1. o susto de
existir
“neste
exato momento – é assustador – se eu existo é porque estou horrorizado de
existir. eu sou aquele que me puxo do nada a que aspiro. você acha que eu conto
os dias? resta apenas um dia. sempre recomeçando: nos é dado de madrugada e
tirado de nós ao anoitecer” jean-paul satre – lutamos por mais um dia. e no
escuro resistimos à decantação do cérebro. rodeamo-nos do que sobra.
injetámo-nos com um ponto de luz minúsculo. voltamos os olhos para dentro.
acionamos o modo de contenção de danos. e por ali ficamos a fingir que
dormimos. a suster a respiração. a cavar o que é nosso. a enterrar os dedos nos
ossos. até que uma descarga de saudade nos faça voltar ao que amamos. que é dor
também – tal como o solstício de inverno nos presenteia com a noite mais
extensa do ano. também o escuro traz à alma o medo e a tristeza mais profunda
em mim – é assim sempre que o dia se esvai. e eu… por ali ando. a escurecer aos
bocadinhos. até que a noite se funda em mim –
2. o peso da alma
e a missão do corpo
pela manhã. quando a
luz desperta os olhos para o mundo das vontades. o corpo. essa coisa enorme que
me carrega o medo. esperta para mais um dia também. apenas mais um dia – e o
corpo vai. e leva o cérebro para recomeçar tudo o que foi interrompido. que é
apenas ser. nada mais do que ser. não importa o quê. ser unicamente – e vai
pela pressa. o caminho das vontades é que faz o destino – passo a passo vou sem
querer ir a lado nenhum. como direi? vou meio hirto. meio curvado. a olhar para
o que vem de encontro. mas fico sempre por saber. se o que vejo é o quero ver.
ou se me é imposto pelo caminho – talvez sejam as duas coisas. afinal. eu sou
mais um deste mundo. peregrino da minha própria crença. do meu próprio
versículo: “não me peço para sair deste mundo. mas que me livre do mal que há
em mim – sou do mundo. como eu do mundo sou – santifico-me com a minha verdade;
a minha palavra é a minha verdade” – perdoem-me por tomar as palavras de são
joão batista. mas tal como ele. eu também sou um peregrino deste mundo – vivo a
minha própria crença. a que me releva. e também releva o que os outros me
entregaram. que recebi como dádiva. então… eu só sou o que sou. porque os
outros entraram em mim – eventualmente. sem perceber que também eles tinham a
sua própria crença. que o senhor deles. e eu. revelamos por vontade –
pertencemos todos a este mundo. e todos somos o que todos se fizeram. às vezes
fizeram-se bons. às vezes maus. mas se somos todos de todos. então os maus
estão perdoados. por serem também um pouco de todos. e deste modo. de mim
também – e o que é mau em mim. é também dos outros. que posso fazer. se o mundo
é assim. esta centrifugação louca que nos faz desunir. e nos faz existir tal e
qual como somos. como todos somos – bem sei que às vezes demora a encontrarmo-nos.
mas é o que é. o mundo tem o seu próprio tempo – e eu. neste mundo. não sendo
nada. sou também o que me calhou em sorte. ou por vontade – é o mundo. o meu
mundo. que começa em mim. e acaba para lá do que não vejo – no escuro. ou no
caminho das vontades. sou o que posso ser e o que os outros me ofertaram do seu
caminho – o que me alivia a pena. que é do tamanho de uma cesta de roupa. é que
à noite posso morrer novamente como sou. tal e qual como sou. e com o que sonho
ser – mas vou. levo comigo a invisibilidade. ninguém pode desdenhar do meu
corpo. o que me restaria se perdesse o invólucro que sorri? como engaria o
mundo? não é fácil viver. ou sobreviver. resistir. ou aparecer sem pungimento.
