.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/10/2022

deambulações noturnas XLV

 



foto google



o meu mundo é cada vez mais pequeno. 
às vezes torna-se tão pequeno que só me equilibro em ponta dos pés



25/10/2022

pedras 5

 





[atena]

“segundo epicuro. para atingir a certeza é necessário confiar naquilo que foi recebido passivamente, na sensação pura e, por consequência, nas ideias gerais que se formam no espírito (como resultado dos dados sensíveis recebidos pela faculdade sensitiva).” – gostava de ter a certeza de epicuro. mas não tenho. nunca vivi passivamente. carreguei pedras que não lembra ao diabo. e quando conseguia livrar-me de alguma. logo dava uma topada noutra – o que quero acreditar saber. sem certezas porque nunca as tive. é que as pedras fizeram o meu caminho. pisei-as. suportaram-me. e cheguei até aqui – todo o meu percurso foi feito de sonhos e pedras: os sonhos. imolei-os em resignação. as pedras… são o meu jardim de inertes – trabalhei o meu próprio destino. mas não me canso de me interrogar: o destino está traçado à nascença? em boa verdade. acredito que o destino é o que encontramos depois da procura – se somos guerreiros. procuramos guerra. se somos agricultores. cavamos terra. se somos poetas. escrevemos poemas. a arte com que desempenhamos a nossa missão nos gratificará. ou punirá – e eu fui o quê? ainda não sei. o que sei é que não sou poeta e não sei fazer poemas. o que gosto mesmo é de prosa. que na maior parte das vezes é coisa idiota. ou um inferno para quem lê. e para mim. o estilista. aquele que liga as letras umas às outras. creio que sou um mártir. sempre que escrevo imolo-me num fogo que arde e não se vê – quando procurei aventura encontrei-a. à medida da minha coragem. quando procurei arte. sacrifiquei-me. à medida da minha mão. ofereci-me à deusa da sabedoria: mas atena não gosta de sonhadores – sei que posso sempre dizer que a arte não se define. e que cada artista. ou pseudoartista. cria a sua arte como bem a entende. ou como a vê. ou a sente. ou como o magoa – haverá sempre alguém que a olhará a nossa arte com sarcasmo. ou piedade. ou alegria. ou tristeza. ou com indiferença. sem nunca perceber que a arte é simplesmente aquilo que tiramos de nós. quase sempre. sem poder acrescentar nem mais uma vírgula. ou um ponto final. apenas porque o corpo não dá mais: a mão não escreve mais. o pincel não pinta mais. o pulmão colapsou. o verbo espatifou-se. e o corpo rende-se à invisibilidade – para a maior parte dos artistas a glória é um abismo sem fundo – é nesta altura que o artista se entrega a uma dor lacerante. que o rasga desde a mão a um imenso que não tem fim. e descobre que a arte. a verdadeira arte. vive apenas no olimpo. ao lado dos deuses. ou dos mestres. e esta. a sua. vive apenas dentro dele – o bem e o mal. o certo e errado. a honra e a vergonha. a sorte e o azar. a família que nos trouxe ao mundo. os amigos que conquistamos. é nesta roleta da vida que um dia apostamos tudo no vermelho. e sai o preto – as forças do universo também são insondáveis – e depois. já com o preto encrostado na pele. em luto profundo. tão profundo que os ecos dos lamentos se