há momentos em que
morro – morro para me apagar do mundo – estar morto é bom. estar morto é o
contrário de ter memória. é sair do corpo. entrar por uma rua qualquer sem hora
de retorno –
perguntam-me: a que horas voltas
não sei. não esperem por mim. vão comendo. não deixem arrefecer a comida
– quando chegar como o que houver. aqueço os restos – sempre me dei bem com os
restos. liga bem com o que resta de mim – nos restos acabo sempre por encontrar
muito do que sou – não me importo de comer comida aquecida. às vezes até é
melhor. está mais apurada. como eu – também sou apurado – gosto de paladares
fortes. às vezes picantes. doces também. e salgados e insossos como nos
hospitais. com a enfermeira a gritar em voz dominadora: o sr. doutor mandou
fazer uma dietinha. tudo a meio sal. tem que ser sr. sampaio. é para seu bem –
quem é que sabe o que é melhor para mim. na
minha doença não há doutores
não gosto nada de comida a meio de qualquer coisa. ou é ou não é. ou
desce a garganta ou não desce – não suporto meias descidas. o meu paladar não
aguenta estas coisas do era e não era – para mim não há trinta e seis. só o
oito ou o oitenta – desde que a comida chegue inteira até pode tostar o
céu-da-boca –
merda. a comida está quente
pra caraças
é o único céu que conheço. sem constelações. sem estrelas. sem cometas a
indicar acontecimentos de coisas que depois não acontecem. sem descobertas de novas
galáxias onde meia dúzia de iluminados garantem que finalmente é possível
provar a existência de extraterrestres – no meu céu-da-boca a única forma de vida
resistente ao meu oito ou oitenta são organismos que vivem em comunidade com
outros que não dou importância: parasitas – este ser vivo aproveita-se de mim alimentando-se
de restos de palavras difíceis que. por não saber escrever. não sei engolir –
ainda não percebi ao certo se são
os parasitas que vivem das minhas palavras. ou pelo contrário. sou eu que os
alimento para não findar esta vontade de encontrar novas palavras
não importa – nada disto é essencial para deglutir o que me escalda o
céu-da-boca – importante é saber que a dor existe. não há palavra sem dor. mas homem
que é homem aguenta a dor – com o tempo fui aprendendo a proteger-me destas
peladelas maldosas. tantas vezes te queimas que passa a ser hábito – comer muitas vezes é um verdadeiro inferno.
mas se o que me chega à boca queimar dou duas voltas e mando tudo para baixo num
só trago – prefiro que me queime as tripas do que o céu-da-boca. um homem sem
céu não vive em paz –
o inferno conheço eu bem. já do
céu sei o que vou ouvindo pelas esquinas do inferno
mas se a comida estiver esfriada também engulo. com custo mas engulo. não
gosto de fazer dos restos mais restos – sempre ouvi a minha mãe dizer que
estragar comida é pecado – o que aprendemos em criança fica para sempre. e pesa
como chumbo. por muito que queiras modificar não consegues. afinal de contas
foi a tua mãe que disse. e mãe só há uma e onde há mãe há um céu que não queima
– por tudo isto não consigo estragar comida. prefiro estragar-me a mim. eu sou
forte. aguento tudo. e quando a força me abandona morro. morto sou mais feliz
do que quando estou vivo e não sou obrigado a comer o que não quero –
por favor não esperem. desta
vez não sei quanto tempo preciso de estar morto
quando deixo de acreditar necessito de ficar morto – quando estou morto
não tenho telefone. nem facebook. nem likes. nem email`s. máquina de lavar.
micro-ondas ou outra qualquer tecnologia que produza metamorfoses que me usurpem
esta vontade de morrer-catarse – inevitavelmente só a morte limpa o corpo. é
assim comigo – acredito nesta inevitabilidade. por isso quero morrer. não sei
por quanto tempo. mas também não é importante. o que me faz morrer não me faz
viver –
a
morte é a conquista definitiva do silêncio
quando morro encontro-me com um tempo só meu. um tempo de perdão. também
preciso de me perdoar e quem sabe aprendo a perdoar os outros com mais doçura –
quando estou morto esqueço os amigos. estimo-os demais para os obrigar a
estarem presentes na vida de quem morreu – amigo é coisa séria. não é palavra
vã. é sacrifício agradável – sempre que morro o barulho ao meu redor diminui. gente
que desconheço parte para locais que nunca saberei entender – gente. apenas
gente – desta gente que me abandona nada sei. sei que partiram porque o barulho
também partiu – um homem com barulho não consegue pensar. se falassem. nem
precisavam de falar para mim. bastava que falassem – gosto tanto de ouvir
pessoas a falar umas com as outras – mas perdoem-me. bem sei que não sou justo.
