.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

15/07/2022

dia ou noite

 





seis da manhã. a aurora empurra o escuro para a terra dos fantasmas. e interrogo-me: pertenço ao dia ou à noite? bem gostava de saber responder. mas não sei – às vezes é dia e quero que a noite aconteça. outras. é noite e digo: nunca mais amanhece – só quero o que não tenho. e tudo o que tenho não é suficiente para fabricar luz quando escurece. ou escuro quando aclara – por aqui ando a carregar esta gula embriagada de palavras. sorte a minha. um dia morrerei empanturrado com uma hipérbole – que se lixe. prefiro morrer com uma figura de estilo. do que ser atacado por uma faca de dois gumes – escreverei até que os dedos me caiam em caos. ou... o meu amor me chame para os seus braços



06/07/2022

o meu avô vive aqui

 




1.

o mundo é uma pintura surrealista. milhares de quadros. todos diferentes. de várias épocas. várias tendências. várias escolas. alguns de mestres. outros de habilidosos. e ainda daqueles que são bafejados pela sorte de uma pincelada de génio – na tela a arte é suportada em cores indecididas. ora com traços largos. ora finos. retos. com curvas para lá e para cá. e riscos que só os espíritos livres sabem distinguir – a fruição da arte foi assim durante séculos. do mestre ao pé rapado. do pré-histórico ao surreal. do renascentista ao naif. todos fizeram emergir o belo. cada um ao seu modo – para aristóteles o belo não pode ser desligado do homem. já que ele está em nós. é uma fabricação humana – às vezes. quando os quadros ficam de pernas para o ar. o artista estica o braço. endireita o pincel. fecha o olho cego. tira as medidas. acerta as sombras com a luz. e desrespeita todas as regras da criação artística: pinta como quer. e como bem lhe apetece. é a sua razão áurea – depois. coloca o quadro de pernas para o chão. e tudo lhe parece certo e colorido – a arte. ou a sua falta. são a sua identidade. a sua liberdade. pinta o que mais ninguém vê ou não sabe ver. e mesmo com um olho cego. é a sua escolha pintar ou borratar – tudo acontece por dentro. e logo aparece um nu se há beleza. um retrato se prefere eternizar a relevância. uma natureza morta porque dos vivos trata deus. às vezes naif. às vezes ingénuo. às vezes mais complexo de que o cubo rubik. pinta a manta com as cores que vão da imaginação ao hiper-realismo – e quando dá a última pincelada. assina com miserável desinquietação… xis. e promete um dia desnudar-se por inteiro perante o mundo critico que o persegue ou com vivas. ou ameaças de manicómio – pintam o presente para ser visto no futuro – cada traço é o seu autorretrato. e a cor o seu caráter. revelando-se de uma forma límpida e autêntica. numa simbiose mágica: todos veem a mesma pintura. e todos a sentem de forma diferente – a missão de vida de um artista é sobreviver a cada olhar. a cada leitura. a cada ouvido. a cada parecer. por mais injusta que lhe pareça ser – cada momento pertence a um único homem-talento. esse instante terá que ser obrigatoriamente respeitado e glorificado – o artista vive no seu mundo. quase sempre ausente da realidade. assusta reis e plebeus com mostarda pastel. se está zangado. pincela um vermelho irado. às vezes um verde esperança. mas o negro… essa cor de dor e luto. fica para si. é assim que se esconde do mundo – e a paleta de cores misturada ora faz raiva. ora faz luz. ora faz negrume. ora faz uma estrada que ninguém sabe onde acaba – às vezes diz apenas: aqui estou eu nesta arte que um dia me levará .ao fim do universo – os invejosos dizem que a cor é diferente e impostora. uma trapaça. escura de dia. florescente de noite. como se fosse obrigatório pintar o mundo com estilo – os indiferentes. apáticos. “não sentem. nem sofrem”. desapegados da arte e das pessoas. encolhem os ombros numa neutralidade dolorosa ignorando as cores e a mensagem – finalmente os determinados. assassinam a obra e o artista com um único golpe de língua. numa indiferença malvada e terrifica. e dos destroços imerge a interrogação: que é feito do negro que me encobre a dor? a quem pertence o meu belo?

 

2.

nunca serei escritor enquanto as palavras não escolherem entre a luz e a escuridão. entre o anonimato e a multidão – um dia. breve. assinarei o meu nome para uma eternidade qualquer. talvez pequena. talvez grande. ou assim-assim. quem sabe – bem sei que aos olhos dos leitores nada existe para além da arte. o artista é apenas a ferramenta da criação. às vezes ignorado. maltratado e incompreendido. existe como existem as auroras depois de uma qualquer noite. nascem – a arte é interpretada a gosto. sem sacrífico. sem tolerância. sem devoção. sem compaixão. sem harmonia. sem contraste. sem conceção – cada olhar uma sentença. às vezes morte. às vezes glória. às vezes habilidade. às vezes transpiração. às vezes nada. apenas indiferença. anonimato. vazio – é com a obra que os artistas se eternizam. indiferentes à passagem do tempo e dos homens. enfrentam a imortalidade com indiferença. generosidade e sobriedade – o belo e o seu julgamento em harmonia com a massificação artística torna-o também popular. a internet é o louvre dos artistas menores. não sabemos quem nos visita. mas sabemos que vamos por essa autoestrada digital. num silencio que não magoa – a arte já não sobrevive sem o louvor. necessita de aplauso à medida do seu valor – a morte existe para quem cria. só a obra resiste ao tempo. imortalizasse – por isso escrevo. para que se eternize a minha arte. que apesar de menor. me faz existir em cada palavra – um dia. os meus netos dar-me-ão vida a cada leitura. e dirão: o meu avô vive aqui