escondem no corpo. sorvidos pelos pulmões. pelos rins. pelo fígado. pelo cérebro. pelo pâncreas. ou em algum local que nos deixa surdos. aos poucos deixamos de nos ouvir – e o corpo de tanto calar. em desespero. pede-nos para implodir – colocamo-nos então perto do abismo. um pé em terra e outro na família. e no céu os abutres evocam-no com gozo para um último grito de covardia – raio de passarada. ignóbeis voadores. ratazanas do ar. quem vos ungiu com óleos consagrados? juntam-se em bando. como se fossem donos do destino. como se os tivesse fecundado e parido por minha vontade – e agora quase mártir. trucidado pela falta de honra. de bondade. de esperança. de harmonia dentro e fora de mim. o meu imperativo categórico. trazido de kant. ruiu como um castelo de cartas. a minha razão é apenas a minha razão. já não será mais uma lei universal. assassinei-me com o meu próprio punhal. espetei atena no coração – não há mais nenhum tipo de compreensão para um pseudoartista. a sentença é morte por asfixia. tão devagarinho que quando estamos prestes a deixar de respirar ainda acreditamos ser possível recuperar o que sempre esteve perdido: a arte – gostava de saber se escrevo porque penso. ou escrevo para me fazer existir? mas não sei – não confio em nada porque não tenho a certeza de nada – às vezes esforço-me para acreditar que o tempo fluiu em sentido oposto aos ponteiros do relógio. é quando me olho ao espelho e pergunto: onde está o sorriso da minha criança? perdi-me pelos dias. envelheci. enlouqueci. e aos poucos fui-me suicidando com pensamentos – viciei-me no passado. enleei-me em interrogações. apanhei overdoses de medo. ressaquei com dores insuportáveis. e recaí sempre que me livrava de alguma pedra – apunhalei-me centenas de vezes sem nunca ver uma gota de sangue. e chorei como choram as crianças. sem nunca me ter perdoado – o cabelo é agora branco. os olhos fugiram para trás das pálpebras. a boca já não consegue dizer palavras grandes. e os passos são pequeninos ao contrário das noites – só as interrogações continuam a magoar-me como dantes – a vontade de me estrangular com o que não sei é persistente. gostava de me fazer desaparecer e reaparecer em 2122. acredito que por essa altura a ciência já consiga transplantar cérebros – vivo agora e interrogo-me: sou obra de deus ou do universo?  ou cordeiro num altar dos sacrifícios? ou uma experiência de uma entidade extraterrestre? a angústia capturou a esperança. em resumo. às vezes estou meio morto. às vezes meio vivo. caminho de andarilho para chegar mais longe. num vagar doentio já que ninguém me espera. e peço ao universo uma porta para o que ainda tenho dentro de mim – se um dia ficar gelado. mesmo que ainda não seja a minha hora. juro que aproveito e fico morto para sempre – o tempo sempre foi meu inimigo. e para mim. sempre correu em direção ao abismo – mas agora. que a distância se torna cada vez mais curta. do que tenho realmente medo… é que um dia chova pedras – freud escreveu que os sonhos noturnos são desejos reprimidos que procuramos realizar. eu já não sonho. vivo apenas cada dia como se fosse o último. e também já não peço arte. peço saúde e paz interior 



