1. último dia de liceu
corria o
ano de 1979 – já se tinham vencido os primeiros cinco anos da revolução de
abril. quando também eu senti a necessidade urgente de fazer uma revolução na
minha vida – já no liceu d. maria II. o antigo liceu feminino. e a meio do
segundo período de aulas do 9º ano. resolvi enfrentar o meu pai e dizer-lhe que
queria deixar de estudar – são as duas únicas bofetadas que me faltaram na
vida. e o mais caricato. aquelas de que ainda hoje sinto falta – apesar de
raramente pegar num livro para estudar. talvez algumas horas no fim do terceiro
período. altura do tudo ou nada. onde em esforço procurava o dez para passar
com duas negativas: inglês e matemática – para estes cadeirões não havia salvação
para quem preguiçou o ano inteiro – não creio que tivesse qualquer tipo de
dificuldade em assimilar os conteúdos lecionados. o meu único problema era déficit de atenção. aliado a um
estado de alegria hiperativo. queria estar sempre onde não estava. dominado por
uma vontade devoradora de saber tudo do mundo. as paredes sufocavam-me – havia
tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo. o país estava em roda livre. todos os
dias eram novidade: manifestações. debates políticos. governos a cair. bombas a
explodir. sedes de partidos incendiadas. confrontos. perseguições políticas.
militares na rua. manifestações de apoio ao MFA [movimento das forças armadas].
saneamentos nas empresas. nas universidades. nas escolas. nas fábricas. novos
partidos políticos. não havia limites para a distração de um jovem faminto de
vida – as cidades encheram-se de novos barulhos. as ruas abriram-se à
liberdade. ninguém descansava. o ritmo era alucinante. as pessoas transbordavam
alegria. rodopiavam sem parar. sempre com os olhos no ar. como se procurassem algo
que ainda faltava. acredito até que algumas voavam. tal era a leveza com que se
viviam os dias – emergia do seu interior um estado de alma de bem-estar. uma
euforia descontrolada. boa. o paraíso não podia ser mais belo – havia. não só
para mim. mas para todos os portugueses. um mundo novo à nossa espera: havia
futuro. esperança. as mensagens dos novos donos da política ofereciam
credibilidade. ao contrário dos de hoje. o futuro parecia certo. haveria paz.
pão. habitação. igualdade. fraternidade. justiça. e as paredes. outrora caiadas
de branco. nasciam pelas manhãs pintadas de movimento revolucionário: fascismo
nunca mais. o povo é quem mais ordena. 25 de abril sempre. o povo unido jamais
será vencido. a terra a quem a trabalha. e a grândola sonhos para um novo
mundo. e vila morena do zeca afonso a tocar interruptamente. como se as
chaimites ainda rodassem em revolução
desde aquela madrugada de abril – o cravo vermelho na ponta da G3 disparava
para um novo mundo. finalmente uma sociedade mais justa e fraterna – havia uma
luz de bem-aventurança para os portugueses – para mim. adolescente que nada
sabia sobre ditaduras. a única que conhecia era a do meu pai. o 25 de abril foi
como se me dessem um lego gigante. montava e desmontava os dias. e tudo acabava
com novas surpresas – abril ampliou o que já existia em mim: menos regras e
mais liberdade – talvez a melhor comparação seja o que aconteceu ao país depois
de ganhar o campeonato europeu de futebol. imaginem essa explosão de alegria a
repetida todos os dias. durante pelo menos os primeiros seis anos da democracia
– foi fantástico – a juntar a esta loucura coletiva. o fim da guerra do
ultramar. o que permitiu que o meu irmão regressasse mais cedo a casa. estava
deslocado no pior cenário de guerra: guiné-bissau – com o fim da guerra em
angola. moçambique. e guiné. chega também a independência para os seus povos. o
que provoca o regresso de milhares de retornados – estes portugueses ultramarinos
regressavam à terra dos seus pais. muitos mais africanos. e poucas ou nenhumas
raízes os ligavam ao território de chegada – empurrados por uma descolonização
caótica. chegaram a portugal só com a roupa no corpo. sem recursos financeiros.
