“Neste
exato momento – é assustador – se eu existo é porque estou horrorizado de
existir. Eu sou aquele que me puxo do nada a que aspiro. Você acha que eu conto
os dias? Resta apenas um dia, sempre recomeçando: nos é dado de madrugada e
tirado de nós ao anoitecer” jean-paul satre – lutamos por mais um dia. e no
escuro resistimos à decantação do cérebro. rodeamo-nos do que sobra. injetámo-nos
com um ponto de luz minúsculo. giramos os olhos para dentro. acionamos o modo
de contenção de danos. e por ali ficamos a fingir que dormimos. a suster a
respiração. a cavar o que é nosso. a enterrar os dedos nos ossos. até que uma
descarga de saudade nos faça voltar ao que amamos. que é dor também – tal como
o solstício de inverno nos presenteia com a noite mais extensa do ano. também o
escuro traz à alma o medo e a tristeza mais extensa em mim – é assim sempre que
o dia se esvai. e eu… por ali ando. a escurecer aos bocadinhos. até que a noite
se funda em mim – pela manhã. quando a luz desperta os olhos para o mundo das
vontades. o corpo. essa coisa enorme que me carrega o medo. esperta para mais
um dia também. apenas mais um dia – e o corpo vai. e leva o cérebro para recomeçar
tudo o que foi interrompido. que é apenas ser. nada mais do que ser. não
importa o quê. ser unicamente – e vai pela pressa. o caminho das vontades é que
faz o destino – passo a passo vou sem querer ir a lado nenhum. como direi? vou
meio hirto. meio curvado. a olhar para o que vem de encontro. mas fico sempre
por saber. se o que vejo é o quero ver. ou se me é imposto pelo caminho –
talvez sejam as duas coisas. afinal. eu sou mais um deste mundo. peregrino da
minha própria crença. do meu próprio versículo: “não me peço para sair deste
mundo. mas que me livre do mal que há em mim – sou do mundo. como eu do mundo
sou – santifico-me com a minha verdade; a minha palavra é a minha verdade” – perdoem-me
por tomar as palavras de são joão batista. mas tal como ele. eu também sou um
peregrino deste mundo – vivo a minha própria crença. a que me releva. e também
releva o que os outros me entregaram. que recebi como dádiva. então… eu só sou
o que sou. porque os outros entraram em mim – eventualmente. sem perceber que
também eles tinham a sua própria crença. que o senhor deles. e eu. revelamos
por vontade – pertencemos todos a este mundo. e todos somos o que todos se
fizeram. às vezes fizeram-se bons. às vezes maus. mas se somos todos de todos.
então os maus estão perdoados. por serem também um pouco de todos. e deste
modo. de mim também – e o que é mau em mim. é também dos outros. que posso
fazer. se o mundo é assim. esta centrifugação louca que nos faz desunir. e nos
faz existir tal e qual como somos. como todos somos – bem sei que às vezes
demora a encontrarmo-nos. mas é o que é. o mundo tem o seu próprio tempo – e
eu. neste mundo. não sendo nada. sou também o que me calhou em sorte. ou por
vontade – é o mundo. o meu mundo. que começa em mim. e acaba para lá do que não
vejo – no escuro. ou no caminho das vontades. sou o que posso ser e o que os
outros me ofertaram do seu caminho – o que me alivia a pena. que é do tamanho
de uma cesta de roupa. é que à noite posso morrer novamente como sou. tal e
qual como sou. e com o que sonho ser – mas vou. levo comigo a invisibilidade. ninguém
pode desdenhar do meu corpo. o que me restaria se perdesse o invólucro que sorri?