14/10/2022

pedras 4

 





[gaivotas]

a minha única forma de evasão à loucura é a caneta. ou teclas – agora é tudo moderno. tudo tecnológico. tudo numa velocidade enfurecida. com gês para lá e para cá. a fabricar estradas que ninguém consegue ver. e as portas USB escancaradas a vírus que chegam sem se saber de onde. e mais fios. mais wireless. o antivírus a trabalhar como um louco. e o correio indesejado a entrar para SPAM. enquanto os convites para sexo virtual apelam à virilidade de um visa dourado – o corpo carregado de pedras e dúvidas. debruçado sobre letras. a tatear melancolia. e as luminárias acesas. a clarear as incertezas num espaço cerebral vazio de grandeza – juro que gostava de saber se escrevo porque penso. ou se escrevo para me fazer existir. mas não sei – talvez as pedras existam para fazerem de mim um terráqueo melhor. um género de livre trânsito para a imortalidade da alma. ou energia: quantas mais pedras carregares. mais constelações visitarás quando abandonares o planeta terra. e quem sabe. se as pedras forem mesmo grandes. do tamanho da taj mahal. um dia. terás um planeta sem pedras só para ti – é desta forma que o universo recupera a energia que acumulamos ao logo da vida: lava-nos. purga-nos do erro e das pedras. e depois. acolhe-nos para fazer de nós uma estrela. ou um cometa. ou outra qualquer coisa que vagueie pelo espaço – nada do que escrevo é certo. nada do que escrevo me leva para longe do mundo. ou para outra dimensão. ou planeta. ou me faz renascer – hoje. sei melhor do que ontem que tudo o que escrevo nunca passará de um rascunho. um amontoado de riscos quase inúteis. lixo. digo eu sem piedade – então porque escrevo? escrevo para repousar. para conseguir sossego. para viver o que as gaivotas vivem: surfar o vento. voar entre o mar e os astros. planar o sol. e sentir na pele a imensidão de uma terra azul. redonda. com almas. sol e sal – e ao fim de cada voo. quando regresso a mim. absolutamente saciado da terra azul. redonda. com almas. sol e sal. entrelaço-me nas memórias. e ali fico numa desapoquentação absoluta. a trazer à vida todos aqueles que não sou capaz de esquecer – estou algemado. preso às reminiscências. a respirar sofrido. a procurar um atalho que me devolva a serenidade das crianças – e por aqui ando. a recolher despojos da minha guerra. a absolver o erro “da minha culpa. tão grande culpa” batendo com a mão no peito vezes sem conta. afligindo-me. martirizando-me. angustiando-me. gerando dor até que esta se agigante e o erro se torne insignificante – tal como o ulisses se fez passar por mendigo para entrar em ítaca. também eu me farei passar por um ser de luz para entrar no universo – um dia. talvez daqui a um século. esse universo em que acredito. me regurgite novamente neste planeta azul. redondo. com almas. sol e sal. e quem sabe. dessa vez… sem pedras. apanharei uma estrada em vez de um atalho – viver não é fácil. fabricamos toneladas de amor. dia após dia. levamo-lo às árvores. aos animais. às nuvens. às montanhas. aos mares. nos canapés. nas festividades. aos amigos. até aos inimigos em forma de perdão. e quando nos sentamos diante do pôr do sol… chega a noite a galope. e leva-nos tudo: a terra azul. redonda. com almas. sol. e sal. leva-nos o amor. ficamos solitários. somos o mundo num mundo sem luz. e nenhuma estrela se senta a nosso lado. tornamo-nos mendigos. sem abrigos. ficamos tão sozinhos que o universo cabe dentro de nós – só nos resta esperar pelo dia para voltar ao amor. fabricá-lo é sobrevivência

 


08/10/2022

8 outubro [1924]








no passado. este dia era de festa - a família rodeava a nossa mãe. cantava os parabéns. e pedia vida longa - depois. entregávamos beijos. muitos. com sorrisos e carinhos - era um dia bonito. "como direi? era uma família absoluta" reunida em volta de uma mulher absoluta - hoje continuamos uma família absoluta. eu e a maria joão somos agora o porta estandarte desta família absoluta. e o que peço. é que a nossa memória coletiva seja também ela absoluta. a minha mãe. a vossa avó. a vossa visavó. foi o esteio desta família - com a idade começo a acreditar que [todas]as mulheres são a única razão porque o "mundo pula e avança"  


 

03/10/2022

pedras 3

 







[ao sétimo dia descansa]

 

I.      

em criança. ao domingo. o assado deslizava furtivamente pelo corredor da minha casa-família. *“era uma casa - como direi? - absoluta” – o génio da carne assada. em concertação com a doutrina da igreja católica. e também dos meus pais. libertava-se do aparador em folguedo anunciando aleluias: “bendito seja o senhor. que de dia em dia nos cumula de benefícios. salmos 68.19” – assim era a minha casa. de absoluta gratidão: eu. o meu pai. a minha mãe. a minha irmã. o meu irmão. a minha lurdes. todos felizes. todos crentes na senhora do sameiro. e gratos por nos acolher na sua graça e proteção – eram domingos absolutos. numa casa absoluta. num amor também absoluto. com comida melhorada. roupas melhoradas. sorrisos melhorados. e quando nada falta. nem se ralha. nem o pão amarga – a bondade de deus morava na minha casa – eu crescia num quarto enorme: uma cama de bilros parada a norte. duas mesinhas de cabeceira amarradas a dois abajures. e à direita um guarda-vestidos a esfregar-se no teto – a sul. uma cómoda aformoseada com um espelho mágico que. quando lhe perguntava quem era a criança mais feliz do universo respondia: és tu – à esquerda uma cadeira forrada a veludo. e uma janela aberta ao mundo. tudo iluminado por um candeeiro pregado ao teto – era um quarto feliz com uma criança absolutamente feliz. que sonhava sem saber que um dia ia crescer – antes do sino do carmo bater chamamento. já o cheiro à carne assada lembrava que era dia de comungar – depois de percorrer a casa absoluta. divisão a divisão. entra pelo meu quarto. e pé ante pé. toma de assalto o meu sistema olfativo e. delicadamente. desenlaça-me as pálpebras do escuro – as pupilas apanham as primeiras nesgas de luz. o corpo vira-se para um lado. depois para o outro. espreguiça-se até não crescer mais. sorri como quem acaba de nascer pela primeira vez. e abre-se graciosamente como um girassol para mais um dia a medrar