sem habitação. sem trabalho. com apenas a vontade de recomeçar. alguns sem
esperança de um recomeço pela idade avançada – a única ferramenta para
sobreviver que traziam consigo era um dinamismo excecional. e um sentido de
liberdade que nós desconhecíamos. com o seu empreendedorismo revolucionaram
rapidamente toda a estrutura do mundo do trabalho. social e económico. foram a
grande impulso para um novo país. eram diferentes. gente sem preconceitos e com
a mente aberta ao mundo – o país do fado. fátima e futebol transformou-se radicalmente
para melhor. foi restabelecido o direito à greve. às manifestações. vários
sindicatos foram formados. acabou a censura. passamos a ter uma RTP livre.
jornais a publicar livremente a verdade. os cinemas começaram a passar filmes
interditos. os bares começaram a estar abertos até de madrugada.
apareceram as salas de jogos. as mulheres deixaram cair as roupas pretas e
embelezaram-se com cores e pinturas. as rotinas dos portugueses alteraram-se
radicalmente – a revolução política chegou. com ela a dos costumes. e também a
sexual dos jovens – lá ia rolando pela vida estudantil conforme queria e
entendia. as notas andavam entre o quase dez e o dez e qualquer coisa. mas
sempre com um sorriso nos lábios e mil coisas por fazer – reprovei uma única
vez. a tragédia aconteceu no primeiro ano de liberdade – confesso que foi particularmente
injusto. mesmo muito injusto – foi um ano muito difícil. com imensas greves
estudantis. piquetes impediam a entrada dos alunos no estabelecimento de
ensino. liceu sá de miranda. as reuniões gerais de alunos [RGA] eram
consecutivas e extremamente violentas. o CDS e o MRPP confrontavam-se em
grandes cenas de pancadaria – vivia-se um clima de muita instabilidade. o país
estava em convulsão. a escola não era exceção. este jardim plantado à beira-mar
estava a ferro e fogo – para pôr cobro a estes confrontos a reitoria [comissão
de gestão] via-se obrigada a pedir a intervenção musculada da COPCON [comando
militar criado pelo movimento das forças armadas]. invadiam o liceu
aparatosamente em carros militares e emergiam de G3 por onde lhes apetecesse – era um temor permanente. ninguém podia
garantir segurança alguma. havia no meio escolar medo e indefinição persistente
– não se sabia se as escolas abririam portas. se havia greve geral. ou se os
professores eram todos saneados. Uma situação que nos mantinha num estado de
completo caos – no tempo da ditadura não
havia este tipo de conflitos. os reitores eram respeitadíssimos e a única
autoridade dentro das escolas. e se houvesse necessidade de uma intervenção
mais enérgica. a PIDE resolvia o problema rapidamente. era tudo enjaulado – a
única crise académica tinha acontecido em coimbra em 1969. um derivado do maio
de 68 em frança. e apesar da convulsão social. salazar resolveu a crise à
bastonada e mais umas quantas prisões – lembro-me de os militares entrarem no
bar da escola. a confusão instalou-se. de um lado as forças da direita. do
outro as da esquerda radical. todos tentavam fugir para algum lado. o problema
é que só havia uma porta de saída. o remédio foi saltar da janela para a rua [stª margarida].
felizmente era um primeiro andar e tudo não passou de um susto – nesse ano
quase não tivemos aulas. e as que tivemos foram uma total bandalheira. os
professores em pânico optaram pelo facilitismo. a bola de neve acumulava
conflitos. e dia após dia ficava maior e incontrolável. os problemas
sucediam-se em cascata. começaram a surgir os primeiros casos de agressão.
faltas a vermelho de mau comportamento eram às dúzias. e a matéria cada vez
mais simplificada para evitar chumbos e convulsões estudantis – ninguém tinha
mão nos alunos. reitoria. professores. auxiliares. todos tentavam sobreviver à
incerteza política. estávamos com um pé na democracia. outro na ditadura
comunista – as revoluções eram diárias. e o medo instalou-se não só nos liceus.
