.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

25/06/2014

guilhotinei-me




google - autor desconhecido
 

I.

prostrado no estrado de madeira o tronco – guilhotinei-me. a cabeça rebolou em silêncio para o lado dos rejeitados repousando agora à beira do precipício – a norte. as testemunhas assistem vigilantes ao fim aguardando calmamente o último suspiro – olham uns para os outros. e num silêncio uníssono. agitam as cabeças para baixo e para cima – morta – na cabeça inerte só os olhos teimam em guardar o que resta da vida. abertos. fitam o mundo a sul. agora num plano raso. profundidade horizontal. olhos e vida deitados no mesmo estrado – tudo o que era vertical está agora nivelado pela linha imaginária do horizonte – o mundo também foi guilhotinado – nuvens tombadas. árvores tombadas. casas tombadas. janelas tombadas. chaminés tombadas com o fumo a desfalecer pelo chão. talvez morto. guilhotinado também – só as crianças se mantêm de pé – talvez o mundo exista para ser olhado de outra forma que não na vertical – agora está tudo deitado. tudo inclinado para perto da terra. a fazer lembrar a trágica constatação de eclesiastes : “Tudo caminha para um mesmo lugar; tudo vem do pó e tudo volta ao pó” – nunca me tinha apercebido de que para os lados também se faz vida. só quando estamos prostrados é que compreendemos que o mundo é feito de lados – aglomerados de pessoas marcam lugares como se fossem a rosa dos ventos. fazem vida para todos os lados. só o norte aponta sempre para o mesmo sítio. guilhotina – nunca vi uma rosa dos ventos enquanto suportei o corpo na vertical – talvez estivesse a olhar o céu. talvez estivesse à procura de uma estrela com o meu nome. nunca vi nenhuma. nem mesmo a estrela polar – crescer para os lados é a prioridade. crescer para o céu só depois de preenchido o intervalo vazio entre lados – para os lados crescemos em direção ao nosso semelhante. não crescemos para cima indiscriminadamente. crescemos de encontro uns aos outros e quando nos tocamos acabam os lados. ficamos ligados pelo toque. pelo encontro da pele e o que era esquerda é agora centro. e a minha direita é a esquerda de quem vem ao meu encontro – a fusão de pequenos núcleos formam um núcleo colossal. único. monocelular. e a teoria de einstein aplicada ao homem. um novo big bang dá origem a um novo planeta-luz – a radiação de luz solidária é uma nova recombinação molecular do material genético humano – talvez neste novo homem se possa aplicar a teoria renegada pelos físicos do estado estacionário – agora há matéria nova nos intervalos crescentes. o toque da pele é real – crescer para os lados é o triunfo sólido da evolução das espécies de darwin. evoluímos por processos naturais. crescemos em resultado do erro. da persistência para o evitar. da vontade de nos superarmos. crescemos porque fizemos da vida uma marcha coletiva. distinguimos o bem do mal. o homem do animal. o abraço do gelo. o beijo do punhal. a fé do desalento. crescemos porque a dor deixou a singularidade e fundiu-se numa pluralidade de inteligência emocional – foi assim que as montanhas cresceram. primeiro para os lados e só quando se tocaram é que cresceram para o céu – depois apareceram as nuvens. trouxeram água. de seguida os pássaros. os peixes. as flores. as árvores. e quando tudo era perfeito plantaram-lhe crianças a jogar à bola. às escondidas. à macaca. à estátua e por último desenharam-lhes na face sorrisos infinitos. sorrisos que nascem para lá da linha do horizonte – dentro dos sorrisos um planeta azul. redondo. com mar. sol e sal – não há crianças sem sorrisos – enquanto estive com a cabeça ligada ao tronco convenci-me de que só era possível crescer para cima. ingénuo. a ambição de crescer para as estrelas não dava tréguas ao corpo – as montanhas queriam tocar o céu. as árvores queriam tapar o sol. os rios queriam galgar as margens. e os pássaros de um lado para o outro a fugirem de mãos-prisão – nenhum pássaro vive sem liberdade. voar em sentido contrário às nuvens é a solução. voar para sul. voar para a terra quente. terra da fraternidade – só os pássaros voam junto ao céu. os homens nunca serão capazes de voar junto ao céu. o céu não é dos homens. muito menos daqueles que cortam a cabeça – para o céu só vão as crianças que cresceram para os lados – as crianças que conheço cresceram todas em direção ao céu. fizeram-se homens. algumas têm as cabeças presas por um fio. perderam-se em pecados terrenos e partiram para norte à procura da criança perdida – caminham descalços e a falar sozinhos. atiram pedras ao passado sem nunca acertar – o passado sobrevive a tudo. às pedras. às desilusões. às injustiças. às perdas. às lágrimas. ao arrependimento. à segregação. ao fim do corpo uno – o passado alimenta-se da dor. do erro. do equívoco. da frustração. depois vem o silêncio. a solidão e o fim dos sonhos – sem asas não há céu – os homens não têm asas. têm sonhos. mas nem todos os sonhos conseguem a voar  