-- toca a levantar. vais chegar atrasado à missa

bradava a minha mãe socorrida pela lurdes

-- menino zé luisinho. levante-se já passa das onze

o sétimo dia era do senhor. e na minha casa as leis do senhor eram levadas a preceito. visitar a igreja fazia parte do cardápio domingueiro juntamente com sustento melhorado. “nem só do pão o homem viverá. mas de toda palavra que procede da boca de deus. mateus 4.4” – já com os olhos acesos de pressa. pulava do ninho e corria em velocidade para a casa de banho. atirava apressadamente duas mãozadas de água para a face. um pente corrido à feição do cabelo. e por fim. umas bombadas de laca para fixar a poupa – em espera. aos pés da cama. a roupa domingueira. bem dobrada e passada. a cheirar a sabão e generosidade; aprumava-me ajustando-a ao corpo. calça vincada. camisa alinhada. e sapato de couro polido a graxa. e pronto. bonito e asseado para receber o senhor em mim – de seguida. uma chávena de leite com cevada e uma bucha de pão. e lá ia eu em passo de quem é bem-afortunado  voava em perdão até à casa do meu senhor – mal entrava no templo dava de frente com o meu cristo pregado à cruz. confesso que nunca me habituei à brutalidade daquela imagem. àquele ar sofrido. com os olhos virados para o chão. com uma chapa em cima da cabeça a dizer que era o rei dos nazarenos. e ali pregado com taxas. com espinhos selvagens a magoar mais do que o corpo. e eu sem perceber de onde vinha tanta malvadez – aquela imagem roubava-me a inocência – fazia-lhe então uma vénia respeitosa desenhando com a mão direita uma cruz em mim. cabeça bem encaixada nos ombros. orgulhoso. vaidoso da minha prole. subia até ao altar-mor. ajoelhava-me pesarosamente para o sacrário. onde a píxide. o ostensório. e a eucaristia estavam guardadas. e logo procurava um lugar onde o santíssimo pudesse ver a minha devoção – sentava-me calmamente. e ali ficava estático até que a palavra litúrgica se fizesse ouvir – o sr. padre era um homem de palavra. anunciava a pregação para as onze e trinta. e ao bater da meia. lá vinha ele. sempre com cara de quem era perseguido pelo rei herodes – atrás dele. dois acólitos novinhos que. com as suas túnicas brancas. mais pareciam anjos acabados de sair da cozedura – sisudo. a olhar o chão. ajoelhava-se para onde o senhor estava escondido e. de seguida. abria o livro sagrado – ali estava eu. cheio de fé. sem nada que me pesasse no corpo. nem pedras. nem a consciência. nem pecados mortais. nem omissões – naquele tempo o pecado venial era a minha distração de criança. um palavrão ali. outro acolá. uma mentira à lurdes. uma resmunguice com a minha mãe. mas com o meu pai… não ousava sair da linha. tinha uma mão que parecia uma máquina de lavar. torcia mesmo a frio – velava a missa com devoção. levanta-me sempre que os crentes se levantavam. eles já conheciam o andamento litúrgico de trás para a frente. eu era noviço. mas quando o senhor padre arrancava a plissar com o ato de contrição. e proferia por minha culpa. tão grande culpa. batia com a mão no peito com tanta força que as costelas até rangiam – era um bom miúdo. sem nenhuma pedra às costas. sem culpa de nada. crente. já com a primeira comunhão feita. confessado e absolvido por três pai-nossos e duas ave-marias. puro como o branco. e com a alma entregue aos desígnios de deus até ao dia do juízo final – a missa ia andando no seu passo secular. e eu ia fazendo o que era exigido a um bom menino. rezava o pai-nosso. fazia o sinal da cruz com elegância. orava pelos falecidos. pelos santos. pelos infiéis. pelas missões. pela família. pela salvação do mundo. e cobria-me de vergonha sempre que o ministro de deus erguia a hóstia consagrada e dizia: “tomai e comei. isto é o meu corpo que será entregue por vós”. e a sineta. na mão de um acólico. agitava-se a exigir silêncio absoluto – eu também dentro de mim – depois. comungava. sentia deus tomar conta das minhas entranhas. pedia saúde. luz. proteção para toda a família. e esperava ansiosamente pelas últimas palavras do dono daquela gente toda: “ide em paz e o senhor vos acompanhe” – e lá ia eu em passo feliz. agora livre de pecados que nunca tinha tido – hoje. sei que nenhuma criança no mundo é pecadora – acelerava para um assado que não podia esperar. muito menos o meu pai que ao bater da uma estava sentado à cabeceira da mesa