como engaria o mundo? não é fácil viver. ou sobreviver. resistir. ou aparecer
sem pungimento. e os noturnos de chopin a chorarem por mim. enquanto os olhos
padecem de uma solidão cheia de gente – tomara que um dia me preguem dois
pregos nas pálpebras. e assim possa fingir que vejo o que mais ninguém quer ver
– esta espera é desespero. e o fio da navalha nos pulsos a matar as vozes. a
engolir os atalhos. a tocar as cordas da incerteza. só pela noite sou o que
sempre quis ser – para que preciso de mais um minuto se a hora de sonhar não
chegar? para que quero ver as gaivotas a voar se a sua prisão é feita de mim? que
raio de alma pede castigo e vento? que raio de alma pede para ser o que não sabe
ser? que raio de alma obriga o corpo a caminhar aonde nunca vai chegar? não
sei. lá terá as suas razões. talvez sejam as razões de todos. dos que me entram
no corpo. ou do mundo com o seu tempo. ou talvez eu seja egoísta. egocêntrico.
ególatra. sei lá que mais – alma malvada? às vezes. mas que lhe posso eu dizer
para a melar – prepotente e tirana? também. mas que posso eu fazer para a
aliviar das pedras que carrega – sem perdão? não. senão estava a condenar quem
comigo caminha. já que sou de todos. e com todos caminho – mas mesmo que haja
outro destino. e esta vida que consumo seja apenas purificação. ou
aprendizagem. ou sei lá. qualquer coisa que ainda ninguém sabe. eu vou até onde
chegar. mesmo teimando e doendo – o que sei. e é tão pouco. é que quero ser o
que ainda não encontrei. sei que está algures por aí. sei… porque sinto falta.
e só se sente falta quando o sono é leve e a alma aparece – mas se assim for. o
que me espera? que vida viverei? apenas um dia nesse outro mundo? mais do que
uma hora? mais do que um mês? estou sempre em cotejo. como se dentro do que sou
houvesse dois lados: o lado morto onde sou feliz mesmo
não sendo o que quer ser. e o lado vivo onde sou vontades sendo o que não quero
ser – o lado morto resigna-se ao que tem e sonha. e o lado vivo procura o que
não sabe se vai encontrar. e suporta as vontades sem quantificar o tamanho da
dor – é o meu princípio de incerteza heisenberg – quando se conhece a
grandeza da dor. perde-se completamente o sentido da vida – e vou por mim. como
se não houvesse mais nada para onde ir. e com prazer ou terror. vou à
descoberta. às vezes com espanto. às vezes apenas com a curiosidade de saber
quem sou. e para cada descoberta. o padrão dos descobrimentos a marcar a minha presença
naquele bocado meu – e depois de me descobrir. de colocar ordem na desordem.
luz na ignorância. parto para o que me resta do mundo. do meu mundo. que é
enorme. digo eu. que o imagino do tamanho de um continente. e levo a boa nova.
que às vezes sou somente eu. diferente apenas por saber mais de mim – e a minha
invisibilidade sempre tão perfeita. é agora. coisa perdida no achado – tenho
medo dos homens. que são também um pouco de mim. mas não tenho medo do que
descubro em mim. compreender-me é a minha última viagem pelo mundo das vontades
– a palavra que me ocupa o corpo é: falta. falta. falta… falta saber ainda mais
de mim. mas confesso que não tem sido fácil. talvez por ser enorme e cheio de
cantos e recantos. por isso me procuro. às
vezes em mim. às vezes nos outros – mas se só sentimos falta do que já tivemos.
expliquem-me os outros. que são quase todos sábios. porque é que sinto falta do
que nunca tive? e porque quero ter o que não sei se existe? – talvez intuição.
