.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/06/2011

estar





                                                        tarsila do amaral - abaporu



não consigo estar – sinto-me cansado. triste. desanimado – gosto de estar com tudo. mas não estou. estou com quase nada – deve ser do tempo. seco e sem humidade as palavras fizeram-se cactos – sobreviver no tempo é mestria da arte e dos cactos



26/06/2011

sándor márai









“ … Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso é também velhice. Quando já se sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com a exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice. Porém, há ainda algo vivo no teu coração, uma recordação, algum objectivo da vida indefinido, gostarias de tornar a ver alguém, gostarias de dizer ou saber alguma coisa, e sabes que um dia chegará esse momento e então, de repente, já não será tão fatalmente importante saber e responder à verdade, como pensaste durante as décadas de espera. Uma pessoa compreende o mundo, pouco a pouco, e depois morre. Compreende os fenómenos e a razão das acções humanas. A linguagem simbólica do inconsciente… porque as pessoas comunicam os seus pensamentos por símbolos, já reparaste?...”  




livro -  As velas ardem até ao fim




23/06/2011

hoje ainda não parei de chorar. estou a escrever






laurie lipton
"here comes the boogeyman" 1999





                                                                                 




hoje ainda não parei de chorar. estou a escrever

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há dias que só assim escrevo - as memórias não me largam e o tempo repete o tempo sem que eu consiga perceber que envelheci - e as pessoas voltam e falam e olham e dizem coisas que me fazem chorar - choro porque estão aqui. aqui mesmo a meu lado. como estão agora e o tempo sempre a correr para trás onde estamos ainda todos e eu sou ainda quase inocente. quase. não sei escolher o caminho se soubesse era um homem. mas não. sou apenas eu a crescer. sem paredes capazes de me guardar para o dia certo. o dia sem vento onde a voz dos grandes falasse de joelhos. para mim. só para mim - talvez não chorasse. talvez não escrevesse



18/06/2011

cinemateca









cinema – tenho os olhos fixados na tela. as imagens caem como pedras – do som nada sei. talvez seja filme mudo ou as bocas de barro envernizadas costuradas a tempo feito de silêncio fino – e o meu corpo ali. sentado via tudo o que havia para ver – de frente vê-se sempre tudo. já não há passado. tudo está para a frente. sem ouvidos. não tenho que os levar comigo ao cinema – não sei se há silêncio. só sei que há gente com os olhos postos lá à frente – nenhum corpo brilha. estão apagados. suponho que se apagaram com as lâmpadas quando o filme deu cor a uma tela que ainda há segundos era branca – nada havia naquela tela. não havia vida. não havia esperança ou dor. havia branco. apenas um branco de pureza – naquela tela só há tempo para o futuro – rompe a fita. os corpos sentados desequilibram-se. uns tombam para o lado outros para outro. isto é. uns para a direita outro para a esquerda. mas nenhum para a frente ou para trás. isso não. tudo que está para trás já passou e para a frente ainda não chegou – o maquinista sempre atento à vida dentro das fitas. sabe desde há muito tempo quais os momentos críticos de uma cena – emenda. corta de um lado um segundo e dois segundos do lado oposto. remenda. inventa um novo momento. um momento desigual para um filme que deveria ser sempre igual – mas o filme nunca mais será como antes – que são três segundos na vida de uma fita de cinema – os corpos voltam-se a centrar nas cadeiras. respiram fundo. e tudo volta ao normal – também é assim que unimos a vida quando não estamos no cinema. remendamos e seguimos. seguimos porque assim deve ser – toda a gente olha em frente. silêncio – há agora na vida um milésimo de segundo que não encaixa noutro milésimo. um degrau quase imperceptível – nunca ninguém caiu num degrau que nunca chega a ser degrau – ninguém quer saber nada se nunca passou do nada. ou se é degrau e se tropeça ou então não se é nada. como uma tela de cinema branca. um branco de nada – perdi-me. já não sei se falo da vida ou do filme. não parece importante. afinal todas as vidas são feitas de cortes e emendas – tudo prossegue. tudo passa. e neste corte imagino como tudo podia ser diferente se o corpo não nascesse com nome. não era preciso ouvir. ninguém dizia: sampaio estou aqui. sampaio como vai a tua vida. esta gente obrigatoriamente tinha de falar de boca aberta. e eu respondia também de boca aberta: está tudo mais ou menos. tenho uma pedra num rim. podia ser pior – já sabes o que aconteceu ao hernâni. deu-lhe o nó na tripa e foi desta para a melhor – dizem que era um cheiro que não se aguentava à sua beira. e não era falta de banho. que o jaquim cangalheiro nisso não falha. respeita os finados e a profissão. é muito melhor que o pai – estava todo apanhado por dentro com um malezinho – mas não. todos temos nome e neste filme até os artistas têm nome. as legendas passam levando nomes aparatosos. amorosos. apaixonados. percebe-se tudo pelos rostos e na forma como andam sempre para a frente – os gestos tão desenhados. só gente apaixonada sabe dizer tanto sem abrir a boca. ou então é o mundo que está em silêncio e já todos assim falam. fazendo desenhos no ar – os corações suspiram e quando tudo parece perdido aparece o artista a ocupar a tela de lés a lés. não se vê branco. nenhum pedaço vazio de tela. só há artista – é um momentos solene. dobra-se o silêncio em dois. tudo indica que desta vez só o som é capaz de resolver tudo o que salta dos olhos. vai ter de falar. os segundos parecem horas e os olhos cada vez mais perto da plateia. estão enormes. todo o cinema é agora aqueles olhos. já não há espaço nem para dizer um olá – sem mexer um único músculo facial. agarra a apaixonada pela cintura e. sem que o espanto pudesse surpreender os olhos arregalados da pobre rapariga. prega-lhe um beijo. daqueles que sela o silêncio para sempre – depois. sem que o tempo tenha tempo para continuar. a vida aparece: the end – há gestos que se repetem. os corpos contorcem-se como se fossem amor. queriam mais. queria o som da voz a dizer: amo-te. amo-te para sempre. até que a morte nos separe – acabou – só os olhos disseram paixão. os olhos de um e de outro fecharam-se para sempre com o beijo – estou conformado. sempre foi assim. nos momentos mais belos os homens fecham os olhos e ficam em silêncio – depois. já com os corpos desenganados chegam as luzes. as lâmpadas ganham formas e a vida corre na esperança de encontrar um beijo que também a obrigue a fechar os olhos para sempre – saem os cegos. os coxos. os manetas e os loucos e todos aqueles que perdem a cabeça a cuidar de filmes onde os artistas mudos se repetem na vida sem tela. vida que consome o tempo presente dia após dia – ainda há lugares nas frisas com faces paradas. mas os rostos estão cada vez mais longe dos corpos – estou demasiado distante para entender o que as bocas dizem. mexem os lábios de uma forma descoordenada. os corpos vão para um lado e a voz fica ali sozinha à espera que algum corpo a queira ouvir – até queria ouvir. mas estou longe e não trouxe os ouvidos – é no cinema que gosto de passar despercebido – aqui nunca se fala