mas de uma forma geral em toda a sociedade. ninguém estava certo do que poderia
acontecer no dia seguinte – num desses dias de liberdade total louca. um grupo
de alunos da minha turma decidiu sanear a professora de física e química. uma
parvoíce só possível em período revolucionário. tínhamos todos acabado de
entrar no liceu. crianças dos doze aos treze anos. putos sem juízo. sem nenhuma
capacidade de avaliar os conteúdos lecionados. ainda a precisar de biberon. e
do pé para a mão. só porque a professora não permitia abandalhamentos na sua
sala de aulas. resolveram saneá-la – sempre fui contra o saneamento. sempre
achei as acusações de fascista e sem mestria para lecionar uma autêntica
barbaridade. uma ignominia – nenhuma revolução. por mais força que tivesse o
seu movimento. me levaria a participar numa injustiça. não me podia permitir
entrar num embuste. assinar uma petição falsa sobre uma professora que o único
defeito era ser realmente professora. e não permitir que um grupo de alunos
arruaceiros tornassem as aulas num circo. com faltas de educação gravíssimas –
apesar de brincalhão e rufia. respeitar as pessoas mais velhas era algo sagrado
na minha educação – fui muitas vezes posto na rua por brincadeiras. por falta
de atenção. por diversas idiotices fruto da idade. mas nunca por faltar ao
respeito a um professor – no fim do ano despedia-me dos professores ou com um
beijo. ou com um cumprimento de mão. e todos eram unanimes em dizer que não se
importavam de me ter no próximo ano. tinha era que me portar um pouco melhor.
algo bastante difícil. ou mesmo impossível – os saneamentos não estavam na
minha frágil convicção política. tornei-me então militante do CDS aderindo à
juventude centrista. única oposição à esquerda marxista. o PS e PSD ainda não
tinham implantação nos liceus – na época. nem sei se aderi ao CDS por acreditar
na democracia cristã ou por pena dos seus dirigentes e militantes. era um
partido atormentado. as sedes assaltadas. os seus militantes insultados e
perseguidos. ser-se do CDS era um ato de resistência silenciosa. considerado um
partido do antigo regime. onde estavam refugiados todos aqueles que colaboraram
e ajudaram a perpetuar o estado novo durante quase meio século – ser do CDS era
ser fascista. capitalista. aristocrata. a alta finança de um país empobrecido –
ninguém da nossa família se enquadrava neste quadro de gente endinheirada. pelo
contrário. foi com muito sacrifício que conseguiram construir um património que
assentava exclusivamente numa fábrica. e as fábricas só tem valor quando tem
trabalhadores e laboram. e os principais obreiros dessa criação eram os meu
pais – estou quase certo que optei pelo CDS por ser o partido mais desditoso.
sempre tive uma inclinação para me juntar aos mais desfavorecidos. os mais
fracos. ou com menos possibilidade de se defenderem – os tempos da política em
portugal escaldavam. estávamos a um passo da guerra civil. os confrontos
físicos entre as várias tendências sucediam-se a um ritmo cada vez mais
perigoso. e a linha limite da tolerância ultrapassada várias vezes – a
liberdade alcançada com o 25 de abril não se aplicava à democracia cristã –
eram tempos muito conturbados e perigosos. e por via de todas essas incertezas
e violência. optei por manter uma posição discreta no liceu. não deixando que
ninguém percebesse qual era o meu posicionamento político. e assim evitar males
maiores não só para mim. mas também para a minha família. que sendo patrões
eram considerados reacionários e capitalistas – o problema é que fui tão
discreto que a professora não percebeu de que lado eu estava. pelo meu silêncio
deve ter pensado que era um dos cérebros do movimento para a sanear – tal como
eu também se manteve em silêncio. esperou pelo fim do ano para ajustar contas
com os alunos. e sem contemplações escarrapachou-me na pauta uma negativa que
me tirou o ano. mesmo tirando positiva nos dois testes do terceiro período –
revoltei-me. apeteceu-me fazer-lhe tudo. mas era novo e resolvi seguir em
frente. o que vale um ano na vida de um jovem. nada – a professora nunca
compreendeu que eu fui dos poucos a votar a sua continuidade. sempre a defendi.