talvez pressentimento. magia. um dia destes deito as cartas. ou búzios. a
resposta estará em algures – sou o que sou. nada mais. digo eu. por não ter
conhecimento para dizer mais nada – o meu lado vivo resiste
onde sou vontades e procura o que desconhece. mas no entanto. não inveja o lado
morto. que não sente falta de nada. e é feliz com o que lhe oferece os sonhos –
é este vai e vem de tristeza de um lado para o outro que mantém o morto a
querer viver. e o vivo a querer morrer – amarra-me à vida uma única lei: a luz
das minhas noites é a testemunha dos meus dias de escuridão – acreditamos que nascemos
para ser felizes. e não é verdade. não é possível ser feliz. apenas é possível
ter alguns momentos de felicidade. o nosso cérebro não foi trabalhado para nos
tornar felizes. foi antes para nos manter vivos – anders hansen. psiquiatra
sueco. diz que devíamos olhar para o mundo e para os problemas “através das
lentes do cérebro” – diz-nos também que temos um “cérebro da idade da pedra” e
que não está organizado para nos tornar felizes: “A principal função do cérebro
não é fazer-nos felizes, mas nos manter vivos. A coisa mais importante que você
pode aprender sobre o cérebro é que ele não mudou durante os últimos 10 mil
anos” – começo a compreender o meu cérebro. afinal apenas me quer manter vivo.
e está a conseguir – vou pelo caminho das vontades. às vezes de vagar. outras.
a fugir de mim. para encontrar o que quero ser. tal como o burro vai atrás da
cenoura – o ontem apenas existe porque somos capazes de usar o nosso cérebro.
tudo o que pensamos torna-se automaticamente em passado. e o presente. é a
caixa onde guardamos os raros momentos de felicidade. e que existe para tornar o
futuro mais agradável. menos sofrível – este. só existe se formos capazes de
nos libertar das pedras. mas se não formos suficientemente audaciosos. então o cérebro
deixará de nos manter vivos. escolhemos o nada – é o cérebro que nos comanda.
há uma alma dentro dele. que faz de nós o que somos. únicos e especiais. se não
o formos para mais ninguém. é para ele que nos lidera. que nos ensina a não
desistir – e naqueles dias em que o escuro é o fim do destino. o cérebro não
desiste. mesmo que estejamos a respirar dor. ou sem amor próprio. ou sem… sei
lá. um vazio. um buraco negro que nos suga para o nada. mas a nossa massa
cinzenta. como dizia hercule poirot. sempre a lutar. às vezes a provocar. como
se tivesse uma vara com um agulhão. e nos tangesse com dureza. como se dissesse:
toca a andar para o futuro. o passado está na ponta da vara – e lá vai ele
processando o que somos. porque o que não conseguimos ser. resiste na
esperança. na resiliência. na capacidade de sonhar. de amar. e de nos
perdoarmos por ser apenas o que somos – e o cérebro. essa máquina maquiavélica
e ao mesmo tempo fascinante. lá continua a fazer futuro. de picareta na mão. a
escavar cada neurónio. a fazer cada vez um buraco mais fundo. mais dentro do
que somos. para que quando não aguentarmos mais… possamos nos esconder dentro
dele – e mesmo que os corvos poisem no ombro. a nossa luta para procurar a
felicidade será sempre o único caminho para chegar mais adiante. e viver.
apenas viver o presente porque só este controla o tempo do cérebro – a
felicidade não existe como um todo. existe a chuva. o vento. a terra. o fogo. e
outras coisas que não sei explicar. mas a felicidade é apenas o truque que nos
ilude para resistir ao caminho. e alcançado. logo a perdemos. porque queremos
mais. queremos mais caminho. e assim voltamos à infelicidade. para voltar a
procurar o que não sabemos se vamos encontrar – somos procura. somos exagero. mas
também somos feitos de uma benquerença que nos faz acreditar. e muito. e que
numa das extremidades do arco-íris. há um trilho que nos leva a ver como
realmente somos. e principalmente. que papel desempenhamos nesta passagem
terrena – e a chave mestra até então pendurada num erro trágico. agora… pendurada
numa exatidão atómica. que no vagar interstelar. nos abrirá o cérebro até à
fusão dos átomos. que eu quero acreditar. que foi na barriga da minha mãe – e
assim. finalmente. nos mostrará definitivamente a razão de termos nascido. crescido.
de termos aprendido a sonhar. a amar. a compreender o valor da simplicidade e do
belo. de termos resistido. suportado as pedras. o medo e a invisibilidade – e a
resposta. creio eu. será a família. a que me fez nascer. e a que fiz a partir de
mim – eles são a razão porquê resisti quando tudo dentro de mim se desmoronava.