08/06/2011

clarice lispector









"Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silêncio? mas agora, por desprezo pela palavra, talvez enfim eu possa voltar a falar"




Clarice Lispector - A Paixão Segundo G. H.



07/06/2011

a orla





  fernando montes - boliviano
   o pintor do silêncio




um silêncio que vive dentro de tudo o que penso – a boca serve para mastigar a fúria das palavras que não digo – nos dias em que o contrário de satisfeito me encontra. deixo cair a cabeça – por detrás do reflexo. a sopa. cada vez mais fria. cada vez mais incapaz de aquecer as palavras. sempre mornas – regurgito – há um vai e vem entre a moela que trabalha com grãos de sensatez e o céu que não encontro à boca – há um inferno – ainda tenho palavras para dizer – escrevo – um dia morro sufocado neste meu silêncio – há quem pense que digo tudo. não digo. o silêncio é sempre mais forte. e os homens sem ouvidos foram sempre muitos – talvez não saiba contar. talvez nem todos fossem homens – talvez – estou a apagar-me. quero apagar-me. os dentes. estes. aqueles. não mastigam o suficiente para acabar com o silêncio dos homens que invadem os dias. agora os dentes já não são estes. aqueles. são todos - há um passado com homens. tinham horas. minutos e até segundos. eram homens de todos os meus dias – há ainda um silêncio vivo. mas já não é aquele. nem este. é tudo. é tudo silêncio – ainda – um dia serão palavras



02/06/2011

lobo antunes – este homem faz-me sofrer






Crónica da Pomba Branca – Quarto Livro De Crónicas


“ … Ignoro se sabem o que faço, julgo que têm uma ideia vaga. Há quem me trate por senhor Doutor e quem me trate por Sr. António. Prefiro senhor António: afinal de contas sou um carpinteiro…”