é verdade que nunca me expus. nunca teve em mim um aliado. mas dentro do que me
era possível fui alertando os meus colegas de turma para a injustiça que
estávamos a cometer. não estávamos a ser íntegros. dignos. e podíamos arranjar
problemas difíceis de solucionar com a sua substituição – nunca foi saneada.
tenho a certeza de que foi decisiva a minha intervenção junto dos colegas mais
frágeis – foi uma grande desilusão quando as notas chegaram à pauta. o vinte
cinco de abril fez-me o seu primeiro estrago – se me perguntarem o nome de
algum professor do liceu não sou capaz de dizer. nenhum me aprisionou pelo seu
valor. pelo seu carisma. ou pela excecionalidade do seu método de ensino.
nenhum me deixou uma marca positiva para recordar. com exceção desta senhora
professora: isabel manta. fiquei com a cicatriz gravada em mim – foram umas
férias complicadas. sentia-me responsável pelo insucesso. apesar de não ter
tido grandes problemas com o chumbo. os meus pais atribuíram a culpa ao 25 de
abril. era verdade. mas não era toda a verdade. podia ter feito muito mais.
devia ter feito muito mais – vivia cada dia com uma intensidade estonteante.
sentia-me empurrado pela vida e pelas pessoas que ia conhecendo. era assim como
se andasse sempre no meio da turba. comprimido. empanturrado entre as
diferenças. feliz. a querer ver tudo. a querer sentir o que cada uma daquelas
almas sentia. e uma vontade de atracar em todas aquelas fantásticas luzes – os
dias corriam velozmente sempre num estado de sofreguidão. procurava a
felicidade nas coisas mais simples. que fossem fáceis de consumir. atolava-me
nas oferendas da vida a cada instante. como se tudo não fosse mais que uma
faísca. e em cada instante de luz. cegava-me por olhar para tanto lugar ao
mesmo tempo – tudo faiscava. e todos os lugares olhavam para mim. num apelo
misericordioso. enfeitiçando-me. dizendo-me: vem para aqui. é muito melhor do
que aí – e lá ia eu. sem nunca me interrogar porque o fazia – o corpo
recusava-se a parar. não sei se para fazer a vontade à alma. ou apenas pela
inércia do movimento. vivia sem lei. sem regras. sem estratégia. o que a mente
quer que aconteça. acontece. e quando não acontece é a providência de deus –
deixei de controlar o destino. também não sei se era possível controlar. ia
porque queria ir. porque o corpo pedia para ir. porque parado sentia-me a desaparecer
– a multidão aumentava a cada dia. às tantas já não era uma multidão. mas o
mundo todo a consumir-me. deixei de
andar. passei a flutuar nas nuvens. ia para onde o vento me levasse –
embebedei-me com o mundo. que sem saber. pouco mais era do que a minha terra
com todos os amigos que amava. e do cimo dessa multidão percebi que o que via
não tinha fim. nem eu tinha fim. era imortal. e a boca sôfrega falava: para a
frente é que é o caminho. os sonhos amarrados às costas em gritos de euforia –
cada vez mais pesados – e as mãos vazias de quase tudo que lhe dessem sentido. Arrogantes.
chamavam ao medo covarde – nunca imaginei que a vida fosse tão longa para quem
não faz o que está certo na altura certa – corria tão depressa que rapidamente
deixei de perceber que viver é também comtemplar. parar. refletir. preparar o
corpo e alma para o desconhecido – só a noite me sossegava – era um mau aluno.
principalmente por ser preguiçoso e entender que a vida fora dos espaços
escolares era muito mais atrativa. tudo acontecia à velocidade da luz. não
havia tempo a perder com manigâncias. a liberdade estava em marcha. o liceu
esperaria por mim – o meu pai não fez grande esforço. ou nenhum para me demover
do abandono escolar. talvez por lhe ter prometido que entraria no regime
noturno e passaria a trabalhar de dia na empresa familiar – acredito que na
base desta aceitação estaria o meu feitio imprevisível. senhor de um nariz empinado.
de um saber que afinal não era coisa nenhuma. era loucura juvenil.
