa familiar – acredito que na base desta aceitação estaria o meu feitio imprevisível. senhor de um nariz empinado. de um saber que afinal não era coisa nenhuma. era loucura juvenil. irresponsabilidade. arrogância. petulância. e tudo isto com uma falta de humildade gritante – sempre entendi que apenas eu era dono do meu destino. e lembro-me [bem] de ter alguns conflitos com o meu pai por não acatar as suas demandas. tivemos momentos complicados – farto das guerras que foi tendo com o meu crescimento. optou por me deixar seguir o meu próprio destino – finalmente consegui ter alguma acalmia na relação com o meu pai – mesmo assim estou certo que não foi de seu agrado – da minha mãe é que não foi mesmo. queria à força que eu fosse dentista. talvez porque na época havia poucos dentistas em braga. os que havia ganhavam muito dinheiro. e era muito difícil arranjar uma consulta. esperava-se meses para broquear um dente – realizou o seu desejo com um neto. o meu filho mais velho luís deu-lhe esse gosto. formou-se em dentária – no dia da sua formatura foi a minha mãe que lhe deu as pancadinhas na cartola. nunca a vi tão feliz. foi muito saboroso ver aqueles olhos cheios de luz e orgulho – a minha mãe partiu com esse desgosto. não me viu doutor. viu-me homem. homem ressuscitado. homem de família. finalmente tinha chegado ao meu mundo: o mundo dos afetos – a família é a minha única missão nesta passagem terrena – retomando a história principal. vivíamos o período em que o partido comunista tinha uma grande implementação nacional. estava em curso as ocupações selvagens das empresas e das terras. saneamentos indiscriminados. e graves conflitos sociais por todo o país – o meu pai estava em pânico. em cada esquina morava um comunista de foice e martelo. daqueles que davam injeções aos velhinhos. pronto para o sanear. para lhe roubar a menina dos seus olhos. a fábrica era a razão da sua vida – resolveu então comprar uma caçadeira e umas quantas caixas de zagalotes. mais uma pistola de 9mm. armado até aos dentes. só lhe faltava o camuflado e as pinturas de guerra na face. jurava que se algum comunista lhe entrasse na empresa o carregava de chumbo – as notícias de ocupação das empresas eram diárias. o medo estava instalado na classe patronal. por isso quis acreditar que num momento tresloucado matasse mesmo um comunista. mais tarde percebi que seria impossível. o meu pai já tinha passado os cinquenta. estava a degustar pela primeira vez a vida. tinha passado por muitas dificuldades para erguer a empresa. queria paz. não tinha vocação para a arte da guerra. o mais certo seria saírem todos aos abraços. a cantar a internacional socialista – era um homem respeitado. principalmente pelos trabalhadores. todos gostavam dele. nunca dizia não a ninguém. o sr. lopes tinha um coração maior que o corpo – tenho tantas histórias fantásticas para contar do meu pai. era ele mesmo um contador de histórias. exímio. doce. humilde. justo. o seu grande prazer era estar rodeado de amigos – um dia até poderei escrever algumas das narrativas do meu pai. o que não sei. e não sei mesmo.  é se conseguirei impregná-las com a sua magia. a alegria com que as contava. a paz com que as embelezava. e a serenidade como aceitava o que lhe tinha corrido menos bem – cada história era uma lição de vida. um exemplo. um modo de nos dizer: a vida são dois dias. vivam. sejam felizes. preocupem-se apenas com o que não pode ser comprado infelizmente só compreendi algumas dessas lições já depois de ter partido – fruto desses ensinamentos. tento evitar a todo o custo que aconteça aos meus filhos [e descendência] os erros que cometi com a minha surdez da juventude – confesso que não sou um homem sossegado pelas escolhas que fiz. apesar de sentir que a aceitação está cada vez mais perto. muita coisa aconteceu nesta minha caminhada que não aconteceria se tivesse optado por outro caminho. e isso também não gostaria de ter perdido – por isso o meu desígnio é agora escrever. e quem sabe. os meus descentes compreendam mais rapidamente o que são. e porque o são – há uma fio condutor que atravessa todas as gerações de uma linhagem. e mais