oselogios são sempre terríveis para quem gosta de escrever – primeiro tocam as campainhas da satisfação. depois. e quando o corpo retoma a forma do artesão. fica um ruído que mais não é do que um zumbido escrito nas mãos – o medo de errar é cada vez mais uma dor e o trabalho uma canseira insuportável – a imagem do belo está sempre associada a cada momento do leitor – estou agora na fase do zumbido continuado
tudo o que me resta é a memória e dentro desta guardo uma
vida com mais de milhentas vidas – sei que não me posso recordar de cada
fragmento de tempo. de cada voz. de cada face. de cada sorriso. de cada flor
que me ofereceram. ou de cada lágrima perdida em estados de alma que nunca
serei capaz de explicar – de manhã sou um. de tarde outro e á noite sou o da
manhã. o da tarde e o de mais uns quantos que não vivem em nenhuma parte do dia
– sei que estou a envelhecer. na alma também. sei que os olhos teimam em ver o
óbvio. que o amor é toque. e que as mãos se recusam cada vez mais a trazer a dor
ao corpo – não se escreve sem dor – faço anos. envelheço. sei. sei. e sei que
este saber é ardor – sei que me rasgo em cada aniversário. sei que corto os
pulsos. sei que arranco a língua. e sei que me suicido por cada vela. por cada
voto de muitos anos de vida. por cada desejo de que viva o dobro do vivido – sei
que cada aniversário me traz a confirmação da falência dos órgãos. da
imobilidade. das rugas. dos cabelos brancos. da dependência e da falta de
independência – a morte também acontece em fascículos – estou a ficar sem tempo
para tanta coisa que ainda gostaria de vos entregar. coisas minhas.
simplicidades que no vosso sentir pode não significar nada – mas creiam-me. se
hoje vos escrevo é porque amo a vida com todos os seus humanos. todos mesmo.
pois a todos eu devo tudo o que aos vossos olhos sou – hoje é um dia especial.
sei-o porque tenho memória e é dentro desta que vos guardo em gratidão – e por
isso vos digo: obrigado por caminharem comigo
1.pretérito
o meu mar – a primeira vez que senti
a imensidão do meu mar tinha os meus doze anos – as recordações anteriores não
eram do meu mar. eram de um mar de todos: da família. dos amigos de verão. das
barracas de pano listado. do homem de branco a gritar língua da sogra. do
cabo-de-mar. dos chocolates regina e de uma areia capaz de guardar para sempre
cada amor ali enterrado – no passeio alegre os altifalantes anunciavam uma
tristeza que não existia “o toque de silêncio” era abafado pelas brincadeiras da
miudagem. dos castelos de areia. da bola da NÍVEA. das caricas. dos búzios. da
chegada dos gelados OLÁ que se derretiam em mil e um encantos – éramos felizes
– o sol sucumbia num vagar que só o mar entendia e os barcos no horizonte
diziam-nos que o mundo é um ciclo. redondo. permanente e inesgotável – as ondas
recolhiam-se num silêncio medroso enquanto o vento norte sacudia do areal as
últimas toalhas de praia – era hora de recolher a casa – chegava o banho quente
e a salitre partia agrilhoada a milhares de grãos de areia polidos pela alegria
de quem tinha passado o dia aos mergulhos – a toalha nas mãos da minha mãe
limpava-me de todos os males – o mundo era eu – pela noite a sarronca anunciava
mau tempo para os adultos – era hora de ir para a cama. os sonhos nas crianças
nunca esperam pelo dia seguinte – boa noite papá – chegara o momento de receber
de volta o beijo do meu pai que às primeiras horas da manhã partia para o trabalho
– acercava-se o sono. o silêncio. e as estrelas em sussurros pediam aos anjos
para me levarem a alma para a dimensão do faz de conta – nunca mais descobri
esse mundo – ali permanecia eu enroscado nos sonhos e nos agasalhos dos meus
pais – a família é um compromisso de afetos – à família acrescentei os amigos e
com estes construí a idealidade do meu mundo – hoje sei que é o sonho de todas
as crianças do universo – agosto sempre será um mês de saudade e de encontro de
mares
2.encontro
final da tarde. sozinho. como
sempre gostei de estar – as gaivotas num voo planado sacodem o vento norte em
várias direções. enquanto eu. sentado num corpo dorido. descubro pela primeira
vez um mar que nunca tinha sido meu – ali estávamos os dois: eu e um mar imenso
– para mim tão desconhecido como os mares de vasco da gama – naquele momento.
