.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

21/04/2021

eu. o meu pai. e o meu primeiro dia de trabalho - II

 




        2º dia de trabalho

 

fui oficialmente informado pelo administrador da empresa. o senhor meu pai. que ainda antes do nascer do dia viajaríamos para alcanena. cidade do distrito de santarém. conhecida pela capital da pele – esta pequena terra junto ao rio alviela possuía [ainda possui] uma importante indústria de curtumes. tratamento do couro cru com a finalidade de o preparar para a indústria transformadora: sapatos. vestuário de pele. carteiras e porta-moedas. bolsas de senhora. cintos e outras pequenas bugigangas – visitamos duas ou três empresas. deixamos encomendas para suprir as necessidades das vendas. umas dezenas de pacotes de pele em várias cores. solicitando máxima brevidade na entrega. havia rotura de stock. precisávamos quanto antes que a matéria-prima chegasse à cadeia produtiva – com as compras realizadas. iniciamos o regresso ao doce lar. estava ansioso. sempre adorei regressar a casa. ainda hoje adoro – em tempos viajei bastante. visitava feiras em vários países da europa. um ritual que se repetia duas vezes por ano: milão. florença. paris. madrid. barcelona. para ver tendências de moda. bolonha e frankfurt. para adquirir matéria-prima – logo nos primeiros dias de visita. depois de passar o entusiasmo de chegar a uma grande cidade do centro da europa. com centenas de anos e de história para descobrir e conhecer. com hábitos e costumes que em nada se assemelham com a afabilidade lusitana: nós caminhamos sempre a sorrir. com sol – com o cinzentismo destes estranhos. sempre a prometer mau tempo. com ar de arrependidos de qualquer coisa que nunca consegui descortinar. passado pouquíssimo tempo. começava a sentir-me deslocado numa terra que sabia não ser minha. sentia-me um estranho. faltava sol. brilho nos caminhantes… faltava-me conforto. nada de especial. apenas coisas simples: a minha cadeira. a minha cama. o meu lugar na mesa. aquele jeito especial de me sentar no sofá. o comando da TV. o telejornal da noite. a língua. há no que é nosso um bem-estar aconchegante e tranquilizador. em boa linguagem o que me faltava mesmo era a minha casa. tudo o que realmente era meu – o corpo com o tempo apropria-se das coisas mais incríveis. quando toma posse de alguns hábitos. por mais simples que sejam. incrusta-os na pele. uma espécie de artimanha para se sentir tranquilo – esta magia do lar permite-nos distender os músculos. purificar a alma. equilibrar-nos. ao fim de uns minutos compreendemos facilmente o que realmente é importante. e tudo isto assente em gestos impercetíveis ao resto do mundo: o modo de meter a chave na porta. o arrumar as chaves na cardência.  o equilíbrio dos móveis: um quadro ali. a porcelana acolá. os relógios parados em horas conhecidas. o cadeirão a olhar a janela. ao canto a lareira que arde continuamente sem se ver. em cima da lareira uma escultura africana. e atrás das costas. a certeza de que encontraremos o corredor. o quarto. o escritório. e neste conforto mágico. o controle absoluto sobre o que queremos fazer a cada momento: porque mantemos as pernas silenciosamente paradas e não as arrastamos de um lado para o outro. porque vemos TV e não rádio. porque lemos um livro e não um jornal. fazemos o que fazemos apenas porque assim dicidimos. e se o nosso escolhimento obrigar o corpo a abandonar a sala. vai-se como se não se saísse daquele equilíbrio absurdo. mudamos sem mudar. continuamos numa bem-aventurança tranquila. alma e corpo numa simbiose com o espaço-matéria – estes hábitos que se repetem dia após dia. ano após ano. ganham estatuto de norma. como se tudo em casa não passasse de um jogo de xadrez. todos se movimentam e ninguém embarra com ninguém. só vemos o que queremos ver. só ouvimos o que precisamos ouvir. mexemo-nos sempre em linha reta. as curvas e as diagonais ficam para o outro mundo. se não gostamos de alguma coisa jogamos um peão em nossa defesa. e se algo se complicar. movemos a rainha e pedimos-lhe um xeque-mate. a rainha resolve qualquer ataque mais virulento – às vezes é como se vivêssemos sozinhos tal é abstração de tudo o que nos rodeia. como se o sofá ou a cama se transformassem num elevador direto ao céu. o