.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/09/2019

um dia










um dia serei apenas este que escreve. porque em boa verdade. neste mundo a que não pertenço. nada mais sou do que uma metáfora hiperbolizada – e aqueles. que por serem daqui. dizem que não sou o que as palavras dizem que sou. um dia. depois do sol cairdirão que afinal fui o que as palavras diziam – tudo o que realmente sou vive neste corpo estranho quem não sabe quem é. nem de onde é – morrerei feito palavra escrita. porque falar não sei e mesmo que soubesse quem me quereria ouvir? – talvez os peixes. talvez 




25/09/2019

vou ter saudades tuas










minha querida cunhada. não sei se me ouves aí no céu. mas se me ouvires. como quero acreditar. quero que saibas que vou ter muitas saudades tuas – nunca haveriam de existir estes dias de saudade no calendário. não sei quem os inventou. mas quem quer que tenha sido nunca teve uma cunhada como eu tive – tu sabes que nunca fui muito de lamechices. nem sei porque raio sou assim. gostava de não ser. mas fico sempre com a sensação de que quando gosto de alguém de verdade não preciso de muito espalhafato para lhe dizer: gosto de ti – eu sei que tu sabias que eu gostava de ti – mas hoje é diferente. hoje o calendário marca dor. viagem. saudade e preciso de todas as lamechices do mundo. preciso abraçar-te. beijar-te. olhar-te e dizer-te: gosto de ti. gosto de ti de como gosto do céu. do sol. do mar. das gaivotas. do silêncio das montanhas. sei lá que mais cunhadinha. gosto de ti daqui deste lugar que te perdeu até aí onde te escondeste – gosto de ti zeza. apetece-me dizer mil vezes gosto de ti. e mais mil que te adoro e que tenho muitas saudades tuas e que estou destroçado por me teres abandonado sem que me tenhas ouvido dizer: fica mais um bocadinho. só mais um dia. só mais um abraço – minha querida cunhadinha. o que faz um homem com esta saudade que nos magoa? se tivesse um carro com um motor potente. ou um foguetão. ou a varinha mágica do harry potter. quem sabe. metia-me no tempo em marcha atrás e debruçava-me outra vez nos teus braços. amarrava-te novamente essas mãos bonitas e obrigava-te a sorrir mais uma vez e depois. abraçávamo-nos numa despedida sem fim para que o tempo nunca mais andasse para a frente – vou trazer sempre comigo esse teu último abraço. vou segurá-lo dentro de mim. vou guardar esse bater magoado do coraçãovou amarrar-te a mim para sempre – desculpa zeza. não tive forças para te amarrar à vida – não me conformo que tudo tenha sido tão rápido – minha querida cunhada. foste tão corajosa. sempre que uma parte do corpo cedia lá inventavas tu uma desculpa para nos animares para logo de seguida te esconderes dentro de ti num silêncio fértil da consciência. alimentando de inocência essa alma ressentida e magoada de tantas interrogações e nenhuma resposta a não ser. adocicar essa dor que crescia sem parar com esses olhos de esperança – não vou deixar que partas assim. não te vou esquecer. quero lá saber dessa tua mania antiga de te ausentares do nosso mundo e depois. como se nada fosse. regressavas com um sorriso que ninguém levava a mal – desta vez não vai acontecer. vou-me encher de força e raiva e vou desviar o mundo para o lado melhor e falar-te. dizer-te que preciso de ti. de te ouvir. preciso dessa tua teimosia. preciso dessa forma como viravas as costas ao relógio. preciso desse teu jeito de me entrares pela porta a correr. preciso de ti tal como eras porque era isso que te fazia especial – agora só quero que a memória não ceda ao tempo e sempre que acordar vou querer acreditar que tu estás aí por perto. talvez a passear. talvez a comprar sapatos ou aquele creme para te tirar as rugas dos olhos e. quando perceber que afinal não estás onde os mortais estão. que a raiva me faça fechar os olhos e te traga ao meu mundo nem que seja por um minuto. ou um instante tão breve como um flash. mas que no clarão os teus olhos encontrem os meus e o que era escuridão é afinal o milagre da vida para além da morte – não quero saber nada dessa tua viagem. enquanto dormir tu existes porque a saudade só acontece quando estamos acordados – acordado ou a dormir vou dar-te a mão e vamos por essas ruas sem destino e. como o tempo deixou de ser tempo. talvez possamos apanhar o avião novamente para milão. visitamos a catedral. as galerias vittorio emanuele e depois. pela noite. voltamos ao mesmo cinema e assistimos ao mesmo filme e saímos a rir e vamos comer uma pizza quatro estações e falar do que só nós sabíamos falar. falar e rir. rir e falar. e dizer palermices. e rir. e dizer mais palermices. as crianças riem sempre da vida – tu cresceste criança – sempre que a saudade apertar vou-te telefonar e livra-te de não atenderes esse mamarracho. não venhas com aquelas tretas do costume de que deixaste o telemóvel não sei onde