e logo eu que não suporto a injustiça. mas incompreensivelmente tenho amigos
que fazem barulho e gosto deles. gosto de os ouvir. não suportaria vê-los
partir para lugares que nunca saberia entender – não sou injusto. sou apenas um
homem –
os
homens dos oito ou oitenta acabam sempre por perder amigos – quem
fala expõe-se
quando chego da morte tenho sempre menos amigos à minha espera – já não
me importo. tanto se me faz. eles lá têm as suas razões e eu gosto
demasiadamente dos meus amigos para os questionar. quero sempre o melhor para
quem gosto – estou convencido que a culpa é minha. ando sempre a morrer de um
lado para o outro. não deve ser fácil ter amigos que morrem por tudo e por nada
– os tempos mudaram e os amigos já não são como antigamente – hoje cada amigo
tem a sua vida. e a maior parte dos que conheço nunca quiseram morrer. são
felizes com barulho e estão sempre a sorrir de coisas que não sei valorizar – antigamente
a palavra amigo era coisa de responsabilidade. amigo tirava a própria roupa do
corpo. para dar ao seu amigo –
dá cá
mais um aperto nestes ossos sampaio
o último tratado de amizade que li deixou-me com vontade de nunca mais
morrer por coisa nenhuma – o romance do escritor húngaro sándor márai. as velas
ardem até ao fim – nunca mais fui o mesmo. agora não me sai da ideia de um dia
poder morrer por uma amizade igual à do henrik. esperou mais de quarenta anos
para terminar o julgamento com o seu amigo konrad e assim poder morrer pela
última vez com o amigo de uma vida – os livros são sempre tão bonitos e ensinam
tanta coisa. tanta coisa de outras vidas – queria ser um livro assim –
como é
que vou encontrar uma amizade para morrer feliz?
desculpo com mais facilidade aqueles que meteram papelada assinada sobre
palavra-de-honra para uma amizade eterna e que. por um qualquer cansaço.
separaram o abraço e partiram com a coragem de uma despedida do que aqueles que
partem sem dizer que partiram– não gosto de perder amigos. tenho tão poucos e
espaço também – quando deixo entrar no corpo novos amigos os que tenho ficam
mais apertados. não é justo – nos dias de hoje nunca sabemos quem é o
verdadeiro amigo. é tudo tão passageiro. tão material. tão interesseiro – não
gosto de ver os meus amigos apertados por outros que não sendo verdadeiros amigos
ocupam um espaço reservado a afetos do coração – esqueço igualmente os inimigos.
os que fazem barulho e também os silenciosos. os indiferentes. os ingratos. os
mal educados. os desarrumados. os que lhes falta bom-senso e que por via disso
se tornam injustos teimando em atribuir a culpa ao feitio – todo o pecado tem
remissão –
o meu corpo cada vez está mais apertado
quando morro. sinto obrigação de morrer de vez. não gosto de morrer aos
bocadinhos – não sou capaz de fazer morrer o fígado num dia e no dia seguinte
decretar a morte de um rim. ou pior ainda. estrangular a garganta numa semana e
passado um mês silenciar os lábios – não sou capaz. não sou homem para deixar
morrer o que é meu aos bocados. mesmo que nenhum dos órgãos já não valha grande
coisa – não. não seria possível. não fui feito com esse fermento. não consigo
ficar a levedar para morrer atrancado de palavras azedas – quando morro estou
morto. estou todo morto ao mesmo tempo –
um homem de bem morto vale por dois
os mortos têm honra mesmo depois de mortos – não gosto que me tentem
ressuscitar com velórios harmoniosos. criados em tempo que não sendo genuíno já
não servem para coisa nenhuma e que por estar morto não ouço – estou morto
porque optei por morrer. certo ou errado gosto de estar assim é no mundo dos
mortos que melhor vejo os vivos – e não tenho dia certo para ressurgir. escusam
de esperar. vão às vossas vidas e não deixem arrefecer a vossa comida – a maior
parte de vocês não está preparado para comer a comida fria e muito menos
aquecida –
há palavras que por serem verdadeiras
não podem ser ditas em vida. magoam mais do que a própria morte
sou muito melhor morto do que vivo. morto não falo. nem me zango. nem
olho para o lado. nem para cima e muito menos para baixo – detesto olhar para
baixo quando tudo o que faço é para manter a cabeça em cima – com a cabeça em
cima tenho os olhos em cima. e os olhos nunca me enganaram – quando morro esqueço a falta que me faz ser
desejado. esqueço os que não tem amor próprio. os que não sabem que amar é dar
mais que receber. esqueço todas as dores que não são do corpo e as do corpo
também – quando morro esqueço que a vida
continua mesmo para quem está morto por tempo indeterminado –
morto compreendo melhor o mundo dos
vivos
não quero que esperem pela minha volta à vida. desta vez morro para
poder descansar da vida – há momentos em que é melhor estar morto do que vivo –
gosto de estar morto. quando estou morto tenho a certeza de que não posso
voltar a morrer. estou protegido da vida – * “Por vezes é preciso morrer para
ver melhor. Morrer para renascer.”
*“Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.” -
Paulo José Miranda