e os noturnos de chopin a chorarem por mim. enquanto os olhos padecem de uma
solidão cheia de gente – tomara que um dia me preguem dois pregos nas
pálpebras. e assim possa fingir que vejo o que mais ninguém quer ver – esta
espera é desespero. e o fio da navalha nos pulsos a matar as vozes. a engolir
os atalhos. a tocar as cordas da incerteza. só pela noite sou o que sempre quis
ser – para que preciso de mais um minuto se a hora de sonhar não chegar? para
que quero ver as gaivotas a voar se a sua prisão é feita de mim? que raio de
alma pede castigo e vento? que raio de alma pede para ser o que não sabe ser?
que raio de alma obriga o corpo a caminhar aonde nunca vai chegar? não sei. lá
terá as suas razões. talvez sejam as razões de todos. dos que me entram no
corpo. ou do mundo com o seu tempo. ou talvez eu seja egoísta. egocêntrico.
ególatra. sei lá que mais – alma malvada? às vezes. mas que lhe posso eu dizer
para a melar – prepotente e tirana? também. mas que posso eu fazer para a
aliviar das pedras que carrega – sem perdão? não. senão estava a condenar quem
comigo caminha. já que sou de todos. e com todos caminho – mas mesmo que haja
outro destino. e esta vida que consumo seja apenas purificação. ou
aprendizagem. ou sei lá. qualquer coisa que ainda ninguém sabe. eu vou até onde
chegar. mesmo teimando e doendo – o que sei. e é tão pouco. é que quero ser o
que ainda não encontrei. sei que está algures por aí. sei… porque sinto falta.
e só se sente falta quando o sono é leve e a alma aparece – mas se assim for. o
que me espera? que vida viverei? apenas um dia nesse outro mundo? mais do que
uma hora? mais do que um mês? estou sempre em cotejo. como se dentro do que sou
houvesse dois lados: o lado morto onde sou feliz mesmo
não sendo o que quer ser. e o lado vivo onde sou vontades sendo o que não quero
ser – o lado morto resigna-se ao que tem e sonha. e o lado vivo procura o que
não sabe se vai encontrar. e suporta as vontades sem quantificar o tamanho da
dor – é o meu princípio de incerteza heisenberg – quando se conhece a
grandeza da dor. perde-se completamente o sentido da vida
3. peregrino
entre mim e os outros
e vou por mim. como se
não houvesse mais nada para onde ir. e com prazer ou terror. vou à descoberta.
às vezes com espanto. às vezes apenas com a curiosidade de saber quem sou. e
para cada descoberta. o padrão dos descobrimentos a marcar a minha presença
naquele bocado meu – e depois de me descobrir. de colocar ordem na desordem.
luz na ignorância. parto para o que me resta do mundo. do meu mundo. que é
enorme. digo eu. que o imagino do tamanho de um continente. e levo a boa nova.
que às vezes sou somente eu. diferente apenas por saber mais de mim – e a minha
invisibilidade sempre tão perfeita. é agora. coisa perdida no achado – tenho
medo dos homens. que são também um pouco de mim. mas não tenho medo do que
descubro em mim. compreender-me é a minha última viagem pelo mundo das vontades
– a palavra que me ocupa o corpo é: falta. falta. falta… falta saber ainda mais
de mim. mas confesso que não tem sido fácil. talvez por ser enorme e cheio de
cantos e recantos. por isso me procuro.
às vezes em mim. às vezes nos outros – mas se só sentimos falta do que já
tivemos. expliquem-me os outros. que são quase todos sábios. porque é que sinto
falta do que nunca tive? e porque quero ter o que não sei se existe? – talvez
intuição. talvez pressentimento. magia. um dia destes deito as cartas. ou
búzios. a resposta estará em algures – sou o que sou. nada mais. digo eu. por
não ter conhecimento para dizer mais nada – o meu lado
vivo resiste onde sou vontades e procura o que desconhece. mas no entanto. não
inveja o lado morto. que não sente falta de nada. e é feliz com o que lhe
oferece os sonhos – é este vai e vem de tristeza de um lado para o outro que
mantém o morto a querer viver. e o vivo a querer morrer
4. o cérebro e o
caminho das vontades
amarra-me
à vida uma única lei: a luz das minhas noites é a testemunha dos meus dias de
escuridão – acreditamos que nascemos para ser felizes. e não é verdade. não é
possível ser feliz. apenas é possível ter alguns momentos de felicidade. o
nosso cérebro não foi trabalhado para nos tornar felizes. foi antes para nos
manter vivos – anders hansen. psiquiatra sueco. diz que devíamos olhar para o
mundo e para os problemas “através das lentes do cérebro” – diz-nos também que
temos um “cérebro da idade da pedra” e que não está organizado para nos tornar
felizes: “a principal função do cérebro não é fazer-nos felizes. mas nos manter
vivos. a coisa mais importante que você pode aprender sobre o cérebro é que ele
não mudou durante os últimos 10 mil anos” – começo a compreender o meu cérebro.