 

II.

sinto a cabeça pesada. deve ser de estar parada nesta posição. a olhar a sul. sinto o cabelo desarrumado e não tenho mãos para o ajeitar – não sei porque me importa o cabelo agora se estou decapitado. quando tinha mãos nunca o ajeitava. andava sempre no ar e nunca percebi porquê. talvez fosse das correrias e agora que estou decapitado chegou-me a vaidade – resquícios da educação. um homem deve perder a cabeça asseado. ainda ouço a minha mãe dizer: esse cabelo está uma vergonha. tens que ir ao barbeiro. pareces um pobre de pedir – tinha razão. sempre fui um pobre de pedir. mesmo quando vinha do barbeiro com o cabelo cortado à navalha. sempre soube que o meu destino seria feito à lâmina – continuo com a cabeça ao pé do precipício. não me importo nem tiro os olhos da linha do horizonte. não quero saber. agora é tarde. sempre me dei bem perto dos precipícios. tal como ulisses também eu tive de me amarrar á vida para resistir ao chamamento das ninfas dos precipícios – nunca coloquei cera nos ouvidos. sempre gostei de ouvir: sampaio. sampaio. sampaio salta. salta. a felicidade está no desconhecido – em equilíbrio e num pé só. com o corpo a querer ficar e a cabeça a pedir para cair. com os pássaros a voar em círculo como se a morte estivesse anunciada pelo cai ou não cai da cabeça. a mão num dilema. apanho um pássaro. não apanho. só quero um par de asas. mais nada – ambição amaldiçoada – em frente aos olhos o céu estatelado. horizontal como eu. o que teria acontecido? será que também foi decapitado e tombou no meu estrado? não creio. o céu não me fazia uma desfeita dessas. um homem que corta a cabeça não quer o céu como companhia – quando nos guilhotinamos não queremos esperança. não queremos uma nova fé. queremos desistir. partir para um lugar onde ninguém saiba nada de guilhotinas. queremos silêncio – quero ficar só. quero abraçar-me sozinho. beijar-me. perdoar-me no tempo. não quero o céu no meu estrado. não quero – no céu só tem entrada quem morre a mando de deus – não me dou com deus – tenho a certeza de que deus não suporta ouvir o meu nome quanto mais chamar-me para o seu pé – confesso que também não ia. não quero como parceiro um deus injusto. sempre com a treta de que está literalmente em todo lugar. isto é. omnipresente – mentiroso. nunca o senti por perto – em mateus 18:20. jesus faz uma promessa aos que lhe consagram a vida a servi-lo: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” – treteiro. em minha casa sempre nos reuníamos em sua honra e nunca o senti no nosso meio – éramos mais de dois ou três. éramos uma família inteira – para perder a cabeça não preciso de nenhum chamamento. sou mouco há muito tempo. muito antes de começar a pensar em guilhotinar-me. muito antes – o dia está cinzento. cinzento-triste. talvez cinzento-descanso. mas que seja só cinzento. nunca guilhotinaria a cabeça num dia de sol. não quero ficar amarrado a nenhum raio de sol – o céu está deitado a meu lado para me ver fechar os olhos. apagar definitivamente o passado. sem pedras a magoar – talvez o céu me queira a dormir por uma última vez. quando durmo sou feliz. os sonhos nunca deixam de ser sonhos. confesso que a  alguns faço-os voar. transformo-os em gaivotas malhadas. das que não têm medo das nortadas – talvez consiga pôr o céu a dormir um soninho. pequenino. aconchegadinho. os dois enroladinhos um no outro por uma última vez – não é fácil. quem sabe se hoje é o meu dia da sorte – ficava feliz. nunca o vi de olhos fechados. anda sempre a correr de um lado para o outro. sempre a dizer que pode acabar tudo a qualquer momento e que a vida passa num abrir e fechar de olhos – se o céu adormecer a meu lado. nem que seja só por um momento. prometo que quando acordar não terá mais os olhos virados a sul aceitarei o destino com resignação e adotarei para sempre o norte como a minha última morada. prometo. nunca quebro uma promessa – o silêncio é agora verdadeiro. quando perdemos a cabeça do corpo o silêncio é de cortar à lâmina – as mão atadas atrás das costas suam enquanto o tronco espera pela absolvição de todos os pecados – não se move. sabe que