irresponsabilidade. arrogância. petulância. e tudo isto com uma falta de
humildade gritante – sempre entendi que apenas eu era dono do meu destino. e
lembro-me [bem] de ter alguns conflitos com o meu pai por não acatar as suas
demandas. tivemos momentos complicados – farto das guerras que foi tendo com o
meu crescimento. optou por me deixar seguir o meu próprio destino – finalmente
consegui ter paz interior na relação com o meu pai – mesmo assim estou certo
que não foi de seu agrado – da minha mãe é que não foi mesmo. queria à força
que eu fosse dentista. talvez porque na época havia poucos dentistas em braga.
os que havia ganhavam muito dinheiro. e era muito difícil arranjar uma consulta.
esperava-se meses para broquear um dente – realizou o seu desejo com um neto. o
meu filho mais velho luís deu-lhe esse gosto. formou-se em dentária – no dia da
sua formatura foi a minha mãe que lhe deu as pancadinhas na cartola. nunca a vi
com tanto orgulho. foi muito saboroso ver aqueles olhos cheios de luz e orgulho
– a minha mãe não me viu doutor. partiu com esse desgosto. mas viu-me homem.
homem ressuscitado. homem de família. finalmente tinha chegado ao meu mundo: o
mundo dos afetos – a família é a minha única missão nesta passagem terrena –
retomando a história principal. vivíamos o período em que o partido comunista
tinha uma grande implementação nacional. estava em curso as ocupações selvagens
das empresas e das terras. saneamentos indiscriminados. e graves conflitos
sociais por todo o país – o meu pai estava em pânico. em cada esquina morava um
comunista de foice e martelo. daqueles que davam injeções aos velhinhos. pronto
para o sanear. para lhe roubar a menina dos seus olhos. a fábrica era a razão
da sua vida – resolveu então comprar uma
caçadeira e umas quantas caixas de zagalotes. mais uma pistola de 9mm. armado
até aos dentes. só lhe faltava o camuflado e as pinturas de guerra na face.
jurava que se algum comunista lhe entrasse na empresa o carregava de chumbo –
as notícias de ocupação das empresas eram diárias. o medo estava instalado na
classe patronal. por isso quis acreditar que num momento tresloucado matasse
mesmo um comunista. mais tarde percebi que seria impossível. o meu pai já tinha
passado os cinquenta. estava a degustar pela primeira vez a vida. tinha passado
por muitas dificuldades para erguer a empresa. queria paz. não tinha vocação para a arte da
guerra. o mais certo seria saírem todos aos abraços. a cantar a
internacional socialista – era um homem respeitado. principalmente pelos
trabalhadores. todos gostavam dele. nunca dizia não a ninguém. o sr. lopes
tinha um coração maior que o corpo – tenho tantas histórias fantásticas para
contar do meu pai. era ele mesmo um contador de histórias. exímio. doce.
humilde. justo. o seu grande prazer era estar rodeado de amigos – um dia até
poderei escrever algumas das narrativas do meu pai. o que não sei. e não sei
mesmo. é se conseguirei impregná-las com
a sua magia. a alegria com que as contava. a paz com que as embelezava. e a
serenidade como aceitava o que
lhe tinha corrido menos bem – cada história era uma lição de vida. um exemplo.
um modo de nos dizer: a vida são dois dias. vivam. sejam felizes. preocupem-se
apenas com o que não pode ser comprado – infelizmente só compreendi
algumas dessas lições já depois de ter partido – fruto desses ensinamentos.
tento evitar a todo o custo que aconteça aos meus filhos [e descendência] os
erros que cometi com a minha surdez da juventude – confesso que não sou um
homem sossegado pelas escolhas que fiz. apesar de sentir que a aceitação está
cada vez mais perto. muita coisa aconteceu nesta minha caminhada que não
aconteceria se tivesse optado por outro caminho. e isso também não
gostaria de ter perdido – por isso o meu desígnio é agora escrever. e quem
sabe. os meus descentes compreendam mais rapidamente o que são. e porque o são
– há um fio condutor que atravessa todas as gerações de uma linhagem. e mais
uma vez. se tivermos a cabeça no lugar. percebemos rapidamente que somos o que
somos. não por obra do acaso. mas por obra de pertencermos a uma família ligada a esse fio. acredito
que vai muito para além do DNA – esse fio que nos liga de geração em geração.