 

II.

hoje é domingo. acordo. procurei pelo assado. cheirou-me a pedras. procurei pela minha mãe e não a senti. o meu pai já não vem almoçar há mais de vinte anos. e a lurdes. já não me manda correr para a missa das onze e trinta. sabe que perdi a fé – entreguei-me ao universo. serão as suas forças que me carregarão até a última morada: com fogo vos abandonarei. e em cinzas habitarei o mar – dessa casa absoluta resta-me a lurdes. a conspirar a nosso favor há cinco gerações; tratou dos meus bisavós. avós. dos meus pais. de mim e dos meus irmãos. das minhas sobrinhas. dos meus filhos. e agora é a bisa dos meus netos – a lurdes ainda mantem a mesma fé. devota da virgem maria. a nossa senhora. a filha de deus pai. a mãe de deus filho. e a esposa de deus espírito santo – todos os nossos problemas são negociados por ação direta da lurdes com deus. escuta a missa diariamente na rádio renascença. e em troca da sua devoção. pede proteção para todos aqueles que ama – acredito que não haverá ninguém mais influente junto de todo o poderoso do que a lurdes. fala com ele todo o dia. diria que são unha com carne – é a lurdes quem ainda pede perdão para as minhas faltas. jura ao seu deus que ainda sou o mesmo menino. só que envelheci e desencantei-me – este deus da lurdes nunca quis nada comigo. nunca percebi o porquê. nunca lhe fiz nada de mal. mas vá-se lá saber as suas razões. carregou-me de pedras – tempos houve em que acreditava na passagem bíblica - romanos 11.33: “quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!” – a lurdes diz que a minha falta de fé é obra do diabo.  coisa de satanás.  que tem mil chifres e mil formas de nos fazer pecar. mas que deus não dorme. está em todo lado. e nunca abandona uma ovelha do seu rebanho – não sei se é ou não verdade. o que sei é que tenho duas hérnias e já não tenho lida para carregar pedras que não mereço – vida severina. o tempo escapa-se de mim. e eu a correr sem saber para onde. como se ainda pudesse chegar a algum lado. como se ainda fosse possível voltar atrás e começar de novo. como se o sino do carmo voltasse a bater o meu nome – nos dias em que me dou ao mundo. olho para as mãos e pergunto: quais são os teus desígnios se o que penso teima em não se fazer palavra? estou agora preso ao universo de aromas. a recordar a minha fé absoluta. numa casa também ela absoluta. a pedir que o sino não bata a defunto enquanto não tiver respostas – preciso de saber se escrevo porque penso. ou escrevo para me fazer existir – agora. começo a habituar-me a viver cada dia como se fosse o último. a resistir. a sobreviver. e por cada raio de luz que colho. desato um sorriso ao universo. às vezes apaixonado. às vezes encantado. às vezes zangado. desiludido também. às vezes apenas por me sentir quase pronto para a invisibilidade. e é quando parto para o lado oposto de mim. e ali fico criança. à espera que o céu me caia nos braços

 

*herberto hélder