perdeu a cabeça. não é a primeira vez na vida. já em outras ocasiões andou sem cabeça e nem por isso deixou de fazer o que estava certo. só não tinha as mãos presas – desta vez é diferente. o corpo sabe que nada voltará a ser como dantes – agora tudo vai ser muito mais difícil. sem mãos não vai ser fácil – também não sei se quero ver de novo as mãos desatadas – há nós que nunca se devem desatar. são feitos de destino. e no destino não se deve tocar – não percebo porque é que o destino me reservou este final de mãos atadas. nunca fizeram nada de jeito para merecer este castigo – quando digo nada é mesmo nada – se o destino me queria castigar. apertava-me o pescoço num laço apertado. e talvez assim tivesse evitado a guilhotina – não adianta. o que está feito. feito está. a cabeça está separada e para cá não volta – só encontro uma razão para as mãos estarem atadas. não me deixarem escrever – estupidez – não sei para quê. sempre que escrevo as palavras dizem coisas que a maioria das pessoas não entende. coisas que fui amealhando da vida – não é fácil dizer o que me vai na alma com as mãos atadas e a cabeça guilhotinada – estou doido. juro que não sabia. se fosse sãozinho não me guilhotinava  – tantas vezes me diziam: a escrever essas coisas um dia vais acabar no inferno – ninguém consegue chegar ao céu só porque tem a cabeça bem presa ao tronco. é preciso ter asas – não tenho asas. bem queria ser gaivota mas não sou – amo gaivotas. amo aquela liberdade de se atirarem contra o mar. contra o vento. contra o destino. com a coragem de construírem os seus abrigos em precipícios – mas agora com o céu de lado posso meter-me a caminho. talvez consiga chegar ao seu pé. mesmo que não leve a cabeça – estou mesmo doido. nunca pensei chegar a este estado de loucura – já não há mais mentira. o que sinto não é barulho. sinto o coração a baloiçar. num vai e vem que mais parece não levar a lado nenhum. cheguei a pensar que pudesse estar a soluçar. mas não. o meu coração já não sabe chorar.  o que sinto é o baloiçar puxado a vento norte – baloiça. para lá. para cá. para lá. para cá. num barulho que não é barulho. é silêncio sem retorno – baloiça com um corpo que por não ter olhos não sabe que este baloiçar é o perder da cabeça para sempre – não há arrependimento. um dia todos temos que partir. eu vou mais cedo. mas vou pelas minhas mãos e as guilhotinas são elegantes. vistosas. aparatosas. altas e as lâminas sempre afiadas. a cortar tudo de uma só pancada – poucos homens partem guilhotinados pelas suas mãos – o corpo bamboleia. para lá por força do vento norte. para cá escorraçado pelo vento sul. não há troncos sem cabeça a sul. a sul só se aceitam homens inteiros – é a guerra dos ventos e o corpo a bambolear contra o destino mesmo depois de perder a cabeça – neste ir e vir do corpo a cabeça mantém-se imóvel. olhos abertos. cabelo desarrumado. da boca nem um ai – não estranho. sempre fui assim. sempre andei para lá e para cá – não é justo. decapitei-me e mesmo assim não chega para poder descansar – nunca nada chega para este mundo que já não é céu. refém. dentro do corpo mesmo sem cabeça – talvez apareça uma mão a fechar-me os olhos. com os olhos fechados os sonhos voltam a existir e talvez alguns aprendam a voar – quando os olhos não abrem a noite fica eterna. os sonhos não acordam. a fantasia confunde-se com o real e as crianças nunca chegam a homens – quem sabe um dia o corpo acorda inteiro. acorda homem. acorda homem a jogar às escondidas. à macaca. à bola. á vida quase perfeita – infelizmente só a morte é redentora – é agora que creio na vida depois da morte. preciso de acreditar. mesmo que o corpo já não tenha cabeça para me dizer o que está certo ou errado – só quem morre sai do corpo e volta ao passado – é no passado que tenho gente à minha espera – decapitei-me e nem uma lágrima deito pelo homem que fui – o salmo 23  lembra que ele está ali. ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte. não temerei mal algum. porque ele está comigo – este ele é a minha esperança. não é deus é o meu pai





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