através dos séculos. por mais que se tente não é possível quebrá-lo. diria
mesmo que é feito da liga mais resistente do universo: linhagem – é essa
resistência invisível que faz de nós o que somos. com defeitos e virtudes.
altos ou baixos. bons ou maus. sorridentes ou sérios. com os olhos a brilhar ou
apagados. com a vontade infinita de nunca vergar às adversidades. ou render-se
à primeira dificuldade – nós lutamos. o meu pai lutou. eu lutei. os meus filhos
à sua maneira irão lutar também – a glória está na forma como nunca desistimos
de nada. e nunca no que conseguimos alcançar – talvez os meus filhos comecem
agora a compreender melhor porque fui um pai exigentíssimo com a escola. com a
sua formação para homens adultos. como diria a minha cunhada maria josé. são o
meu sol. vê-los brilhar é saber que não falhei – um homem precisa sempre
da ajuda do plural. quando se é novo é muito difícil ver e sentir o plural.
fazer o certo ainda se torna mais complicado quando a sociedade valoriza sempre
o que é mais brilhante e vistoso. mas o meu plural é a família. não sei onde começou.
e também não sei quando acabará. mas sei. neste incrível momento. que os meus
filhos podem descobrir mais rapidamente o porquê de serem o que são. e eu adoro
aquilo que eles são – às vezes interrogo-me o que é um miúdo inteligente. pois
bem. um miúdo inteligente é aquele que faz o que está certo no momento certo –
eu não fiz – a juventude está cheia de armadilhas. saber priorizar o que
realmente é importante é sinónimo de inteligência. na juventude diria que é
talvez inteligência emocional – é essa inteligência que nos momentos mais
complicados da vida nos leva a optar por fazer o que é mais correto – descobrir
o caminho certo só está ao alcance dos mais iluminados – usei tardiamente essa
inteligência emocional. mas felizmente a família deu-me um rumo. optei por ela.
fazendo emergir dos destroços a capacidade de superação e perdão. não de
esquecer o que me aconteceu de menos bom. mas projetando-me rapidamente para
novos desafios. novos recomeços. aceitando o erro ou o destino como um processo
de aprendizagem. um ensinamento para me tornar melhor e mais justo – agora que
a idade já começa a colorir os dias com as cores outonais. resolvi aprender a
queixar-me o menos possível. em boa verdade sou um afortunado. tudo o que é
realmente importante tenho comigo. ao meu lado. ou na memória – assim foi.
despedi-me do liceu aos dezasseis anos prometendo a mim mesmo que voltaria mais
tarde. com outra postura para os livros – e fui para o mundo do trabalho. algo
que nunca tinha experienciado. em boa verdade era o filho mimado da mamã. não
fazia coisa nenhuma. o que necessitava a lurdes providenciava. nunca me faltou
absolutamente nada. bem tratado. bem alimentado. bem vestido. bem calçado. e
sempre com dinheiro no bolso. pela semanada que o meu pai me dava todos os
santos domingos. que era tanto como alguns amigos recebiam num mês. alguns num
ano – agora imaginem que o meu primeiro dia de trabalho é nada mais. nada
menos. que o 1º de maio. dia do trabalhador e feriado nacional – pensei logo
com os meus botões. isto vai correr bem. ainda não fiz nada e já tenho um dia
ganho – era um dia de multidões. o PCP e a intersindical. com grande
implantação e capacidade de mobilização. juntava milhares de trabalhadores em
todas as cidades do país – apesar de ainda não ter tido um único dia de
trabalho. na verdade. e oficialmente. era um trabalhador. e por via desse novo
estatuto. não podia faltar à comemoração do meu dia. era importante estar no
meio da minha classe. apesar de ser filho de patrão – ao meu segundo dia de
profissional de moda. chego já cansado à nova labuta. participar nas
manifestações do dia anterior deixou-me sem energia. mas motivação não me
faltava
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