paraíso num apartamento – quando estamos num hotel não é assim. estamos ali porque não podemos ir para mais lado nenhum. aturamos aquelas pessoas porque não temos outras. vemos aquela TV e aquele programa como poderíamos ver outro que nos oferecesse o mesmo. tudo é um aborrecimento. um exponenciador do mau.  o elevador não sobe para lado nenhum. desce ao inferno. em descidas vertiginosas. falta-nos tudo o que realmente é nosso. o silêncio magoa. a solidão rebuliça-nos. a saudade mostra-nos em desespero o que é verdadeiramente importante. falta-nos a nossa casa com a sua infinitude – a minha casa sempre me permitiu criar uma bolha protetora. um refúgio à prova de desgraça. por pior que me corresse o dia. era [é] naquele espaço mágico que recuperava a alma – ao meter a chave na porta era outro homem. os sorrisos cresciam. era invadido pela certeza dos hábitos. cada coisa no seu lugar. as vozes todas reconhecidas. minhas. e eu a despir-me do que não tem valor. os miúdos apareciam numa pressa boa. os braços corriam para os abraços. e o lar. com a sua poderosa magia restabelecia as ligações sanguíneas: tocamos uns nos outros. às vezes só com o coração. os olhos recuperam o compromisso suave e apaixonado. finalmente no mundo dos afetos – agora. que o tempo dos desprendimentos já passou. torna-se mais fácil defender as coisas que realmente são importantes. aquelas que nos prendem à vida. que nos fazem sorrir: a família. com a sua honra. a sua liberdade. a sua independência perante os interesses do mundo moderno e caótico – temos que ter um código. um ethos. e a certeza de que tudo em que acreditamos está protegido no nosso castelo – creio que este gosto pelo doce lar herdei da minha mãe. enquanto o meu pai gostava de girar pelo mundo. se pudesse sair. não ficava em casa. a minha mãe era o oposto. se pudesse ficar em casa. não saía – um certo dia o meu pai chega a casa com uma proposta que acreditava ser irrecusável para a minha mãe. tirar umas férias e viajarem juntos para a moscovo. a antiga união soviética – queria ver com os seus olhos. se era verdade ou não. a pobreza miserável que se vivia nos países socialistas – depois de muita insistência. e muito empenho para convencer a minha mãe a acompanhá-lo. incluindo eu. que tudo fiz para que não deixasse o meu pai viajar sozinho. seria uma belíssima oportunidade para tirarem um tempo só para eles. e ninguém mais do que a minha mãe merecia aqueles dias – não adiantou nada a nossa teimosia. a resposta foi sempre não. não me apetece. é muito longe. é muito frio. sei lá o que mais. o remédio foi mesmo o meu pai meter-se no avião sozinho – regressou a casa feliz. com um gorro ushanka. uma garrafa de vodka original. umas quantas matriocas encaixadas umas nas outras. e a certeza absoluta de que o socialismo não interessava a ninguém – durante um mês não se falou de mais nada. o meu pai não se cansava de nos dizer como aquele povo vivia na miséria. nem queria ouvir falar nessa ideologia. deus nos livrasse de tal infortúnio – a sua única alegria era saber que tinha agora mais argumentos para rebater a narrativa comunista com os amigos – a minha mãe estava-se nas tintas para os comunistas. para ela o que era mesmo importante era como vivia a sua família. ficar perto dos filhos sempre foi a sua grande viagem. quer dizer. nos últimos anos era mais estar perto de mim. era o único que ainda dependia dos seus proveitos. e a viver na sua casa em comunhão de bens – os meus irmãos estavam casados e arrumados nas suas novas vidas – a sua grande preocupação era que o avião caísse e eu ficasse órfão. sem meios de sobrevivência e a depender da família e amigos – são estas lembranças doces que agora. passados tantos anos. me aquietam as recordações. este amor terno. os filhos estavam sempre em primeiro lugar. mesmo quando se tratava de aproveitar um miminho merecido – este lado da minha mãe ia muito além do amor. havia em si uma disciplina rígida de cuidados. sempre sustentada por situações catastróficas: não tens bicicleta porque pode vir um carro e atropelar-te. não vás por aquela rua. é muito escura e pode aparecer alguém perigoso. não saias que está muito frio e podes apanhar uma pneumonia. não faças isto ou aquilo porque o céu pode cair-te em cima da cabeça – os cuidados