I –

não quero ser escritor – quero escrever. escrever como um carpinteiro – quero ser carpinteiro [como diz o lobo antunes]. quero escrever palavras com cheiro à resina. às colas. às pancadas do martelo. do serrote que vai e vem. do lápis que agarra à orelha todos os barulhos das palavras que aperfeiçoam o silêncio quando lidas – depois. depois deixo partir a arte de quem faz coisas com as mãos. onde compete o belo e o monstro – desta vez. talvez por encanto fugiu-me um pássaro pelos dedos. um pássaro gigantesco. com um bico pintado de sossego. no lugar dos olhos um arco-íris com mais de mil cores. as asas são tão grandes que nem lhes sei escrever o tamanho. sei apenas que estão presas a rodas e nunca param de esbracejar – são umas asas diferentes. esbracejam em silêncio sobre rodas que só andam para a frente – são mesmo diferentes estas asas. deixam-me ficar confuso. nunca vi asas correrem com rodas ou talvez voarem com rodas. não sei. não sei mesmo. nunca as vi voar só esbracejam. mas também não me parece que seja importante para o pássaro voar e para o carpinteiro vê-lo voar. há ali um acordo escondido que faz desta uma história diferente – as palavras continuam-me a cair em silêncio. largo-as do mais alto que as mãos alcançam. talvez não seja assim muito alto. penso que sim. quero acreditar que seja um pouco mais alto do que imagino. quero ouvi-las a cair aos pés. aos meus pés. mas não. não. pelo caminho transformam-se em água e no chão. aonde mantenho os pés firmes. sorriem agora apenas lágrimas – nunca nenhuma palavra nascida dentro de mim fará barulho. quebrará este silêncio pedra. este silêncio dor. este silêncio que não voa. um silêncio que por ser silêncio ninguém ouve – percebo então que o pássaro que fugiu dos dedos. quando corre ou tenta voar procura apenas um novo silêncio. outro silêncio . um silêncio que nunca tenha sido magoado –



II –

este pássaro não sossega. para trás e para a frente. e a vida do carpinteiro parada. parada em silêncio – este pássaro é maluco. doido. idiota. tem asas mas não quer voar. corre. como se correr significasse voar. nem lhe era necessário voar muito alto. bastava que voasse por cima de um livro. uma cadeira desocupada pelo momento. ou um quadro pendurado numa parede sem cor definida. geometricamente dividido. falo da tela. do sorriso da mona lisa feito por um artista que não podia morrer à fome. pintou o que lhe faltava – penso eu que também sinta falta de quem sorri. e quem sabe. digo eu ainda a pensar como se fosse um artista – depois de limpar os pincéis. atirou-se de uma ponte famosa de onde se atiravam artistas desiludidos – mas este pássaro não voava. talvez tivesse medo das alturas. e correr talvez o fizesse rir depois – não deixa de correr. corre preso àquelas rodas como se fosse livre da terra que o segura. talvez acredite na liberdade do homem-carpinteiro que o deixou escapar por entre os dedos – este carpinteiro é um homem. não. não. este homem é um carpinteiro porque dá vida à madeira. entende de madeiras. madeiras simples de pinho. daquele que se encontra em qualquer lugar de madeira. podia perceber de pau-santo. sucupira ou outra qualquer madeira nobre. mas não. só conhece o pinho – tem uma bouça com giestas. silvas. amoras. azevinhos. cogumelos e pinheiros bravos. muitos pinheiros bravos. alguns mais antigos do que ele. do tempo em que os animais falavam e as fadas apareciam a quem vive num silêncio magoado – este homem. este carpinteiro. quando não lhe apetece trabalhar é aqui que passa os dias. procura o pinheiro certo para uma ideia que ainda não apareceu. sabe que junto das suas mãos. em silêncio e sem a pressa do tempo. mais tarde ou mais cedo. sempre haverá um pássaro a fugir por entre os dedos. é por isso que gosta de ser carpinteiro. as mãos sempre fazem coisas que nunca imaginava possíveis – desta vez foi um pássaro gigantesco. diferente de todos os pássaros que já lhe voaram das mãos. este gosta de correr. só a correr é capaz de bater as asas – e lá vai ele. corre. corre. as asas sempre a bater vida. vida em silêncio. asa para cima. asa para baixo. asa para cima. asa para baixo. como se acenassem. talvez esta seja a sua própria forma de voar. voar para acenar. dizer adeus sem nunca sair da oficina de sonhos do seu criador – e o carpinteiro amarrado àquelas rodas. e a vida a correr como se também ele se transformasse num pássaro e as asas para cima e para baixo. cada vez com mais força. há alturas em que é capaz de jurar que vai levantar voo com o seu pássaro – não. nunca deixará a terra que o segura. nasceu amarrado a ela e é nela que se sente bem. afinal de contas é carpinteiro e os carpinteiros não voam.