quando o belo não passava de uma careta. e o corpo. o meu único corpo. desfeito
de sentido – a felicidade não se guarda. se a tentarmos guardar implodimos. por
isso a atiramos ao ar como fogo de artifício. e adoramos vê-la explodir nos
olhos de quem por nós passou. às vezes vaidade. às vezes apenas vontade de
dizer: hoje sou feliz. sou eu o feliz contemplado. e tu. que és também um pouco
de mim. resigna-te. já tiveste a tua poção mágica. bebe a minha. junta-te a
mim. pois não é alma de bem quem não se alegra com este meu raro contentamento.
e que também é teu – e por cada estoiro no ar a certeza de que amanhã haverá
mais um dia. e o que me faz feliz hoje. fará amanhã a um outro – a felicidade é
para entregar a quem precisa. não podemos guardá-la. ou escondê-la. seria uma
ironia iconoclasta se o tentássemos. correríamos o risco de deixar de estar
vivo. de perdermos o belo. o sorriso das coisas simples – eu tenho sempre muito
medo de ser feliz. não é culpa minha. é coisa do caminho das vontades. ou do
destino. e quando ainda vivo a felicidade. já me interrogo qual será o seu
preço. que mal me chegará para voltar a ser eu – sinto esta coisa medonha.
maldosa e matreira. uma ignomínia. como se perdesse a sombra. e um homem sem
sombra não merece nada de bom. mas sou o que sou. nada mais – às vezes. naqueles
dias especiais em que estou a gostar mais de mim. ainda tenho a ousadia de
pensar que a mereço. e digo-me: o que já sofri não é recompensa para este laivo
de luz e paz. e aceito-a. afinal. a cavalo dado não se olha a dente – mas o
importante mesmo é que o cérebro teime com o corpo. que liberte as pedras. porque
dentro do cérebro não existe uma pessoa. existe uma alma que é uma multidão. uma
alma que é feita de todos aqueles que acordam para mais um dia. apenas mais um
dia – e sim. é assustador. temos apenas mais um dia para nos absolver de todas
as pedras. de todos aqueles que nos tomaram o corpo para pesar. de todos
aqueles que por serem de todos. se fizeram assim como são. nada mais do que o
que são – sei agora que para sobreviver precisamos de estar infelizes. se não
estivéssemos infelizes. não mais procuraríamos a felicidade. e sem essa
necessidade. absoluta. ficaríamos parados. e o mundo parava. todos os cérebros
paravam. não haveria mais poetas. mais escultores. mais pintores. mais
pianistas. os pássaros deixavam de voar. os peixes de nadar. a lua caía no mar.
e os cães deixariam de ladrar e de nos amar incondicionalmente – o mundo ficava
plantado de espantalhos – eu tenho amor pelo certo. pelo saber. mas
tragicamente. sou viciado na dúvida. desorganizo-me. remexo os papeis.
espanto-me. e depois. para não ficar louco. curo-me com o que sobra de mim: e penso.
porque pensar é conversar com a alma. e a minha resiste no cérebro – “Acredito
que a teoria de tudo na vida de cada pessoa não envolve explicações
científicas, mas sim um sentimento chamado amor, e se você já amou vai entender
o que digo, apesar de que nem tudo precisa fazer sentido, você tem que
compreender que onde existe amor, sempre existe tudo - jane hawking” – sem os
outros todos seria apenas eu; a mesmidade seria insuportável – “dalí se valia
daquilo que batizou de método paranoico-crítico. e que consistia em tornar a
subjetividade o principal aspeto da obra. deixando a racionalidade de lado. uma
tentativa de representar o fluxo do inconsciente e dos sonhos” – eu também aderi
a este método
gente que amo
adotem-me
assim como sou
jurem-me perdão
e bondade
no que não fui
mas o que fui
que as bocas não se calem
todas
e se o negro for a minha cor
não vos culparei
eu morrerei com o azul da terra
e imortalizar-me-ei na escuridão do
universo