da minha mãe eram sempre dramáticos como numa tragédia grega. nunca partia uma perna ou tinha uma constipação. não. ia sempre direto à morgue – a minha mãe ligou-me para sempre aos afetos. não que fosse uma mãe superprotetora. mas nos momentos mais improváveis e complicados estava sempre presente. sempre pronta a abdicar do seu bem-estar. com o seu exemplo de amor-abnegado. de sacrifício. de perseverança. de força e resistência – trabalhou como ninguém. dando sempre o exemplo a quem dependia da sua liderança. ninguém fazia nada que ela também não o fizesse. seis dias por semana. antigamente não havia a semana-americana. trabalhava-se aos sábados – ligada à máquina de costura. a dar ao pedal. sem motor elétrico. que só apareceu anos mais tarde. sem tirar os olhos da ponta da agulha. ou nas mesas de montagem dando forma ao material. no controle da produtividade. nos acabamentos. era o coração da empresa. era a minha mãe que escorava. com a sua qualidade de trabalho e liderança. o sucesso da empresa. era a engrenagem principal de uma máquina que mantinha a família unida. e assegurava uma vida tranquila. nada nos faltava – o meu pai sabia disso. e também sabia que sem a sua companheira possivelmente nunca teria chegado ao que chegou – não posso permitir que os meus filhos não saibam que [também] o seu destino está conexo ao trabalho dos avós. todos nós. eu e os meus dois irmãos – houve um momento em que toda a família dependia dos resultados da fábrica. e por mais que tenhamos participado no seu crescimento.  dando-lhe um rumo de maior qualidade. com valor acrescentado. o que é certo. é que quando lá chegamos a empresa já existia – a nossa excelente qualidade de vida só foi possível porque em determinada altura da vida dos meus pais. tiveram coragem e determinação para concretizarem um sonho. e deste modo. permitir que os seus filhos. e também os netos. pudessem crescer com um pouco mais de conforto – resolveram criar uma digna unidade de produção familiar. e com grande esforço trouxeram-na até aos nossos dias. passando muitas dificuldades. suportando imenso – o seu exemplo é a sua maior herança. por mais que façam nunca os meus filhos conseguirão gastá-la. perdurará para sempre. até ao último dia da sua vida – quando cheguei à empresa. rapidamente percebi o destino que levariam os pacotes de pele que tínhamos comprado – chegados à fábrica. eram distribuídos pelos cortadores. homens especializados com muitos anos de experiência – uma arte que começava sempre por materiais menos nobres: forro. cartão. tela. espuma. matéria-prima mais barata e mais fácil de cortar – a pele era. e ainda é. um produto caríssimo. evitar desperdícios. encaixar os moldes de corte na perfeição. era só para os mais capazes. apenas estes chegavam à categoria de cortadores de pele de primeira – o resto da confeção estava a cargo apenas de mulheres. mesas de trabalho. máquinas de costura. e acabamentos – com o produto terminado seguia depois para o armazém e era distribuído por lojas da especialidade em todo o território nacional. incluindo as ilhas da madeira e açores – de uma forma simplificada era mais ou menos isto que a fábrica dos meus pais transformava: pele de animais tratada em bolsas de senhora. nada mais – era um produto muito caro pelo preço dos materiais e pela elevada incorporação de mão de obra especializada – comprar uma bolsa de pele. nesse tempo. não era fácil. ainda hoje é complicado. mas não creio que haja dúvida que passados quase quarenta anos tudo está mais facilitado. antigamente a pobreza era mesmo pobreza. era miserável e agonizante – ainda não havia quotas de emprego para as mulheres. poucas estavam no mercado de trabalho. e mais escasso era encontrar mulheres mais ou menos bem remuneradas. por isso a sua capacidade económica para comprar moda era reduzida – apenas um número muito pequeno de mulheres podia comprar uma bolsa de pele: professoras. funcionárias ligadas ao estado. ou camarárias. eram a exceção. tudo o resto andava com bolsas sintéticas ou de plástico comum – o país era muito rural. as cidades pequenas. quase todas as mulheres se vestiam de preto. lenço na cabeça. com saia até aos pés. com sapatos de tacão raso. muitas de chinelos. e não era raro vê-las descalças – não havia sistema de