afinal apenas me quer manter vivo. e está a conseguir – vou pelo caminho das
vontades. às vezes de vagar. outras. a fugir de mim. para encontrar o que quero
ser. tal como o burro vai atrás da cenoura – o ontem apenas existe porque somos
capazes de usar o nosso cérebro. tudo o que pensamos torna-se automaticamente
em passado. e o presente. é a caixa onde guardamos os raros momentos de
felicidade. e que existe para tornar o futuro mais agradável. menos sofrível –
este. só existe se formos capazes de nos libertar das pedras. mas se não formos
suficientemente audaciosos. então o cérebro deixará de nos manter vivos.
escolhemos o nada – é o cérebro que nos comanda. há uma alma dentro dele. que
faz de nós o que somos. únicos e especiais. se não o formos para mais ninguém.
é para ele que nos lidera. que nos ensina a não desistir – e naqueles dias em
que o escuro é o fim do destino. o cérebro não desiste. mesmo que estejamos a
respirar dor. ou sem amor próprio. ou sem… sei lá. um vazio. um buraco negro
que nos suga para o nada. mas a nossa massa cinzenta. como dizia hercule
poirot. sempre a lutar. às vezes a provocar. como se tivesse uma vara com um
agulhão. e nos tangesse com dureza. como se dissesse: toca a andar para o
futuro. o passado está na ponta da vara – e lá vai ele processando o que somos.
porque o que não conseguimos ser. resiste na esperança. na resiliência. na
capacidade de sonhar. de amar. e de nos perdoarmos por ser apenas o que somos –
e o cérebro. essa máquina maquiavélica e ao mesmo tempo fascinante. lá continua
a fazer futuro. de picareta na mão. a escavar cada neurónio. a fazer cada vez
um buraco mais fundo. mais dentro do que somos. para que quando não aguentarmos
mais… possamos nos esconder dentro dele – e mesmo que os corvos poisem no
ombro. a nossa luta para procurar a felicidade será sempre o único caminho para
chegar mais adiante. e viver. apenas viver o presente porque só este controla o
tempo do cérebro – a felicidade não existe como um todo. existe a chuva. o
vento. a terra. o fogo. e outras coisas que não sei explicar. mas a felicidade
é apenas o truque que nos ilude para resistir ao caminho. e alcançado. logo a
perdemos. porque queremos mais. queremos mais caminho. e assim voltamos à
infelicidade. para voltar a procurar o que não sabemos se vamos encontrar –
somos procura. somos exagero. mas também somos feitos de uma benquerença que
nos faz acreditar. e muito. e que numa das extremidades do arco-íris. há um
trilho que nos leva a ver como realmente somos. e principalmente. que papel
desempenhamos nesta passagem terrena – e a chave mestra até então pendurada num
erro trágico. agora… pendurada numa exatidão atómica. que no vagar interstelar.
nos abrirá o cérebro até à fusão dos átomos. que eu quero acreditar. que foi na
barriga da minha mãe – e assim. finalmente. nos mostrará definitivamente a
razão de termos nascido. crescido. de termos aprendido a sonhar. a amar. a
compreender o valor da simplicidade e do belo. de termos resistido. suportado
as pedras. o medo e a invisibilidade – e a resposta. creio eu. será a família.