uma vez. se tivermos a cabeça no lugar. percebemos rapidamente que somos o que somos. não por obra do acaso. mas por obra de pertencermos a uma família ligada a esse fio. acredito que vai muito para além do DNA – esse fio que nos liga de geração em geração. através dos séculos. por mais que se tente não é possível quebrá-lo. diria mesmo que é feito da liga mais resistente do universo: linhagem é essa resistência invisível que faz de nós o que somos. com defeitos e virtudes. altos ou baixos. bons ou maus. sorridentes ou sérios. com os olhos a brilhar ou apagados. com a vontade infinita de nunca vergar às adversidades. ou render-se à primeira dificuldade – nós lutamos. o meu pai lutou. eu lutei. os meus filhos à sua maneira irão lutar também – a glória está na forma como nunca desistimos de nada. e nunca no que conseguimos alcançar – talvez os meus filhos comecem agora a compreender melhor porque fui um pai exigentíssimo com a escola. com a sua formação para homens adultos. como diria a minha cunhada maria josé. são o meu sol. vê-los brilhar é saber que não falhei – um homem precisa sempre da ajuda do plural. quando se é novo é muito difícil ver e sentir o plural. fazer o certo ainda se torna mais complicado quando a sociedade valoriza sempre o que é mais brilhante e vistoso. mas o meu plural é a família. não sei onde começou. e também não sei quando acabará. mas sei. neste incrível momento. que os meus filhos podem descobrir mais rapidamente o porquê de serem o que são. e eu adoro aquilo que eles são – às vezes interrogo-me o que é um miúdo inteligente. pois bem. um miúdo inteligente é aquele que faz o que está certo no momento certo – eu não fiza juventude está cheia de armadilhas. saber priorizar o que realmente é importante é sinónimo de inteligência. na juventude diria que é talvez inteligência emocional – é essa inteligência que nos momentos mais complicados da vida nos leva a optar por fazer o que é mais correto – descobrir o caminho certo só está ao alcance dos mais iluminadosusei tardiamente essa inteligência emocional. mas felizmente a família deu-me um rumo. optei por ela. fazendo emergir dos destroços a capacidade de superação e perdão. não de esquecer o que me aconteceu de menos bom. mas projetando-me rapidamente para novos desafios. novos recomeços. aceitando o erro ou o destino como um processo de aprendizagem. um ensinamento para me tornar melhor e mais justo – agora que a idade já começa a colorir os dias com as cores outonais. resolvi aprender a queixar-me o menos possível. em boa verdade sou um afortunado. tudo o que é realmente importante tenho comigo. ao meu lado. ou na memória – assim foi. despedi-me do liceu aos dezasseis anos prometendo a mim mesmo que voltaria mais tarde. com outra postura para os livros – e fui para o mundo do trabalho. algo que nunca tinha experienciado. em boa verdade era o menino da mamã. não fazia coisa nenhuma. o que necessitava a lurdes providenciava. nunca me faltou absolutamente nada. bem tratado. bem alimentado. bem vestido. bem calçado. e sempre com dinheiro no bolso. pela semanada que o meu pai me dava todos os santos domingos. que era tanto como alguns amigos recebiam num mês. alguns num ano – agora imaginem que o meu primeiro dia de trabalho é nada mais. nada menos. que o 1º de maio. dia do trabalhador e feriado nacional – pensei logo com os meus botões. isto vai correr bem. ainda não fiz nada e já tenho um dia ganho – era um dia de multidões. o PCP e a intersindical. com grande implantação e capacidade de mobilização. juntava milhares de trabalhadores em todas as cidades do país – apesar de ainda não ter tido um único dia de trabalho. na verdade. e oficialmente. era um trabalhador. e por via desse novo estatuto. não podia faltar à comemoração do meu dia. era importante estar no meio da minha classe. apesar de ser filho de patrão – ao meu segundo dia de profissional de moda. chego já cansado à nova labuta. participar nas manifestações do dia anterior deixou-me sem energia. mas motivação não me faltava



brevemente 2º parte - segundo dia de trabalho

 


 

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