proteção social. não havia serviço nacional de saúde. uma grande parte da população era analfabeta ou apenas com a quarta classe – havia pouquíssimos milionários. quem tivesse cem contos era riquíssimo. e as casas reduzidas à simplicidade. tudo muito modesto e funcional: um rádio. cama. mesa e uns quantos bancos. e pouco mais – a televisão era um luxo raro. poucas famílias se permitiam a esse luxo – os automóveis eram ainda mais raros. lembro-me de que na nossa rua só o meu pai tinha automóvel à porta. tínhamos mais quatro ou cinco vizinhos com automóvel. mas estavam na garagem e só saíam para levar a família à missa dominical no santuário do sameiro – o tecido empresarial era também debilitado. a sua sobrevivência assentava em baixos salários e no sacrifício dos trabalhadores. eram os novos escravos da revolução industrial. trabalho indigno. mal remunerado. e pouco produtivo – as empresas com condições de trabalho insalubres. sem estratégia. maquinaria deficiente e ultrapassada. produtividade e capacidade competitiva nula. protegidos por leis do trabalho completamente obsoletas – o 25 de abril trouxe os sindicatos. completamente politizados e desajustados da realidade social. afetos aos delírios dos partidos de esquerda – toda esta amálgama de incoerências permitia tanto ao patronato. como aos trabalhadores. uma comodidade tática: não damos nada em troca. mas também não nos podem pedir nada – a classe patronal era igualmente maltratada pelo aparelho do estado. isso não mudou nada. hoje é igual. a máquina tributária alienava por completo a possibilidade de as empresas se modernizarem – as importações de matéria-prima eram praticamente proibidas. as autorizações para trazer produtos novos estavam vedadas. e por fim. um escudo que não era aceite em lado nenhum. viajávamos com moeda estrangeira na carteira. marcos. francos ou dólares. o nosso escudo não tinha cotação no mercado financeiro europeu. em nenhuma parte do mundo – o país esteve fechado ao exterior durante quase meio século. as mentes estavam impreparadas para aceitar mudanças. depois da revolução as transformações na sociedade começaram a acontecer rapidamente. nem sempre bem. nem sempre com juízo. governados por políticos incompetentes e corruptos. acabámos por chegar ao que somos hoje. pode não ser grande coisa. mas acreditem que é bem melhor do que há quarenta anos – por essa miséria tolerada e aceite é que a principal produção da fábrica assentava no sintético. era a sua base de faturação. talvez um pouco mais de noventa por cento. a pele era residual – foi nesta realidade que começou o meu segundo dia de trabalho. levantar cedíssimo. não havia as autoestradas de hoje. o caminho fazia-se vagarosamente pela nacional número um – era muito penoso e cansativo viajar naquele tempo. trezentos quilómetros de estrada precária. passar pelo interior das cidades e vilas era um martírio. filas intermináveis de camiões. sem possibilidade de ultrapassagens. os quilómetros eram feitos a passo de caracol – possivelmente foram os trezentos quilómetros mais longos da minha existência. o meu pai aproveitou o vagar da viagem para me dar a maior lição de vida – naquela conversa havia um misto de pai versus patrão. por isso não tive outra alternativa senão ouvir e calar – ao patrão podia passar-lhe alguma coisa pela cabeça e despedir-me. ao meu pai. como meu tutor. podia dar-me uma bofetada. acreditem que seria muito mais rápido que o despedimento – estava encurralado entre duas superpotências. ambos na posse dos códigos para lançar sobre mim um ataque arrasador – o meu pai começou por me relembrar que foi minha a iniciativa para terminar com os estudos. e apesar de não concordar. a única alternativa que tinha agora era tornar-me num homem adulto. exigindo-me um comportamento responsável.  empenho. desta vez não podia falhar – a fábrica era um assunto sério. com regras rígidas para cumprir. tinha o dever. por respeito à família. de me tornar um exemplo para os trabalhadores. para todos os efeitos. aos seus olhos. eu também era patrão – de um momento para o outro começa-se a abater sobre mim um vendaval terrível. não no céu. não na estrada. mas ali mesmo. no carro. o meu pai começa a debitar as regras que teria de cumprir e respeitar a partir daquele dia:

 

1º - tens que estar na fábrica antes dos funcionários. 7.40 a porta tem que estar aberta

2º - começas como cortador de forros e. à medida que fores dominando a arte. vamos-te confiando outros trabalhos com mais responsabilidade

3º - deves respeitar os teus irmãos que são mais velhos e têm muita mais experiência

4º - os encarregados [arlindo e zé meireles. este sindicalista da intersindical] são importantíssimos. tens obrigatoriamente que os respeitar como superiores. ouves o que eles dizem. e tenta aprender tudo o que puderes com a sua experiência. eles e a tua mãe são os mestres

5º - mantém o respeito com os funcionários e nada de muitos risos nem excesso de confiança. é preciso mão dura para os manter na linha [isto dito pelo meu pai só podia ser para gargalhar. ele que se desfazia em sorrisos… e confiança]

6º - se tudo correr bem entras para sócio da empresa com uma quota igual aos teus irmãos. o que eles ganham passas também a ganhar [os meus pais não se cansavam de repetir que para eles não havia diferenças entre os filhos]

 irás ganhar quatro contos e trezentos para começar. o ordenado mínimo. se correr tudo bem. se não criares problemas. se mostrares interesse. se aprenderes a arte. vamos-te aumentando o ordenado [o meu pai falava sempre no plural pois não fazia nada sem o consentimento da minha mãe]