a que me fez nascer. e a que fiz a partir de mim – eles são a razão porquê resisti
quando tudo dentro de mim se desmoronava. quando o belo não passava de uma
careta. e o corpo. o meu único corpo. desfeito de sentido – a felicidade não se
guarda. se a tentarmos guardar implodimos. por isso a atiramos ao ar como fogo
de artifício. e adoramos vê-la explodir nos olhos de quem por nós passou. às
vezes vaidade. às vezes apenas vontade de dizer: hoje sou feliz. sou eu o feliz
contemplado. e tu. que és também um pouco de mim. resigna-te. já tiveste a tua
poção mágica. bebe a minha. junta-te a mim. pois não é alma de bem quem não se
alegra com este meu raro contentamento. e que também é teu – e por cada estoiro
no ar a certeza de que amanhã haverá mais um dia. e o que me faz feliz hoje.
fará amanhã a um outro – a felicidade é para entregar a quem precisa. não
podemos guardá-la. ou escondê-la. seria uma ironia iconoclasta se o
tentássemos. correríamos o risco de deixar de estar vivo. de perdermos o belo.
o sorriso das coisas simples
5. o medo da
felicidade
eu tenho sempre
muito medo de ser feliz. não é culpa minha. é coisa do caminho das vontades. ou
do destino. e quando ainda vivo a felicidade. já me interrogo qual será o seu
preço. que mal me chegará para voltar a ser eu – sinto esta coisa medonha.
maldosa e matreira. uma ignomínia. como se perdesse a sombra. e um homem sem
sombra não merece nada de bom. mas sou o que sou. apenas isso – às vezes.
naqueles dias especiais em que estou a gostar mais de mim. ainda tenho a
ousadia de pensar que a mereço. e digo-me: o que já sofri não é recompensa para
este laivo de luz e paz. e aceito-a. afinal. a cavalo dado não se olha a dente
– mas o importante mesmo é que o cérebro teime com o corpo. que liberte as
pedras. porque dentro do cérebro não existe uma pessoa. existe uma alma que é
uma multidão. uma alma que é feita de todos aqueles que acordam para mais um
dia. apenas mais um dia – e sim. é assustador. temos apenas mais um dia para
nos absolver de todas as pedras. de todos aqueles que nos tomaram o corpo para
pesar. de todos aqueles que por serem de todos. se fizeram assim como são. nada
mais do que o que são – sei agora que para sobreviver precisamos de estar
infelizes. se não estivéssemos infelizes. não mais procuraríamos a felicidade.
e sem essa necessidade. absoluta. ficaríamos parados. e o mundo parava. todos
os cérebros paravam. não haveria mais poetas. mais escultores. mais pintores. mais
pianistas. os pássaros deixavam de voar. os peixes de nadar. a lua caía no mar.
e os cães deixariam de ladrar e de nos amar incondicionalmente – o mundo ficava
plantado de espantalhos
6. a arte de
sobreviver
eu tenho amor pelo
certo. pelo saber. mas tragicamente. sou viciado na dúvida. desorganizo-me.
remexo os meus papeis. espanto-me. e depois. para não ficar louco. curo-me com
o que sobra de mim: e penso. porque pensar é conversar com a alma. e a minha
resiste no cérebro – “acredito que a teoria de tudo na vida de cada pessoa não
envolve explicações científicas. mas sim um sentimento chamado amor. e se você
já amou vai entender o que digo, apesar de que nem tudo precisa fazer sentido.
você tem que compreender que onde existe amor. sempre existe tudo - jane
hawking” – sem os outros todos seria apenas eu; a mesmidade seria insuportável
– “dalí se valia daquilo que batizou de método paranoico-crítico. e que
consistia em tornar a subjetividade o principal aspeto da obra. deixando a racionalidade
de lado. uma tentativa de representar o fluxo do inconsciente e dos sonhos” –
eu também aderi a este método
gente que amo
adotem-me
assim como sou
jurem-me perdão
e bondade
no que não fui
mas o que fui
que as bocas não se calem
todas
e se o negro for a minha cor
não vos culparei
eu morrerei com o azul da terra
e imortalizar-me-ei na escuridão do
universo
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