toda a solidão do mundo estava no molhe da póvoa de varzim – descobri a
infelicidade – tomado pelo vento. ali estava: tranquilo. estático. disperso
entre o partir do sol e a chegada de uma noite que nunca mais acabou – pela primeira
vez percebi que a felicidade é o sal da vida. uma pitada a mais e somos salgadamente
infelizes. uma a menos. e ficamos perdidos para sempre numa infelicidade
insossa – nunca mais me desliguei do mar. da infelicidade e da noite – adotei o
mar e as gaivotas para me acalmar e é junto deles que me sinto sempre mais
perto da justeza com que me quis construir – mas mar é mar. ninguém por mais
forte que seja pode escolher o mar que lhe toca – o meu mar é apenas o meu mar
e a mais ninguém interessa o seu estado – no meu mar só eu sei navegar
3.essência
no meu mar haverá sempre um pai.
uma mãe. filhos. netos. nora e uma mulher que é maior de que todos os mares que
inventei – há uma ua maternal. uma irmã de luz e um irmão de paz – há sobrinhos.
sobrinhas e há outras sobrinhas que vi nascer e são sangue do nosso sangue – há
cunhadas. cunhados. sogra e um sogro que podia ser meu pai – há amigos que já
partiram e há outros que vivem dentro de mim – há amigos de cá e outros amigos
de acolá. e há aqueles que são de cá e de acolá – há amigos especiais que não
sabem falar mas que me aceitam com um único latido – há uma família enorme que
vem de tempos e terras que a história não sabe contar e traz nos gestos a
essência do que melhor há em nós – no meu mar há uma família ao nascer e a
mesma ao morrer – é no meu “mare nostrum” que um dia encerrarei o meu corpo – e
nada levarei comigo a não ser o seu perdão
4.epílogo
no meu mar há gaivotas de todas
as cores e desejos enterrados em ilhas imaginárias – há marujos de camisetas
listadas. há piratas bons e piratas com pernas de pau – no meu mar há deus. fé.
oração. pecado. perdão. ato de contrição e milagres por realizar – há sonhos grandes.
pequenos e sonhos que nunca se tornaram realidade e também há realidades que
nunca vi em sonho – no meu mar há peixes apetecíveis. horríveis. ferozes.
meigos. contrafeitos. autênticos e outros que por serem bonitos não cabem em
mar nenhum – no meu mar há peixes negros. amarelos. brancos. e também há peixes
com cores que não sei explicar – há gaivotas tristes. felizes. assim assim. e há
gaivotas que querem partir para terras que desconheço – no meu mar há peixes
como eu e peixes que não são como eu – há peixes miscigenados com amor de
outros peixes e peixes que por serem apenas peixes desconhecem o amor – no meu
mar há peixes grandes a comerem pequenos e pequenos a comerem o que podem para
não serem tão pequenos – há peixes esguios. e não esguios. redondos e não
redondos. quadrados. e outros que ninguém sabe dizer muito bem como são – no
meu mar há peixes que nunca tiveram um livro e há livros que nunca foram lidos
por não haver um único peixe que o quisesse ler – há ilhas cercadas de sol todo
o ano e ilhas cercadas de coisas inúteis – no meu mar há barcos com gente a
olhar os peixes e há gente à procura de um único peixe – há medo. mistério. naus.
fantasmas. tesouros e amores escondidos num areal que já não existe – no meu mar
há canhões. arpões e mosquetes com palavras que depois de disparadas são balas
– há lugares de luz e lugares onde as sombras escondem as memórias de uma
juventude que não esqueço – há lua cheia. estrelas do mar e sem ser do mar também
e há ondas gigantes que carregam amigos que já não voltam – no meu mar há uma
única varanda virada a sul e muitas outras viradas a norte – há desgosto por
coisas que não fiz e também há desgosto por coisas que fiz – no meu mar há homens
que nasceram do mar e há homens que um dia o mar levará – neste meu mar sou isto
tudo que vos escrevo mas também sou o que cada um quiser levar de mim – aceitarei
o vosso olhar. aceitarei o vosso juízo. aceitarei a vossa pena – peço-vos
perdão por tudo que não consegui ser – estou quase de partida. há mares que não
esperam
rabisco
afolho as palavras
na armação do tempo
o arval suspira
alinho as sementes ao sol
adubo-as com pequenos reparos
gulosas em minúsculas
é hora do lusco-fusco
entrego-me ao sono
que se diz
muito em poucas palavras às vezes
acredito penso que sou
poeta iludo-me e quero
acreditar que sou
fenomenal único e mesmo sem
falar basta-me um
gesto para ser um
génio do amor translúcido penso eu. então
digo-me: é verdade não escrevas não fales sorri apenas
alguém
acreditará que és especial.