8º - e sobretudo. sê digno da confiança que depositamos em ti


para o que entendia da arte até que não era muito mau o ordenado. recebia um pouco mais que o ordenado mínimo. enquanto os meus irmãos já recebiam quase vinte contos – o que eu não sabia. e foi uma grande surpresa. é que passei logo a receber o mesmo vencimento que os meus irmãos. em segredo a diferença era desviada para uma conta do montepio – com este dinheiro amealhado. um pouco antes dos dezanove anos. consegui comprar um carro novo. um talbot vermelho. pela módica quantia de quatrocentos e sessenta e quatro contos e trezentos escudos – naquele tempo ainda se fazia a rodagem aos motores. uma seca total. peguei em mais três amigos e arrancamos para paris. mas isto é outra história. muito louca. e muito excêntrica. um dia destes passá-la-ei a papel – lá fomos galgando quilómetros sempre a dar no ceguinho. o que me levou às primeiras interrogações: será que fiz bem em deixar de estudar? numa coisa o meu pai tinha razão. a decisão de abandonar os estudos foi minha. a solução era aguentar. não havia volta atrás – o que o meu pai não percebia era a minha vergonha em pedir-lhe a semanada ao domingo. os meus pais davam-me de bom agrado. mas eu não me sentia merecedor daqueles quinhentos escudos – o meu trabalho era estudar e eu não o fazia. era malandro. e essa malandrice fazia-me sentir um impostor diante da bondade dos meus pais – a minha consciência sempre foi o meu calcanhar de aquiles – esta foi a única razão. pelo menos a que mais me atormentava. porque deixei os estudos – não estava a conviver bem com o peso na consciência. acordava e deitava-me a pensar que não era correto o que fazia – não tinha necessidade nenhuma de deixar os estudos. os meus pais pagar-me-iam o que fosse necessário até que acabasse o curso superior. para eles o importante era mesmo tornar-me doutor – tive um amigo que foi tirar direito para coimbra aos dezoito anos. acabou já passava dos trinta. regressou a braga com mulher e filho – hoje anda aí com o curso debaixo do braço. feliz da vida. farto de ser doutor de leis. e ninguém quer saber se demorou seis. ou doze anos. se pediu dinheiro aos pais. se o estragou. se lhe pesou a consciência. se foi digno ou não. é doutor. e ponto final – eu podia ter feito igual. talvez até ter trazido mais do que uma mulher. e uma ranchada de filhos. a licenciatura para a minha mãe dava direito a quase tudo – não estou arrependido. nem gosto de pensar muito nisso. o que sei. é que se fosse para coimbra. não teria os filhos que a vida me deu. nem a maria joão. nem este amor que sinto por eles. e em boa verdade. seria impossível viver sem isso. são a razão porque escrevo a minha vida. sem eles desconheceria que o belo existe – a viagem foi dramática não só pela lição de moral. mas também pela falta de tabaco. fumava mais de dois maços por dia. sempre às escondidas. claro que o meu pai sabia desse meu vício maldito. ele foi o grande culpado. fumava tanto como eu – durante o período de racionamento. logo após o 25 de abril. encheu o guarda-vestidos com dezenas de volumes ritz – fumava ele e eu. surripiava-lhe um maço por dia. não ligava nenhum à sua contabilidade. fosse tabaco ou dinheiro. era-lhe indiferente – por causa dessa sua indiferença pelos bens materiais. quase todos os dias eu tinha um suplemento à semana. pela manhã a lurdes sempre que arrumava o quarto dos meus pais encontrava no chão umas quantas moedas. o meu pai á noite dobrava as calças pelas vincas. e ao colocá-las na cadeira os trocos espalhavam-se silenciosamente pela alcatifa. era um puto muito abastado para aquela época – com esse seu despreendimento. nunca deu fé de que estávamos a partilhar os cigarros – apanhou-me umas quantas vezes de cigarro na boca – naquele tempo os filhos só fumavam em frente aos pais a partir dos dezoitos anos. a maior idade dava passagem direta ao estatuto de adulto – foi muito duro. paramos para tomar café da parte da manhã e logo que pude corri para a casa de banho para tirar duas passitas. outra correria no fim do almoço. e assim me fiquei. meia dúzia de puxadas até chegar a casa ao fim do dia – agora é-me fácil confessar que no começo o trabalho não me correu muito bem. precisava de movimento. estava habituado a andar de um lado para o outro. aquela campainha maldita para pegar e largar a laboração deixava-me louco. era parecida com a campainha do liceu. só com uma diferença. nunca havia feriado. nunca havia falta de trabalho – estar parado em frente a uma mesa de corte. amolar a faca. acertar os moldes. deixava-me louco – tudo aquilo que tinha imaginado estava de pernas para o ar. começaram a brotar as primeiras gotas de sangue nas orelhas. tal era a tensão que me tomava – mas o impensável aconteceu. apaixonei-me pela indústria. pela moda. e principalmente pela sua criação – vivi esta paixão mais de vinte anos. como todas as paixões um dia acabam. umas por saturação. outras. porque nos abandonam – a minha não acabou. nem me abandonou. mas como tudo o que se ama excesso. acaba por nos ser tirada – foi roubada pelos políticos. foi moeda de troca com a china. a alemanha e frança passaram a vender os seus carros de luxo aos novos milionários chineses. em sentido inverso. começaram os chineses a vender o seu têxtil na europa. infelizmente incluía o meu ramo – uns anos antes os nossos políticos pediram-nos para nos modernizar. tínhamos que ser competitivos no mercado europeu. assim fizemos. dotamos a empresa com maquinaria de ponta. contratamos dezenas de pessoas. ultrapassamos a centena e muitos. éramos uma das maiores empresas. bonita. moderna. estávamos muito à frente da concorrência. lançamos novos produtos. cintos. artigo de viagem. marroquinaria. uma metalurgia preparada para responder às necessidades internas. uma secção com todo o tipo de banhos: ouro. prata. cobre e níquel. e de um momento para o outro tiraram-nos o tapete e ficamos a concorrer diretamente com os asiáticos – obviamente que era impossível – mas esta é outra história que nascerá mais lá para a frente – confesso que às vezes a ferida abre e revolta aparece – um dia. mais lá para diante. quando tiver um pouco mais de coragem. registarei em papel o fim do nosso modo de vida – entretanto o terceiro dia estava prestes a acontecer. e as surpresas também

 


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