.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/06/2022

mesmo











não existe benquerença para palavras escritas em esquinas. mesmo que as ruas se dividam em comédia. mesmo que os corvos se façam andorinhas. mesmo que a fortuna prometa absolvição para os que caminham em contramão – um dia. em abril. respirei. e assim me fiz até onde nunca cheguei – não sei se respirei pela sapatada no rabo. ou por saber que a minha mãe me carregou nove meses magoados. o certo é que cresci. e assim me fiz até onde nunca cheguei – e agora. mesmo que não exista indulto para quem viveu morrendo. eu existo tal e qual como sou. mesmo que tenha pintado o inferno em cada dedo. mesmo que carregue um corpo apeado. mesmo que me rasgue num silêncio-perdão – não há misericórdia para quem não chegou a lado nenhum. mesmo que os braços se cravem em inutilidades. mesmo que a cidade não acorde quando pranto. mesmo que a sina prometa honra no óbito – e porque um dia respirei. sei que vou para o fundo da terra como os submarinos vão para o fundo do mar – que seja o meu nome castigado pelo que não fui capaz. apenas eu. nem uma única morada para trás. nem mil anos para a frente. que seja o presente a fragrância em desordem – e se amanhã a terra se abrir. que seja engolido de uma só vez. e que o inferno se apague em mim para sempre – nesse dia. talvez de agosto. quero que uma brisa fininha me leve para os braços da minha mãe. e se o que restar de mim se cruzar com o que não fiz. que seja o silêncio o meu atalho – e quando a dor se tornar insuportável. que o escuro tome a leveza da alma e me transporte para a morada de uma estrela. que se faça a minha vontade. que a carne desapareça em chamas. e o que ficou por fazer e dizer. se faça em sorte. e noutro mundo. ou não. eu exista dentro de mim – mas que importa o que escrevo em esquinas se a glória para mim é uma rua sem fim – estou morto. mesmo que insista em respirar. em olhar para onde nunca cheguei – nesta vida que pranto. seja o esquecimento a minha fortuna. o silêncio o meu perdão.  e que de mim… não se fale nunca mais


 

23/06/2022

que seja eu








 

num dia de março fiquei sem pai. o mar encrespou. a noite desvairou. e o corpo zarpou para tempos inquietos – mais tarde. em dezembro. perdi a minha mãe. senti-me sozinho. abandonado de tudo. amargurado – mais um ano e perdi a minha cunhada zeza. para no ano seguinte perder o meu sogro – desta vez senti-me no inferno. irritei. a tristeza galgou as margens e a saudade acomodou-se a magoar. a magoar muito – *“uma alegria exuberante (não moderada por nenhuma preocupação com a dor) e uma tristeza intensa absorvente (não mitigada por nenhuma esperança), ou desgosto, são emoções que ameaçam a vida.” – senti-me ameaçado e perguntei-me: que mal me chegará amanhã? parti então atrás de recordações e encontrei uma nostalgia que me fustiga num vagar cruel. absolutamente cruel – apesar da dor trazer habituação e aceitação. também traz confortação e aconchego às lembranças – o medo torna-se persistente e constante. e volto a perguntar-me: quem ainda me falta perder? que seja eu. que parta sem dizer adeus. com velocidade. como se fosse um foguetão. ou um astro que passa sem razão – e lá do sítio. quando a noite acontecer. que seja agora eu a por a mão por baixo dos meus borrachos – e nos segredos do universo a recomposição: o papá. a mamã. a zeza. o meu sogro joão.  o meu tio joão. e não sei quantos anjos e querubins. guardiões das preces. a cantar: salve. hosana nas alturas – o tempo flui. dobra-se. encolhe-se. curva-se. alimenta-se do futuro. de mim também. os dias aparecem e desaparecem como navios fantasmas. e a saudade a trabalhar. a martelar. às vezes nos dedos. a magoar. às vezes a vergastar – avelhento. apenas eu e o meu espelho. vou ao passado. e regresso a mim interrogando-me: que missão me trouxe à vida? não sei. talvez nenhuma. ou coisa parecida – sei apenas que a família é a minha morada – “por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne - Genesis 2:24” – esta é a minha missão. acredito. senão o milagre dos filhos não tinha acontecido – nada mais em mim me parece útil – mesmo que as vozes na terra me pareçam distantes. mesmo que os olhos teimem em escurecer. mesmo que os braços não abracem nunca mais. aqueles que amo estão sempre em algures no meu tempo – nenhuma família se constrói sem sacrifícios. sem compreensão. sem tolerância. sem respeito. e sem memória – cada um de nós foi abençoado pelos seus antepassados – cumpramos o que somos. nada mais nos é dado


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**Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.

 .

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.

E deseja o destino que deseja

Nem cumpre o que deseja

Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros

O Fado nos dispõe, e ali ficamos;

Que a Sorte nos fez postos

Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento

Do que nos coube que de que nos coube.

Cumpramos o que somos.

Nada mais nos é dado.

 

**ricardo reis

*immanuel kant