mas depois
já nu de tanto meditar escolho um
mundo: redondo azul com mares com alma.
sol e sal cheio de
gente como eu aqueles que
são poetas só às vezes esfrego os
olhos e vejo lá no fundo onde a luz é
escassa e as sombras
são vida o choro esse… que nunca se
ouve é onde os
poetas de verdade se tornam homens onde nascem
as dores as desilusões as emoções as perdas as saudades as pessoas
perdidas os tempos
passados ou mesmo um
grande esforço para se ser
aquilo que nunca se será e aí… sinto a
falta das palavras.
revejo os
sons
do que
poderiam ser palavras faladas mas afinal
são vaidades de apenas
terem tempo para o ego
descubro
então
que afinal os poetas
nada dizem eles dizem que
dizem porque
escrevem mas não
transpiram não ofegam não sorriem não tocam não negam não gemem não olham são papel…
mas eu
homem deste
mundo redondo azul com mares com alma.
sol e sal cheio de
gente como eu esgotado para
todos estes poetas digo-lhes: digam-me na
cara nos olhos nesta alma
que chora nesta vida
que também é vossa digam-me apenas mais
que uma palavra mesmo que
seja gosto de ti
mas não
não… desculpem não chega eu quero
mais quero que
falem de vocês de mim do vizinho do irmão do vosso
amigo do meu amigo do mundo do vosso
mundo quero-vos
sentados quero-vos ao
meu lado quero esse
vosso olhar mesmo feio ou bonito não
interessa só quero que
não escrevam quero que
falem não se calem falem sejam poetas
de verdade
escrevo – quem diria que um dia
passaria o meu tempo a escrever o passado – aprendi a escrever faz tanto tempo – ainda
me lembro muito bem da minha professora primária - dona felismina. que bonita
que era - e de um diploma que trouxe para casa - dezassete valores. aprovado – devidamente
assinado e autenticado com selo branco escolar – um orgulho de diploma. ainda o
guardo – em casa tudo continuou como dantes. os diplomas só valiam quando davam
títulos
- - gostava tanto que fosses dentista -dizia a minha mãe
mas eu queria ser bombeiro. o
risco. a vaidade com que enfeitavam as fardas de medalhas. as sirenes. os
carros vermelhos. as escadas suspensas a vozear presa enquanto a esperança se
aguentava pendurada em mangueiras aflitas – eram homens bonitos e transportavam
com eles uma inesgotável e merecida reverência – eram os soldados dos afetos – passou
tanto tempo – agora sei que apesar do diploma nunca aprendi verdadeiramente a
escrever. uma mágoa que nunca irei sarar – também nunca cheguei a bombeiro –
mas daqui não me resta dor. não se perdeu um grande soldado da paz – estou em guerra
comigo desde que nasci – fiquei-me pela arte de juntar letras e assim me dar a
entender. com muito custo – resumindo: sou um minúsculo escritor autofágico. alimento-me
de tudo que é meu para escrever – e assim vou adiando a morte
que vos dizer amigos... de mãos dadas com a paixão dos tempos que por mim passaram sou feliz! de um lado a torre eiffel. do outro l´arc de triomphe. hoje. também meu em degustação o dinêr; “pavé de rumsteak grillé” e um bom vinho de bordeaux pelo olhar deixo cair um je t`aime em surdina recebo um olhar depois. um leve pisar do pé e assim vivo chegam “les deserts” “mille-feuille a la vanille bourbon” sem poder reclamar o coração diz mais um olá. somos assim! agora. aproveitamos o tempo café. s´il vous plait! entre abraços congelamos o frio somos afinal meninos e em chamas deslizamos pelo champs-elysées. em branco. pela iluminação que agradece acendemos mais uma luz. nesta cidade de luz paris afinal necessitava de nós. assim! despidos para a vida. é noite. e por aqui andamos a escrever o que um dia será passado nosso. e de quem nos lê