e que a cabeça está na lua e que não tens tempo para nada – sempre que a saudade apertar. doer e precisar de uma amiga vou buscar-te e sair contigo por esse nosso mundo fora. vamos ver o mar e prometo mostrar-te a liberdade das minhas gaivotas e depois. abrimos os braços e voamos até ao céu e quando o vento amainar e o sol cansar. sentamo-nos no areal. e ficamos em silêncio até a noite a chegar – o sol nunca morre. esconde-se para que possamos ver o brilho das estrelas – tu minha querida cunhada brilhavas como as estrelas – tenho a certeza de que quando estiveres devidamente instalada no céu e deres conta destas palermices que estou a escrever vais sorrir e achar que sou louco. e se calhar tens razão. e não é que não me tenhas dito isso tantas vezes. mas dizias sempre com tanta doçura e carinho que sempre achei que não era verdade – sempre achei que um dia destes íamos comer o gelado que te prometi e falar dessas nossas coisas excêntricas que só nós os dois sabíamos falar – éramos os dois loucos. loucos varridos. éramos amigos loucos – minha querida cunhada porque nos deixaste? porque raio não deste conta desse monstro que crescia dentro de ti – distraíste-te e agora quem paga somos nós que ficamos aqui a escolher a melhor foto. o melhor momento. a melhor conversa. a escolher a tua vida que queremos guardar para sempre – não foste justa comigo. não foste justa com as tuas irmãs que estão destroçadas. com a tua mãe que continua a dizer. e com toda a razão. que nenhuma mãe do mundo deveria perder um filho. para não falar na tua filha que agora vai ter que inventar mil desculpas por não te ter a seu lado naqueles momentos especiais – o que foste fazer minha querida cunhada – sinto tanto a tua falta. foram tantos anos de carinho. cumplicidade e amizade – a amizade de verdade é indescritível. não se explica. sabemos que aquela pessoa gosta de nós independentemente daquilo que realmente somos. faz-nos sentir bem. seguros e em paz – tu eras a minha amiga do coração – eramos amigos não porque um dia escolhi a tua irmã para viver comigo. éramos amigos porque olhamos um para o outro e percebemos que seria assim para sempre. ficamos amigos como se tivéssemos nascido na mesma rua. andado na mesma escola. jogado à corda. à macaca. sei lá o que mais minha querida amiga – sabes. sempre fui um otimista e também sempre achei que sabia ler o futuro. e não é que te imaginava com cem anos. encarquilhada. com mau feitio. a resmungar por tudo e por nada. em cima dos teus saltos altos. lábios bem pintados. cabelo esticado como só tu sabias fazer e a roupa com um aprumo que era capaz de jurar que a tinhas acabado de comprar – nunca te vi sem esses sapatos enormes que te punham na lua e tu nesse equilíbrio bem-parecido a caminhar como só as rainhas sabem caminhar – sempre caminhaste como se vivesses nas nuvens. como se fosses um anjo – primeiro foste uma boa menina. depois. envelheceste. mas nunca deixaste de ser uma boa menina. todas as pessoas boas são ingénuas. às vezes acho que essa ingenuidade era o teu jeito de nos dizeres que não querias ser como as outras pessoas. não tinhas os mesmos interesses. tinhas o teu mundo com as tuas cores – tu querias tudo simples. palavras simples. sorrisos simples e até o futuro que julgavas ser eterno o quiseste sempre simples – talvez já adivinhasses o teu destino – mas se o pressentiste nunca nos dissestes nada – vou ter saudades tuas minha querida cunhada. vou ter saudade de não ligares patavina aos telefones. vou ter saudades dessa teimosia que nasceu contigo como nos nascem os sinais na pele. vou ter saudades de todas as palavras que ao longo da vida me foste dizendo e que fizeram de mim aos teus olhos um ser tão bonito e especial – não era eu que era especial. eras tu. eras tu que vias o que mais ninguém via – vou ter saudade daquele abraço com que me recebeste naquele dia que entrei de rompante pela porta. tinham sido muitos meses sem nos vermos. correste e abraçaste-me de tal forma que nunca mais o esqueci – vou ter saudades minha querida cunhada de tanta coisa – como é possível a vida ser tão injusta. agora que tinhas encontrado o companheiro da tua vida. tinhas encontrado o homem que sabia fazer-te feliz. sabia que eras uma rainha – uma mulher não se faz rainha. nasce rainha – eu não sou crente. mas às vezes gostava de saber que estou errado. que quando partimos vamos para um lugar onde encontramos todos aqueles que gostamos e amamos – quem me dera zeza que esteja errado. se estiver. então. talvez encontres aí os meus pais e o nosso tio joão. talvez não estejas assim tão sozinha e se assim for. um dia destes. marcávamos aí um encontro para voltarmos a falar um pouco das nossas palermices – minha querida cunhada. quem é que agora me vai dizer essas coisas bonitas que só tu eras capaz de dizer – levo para sempre esse último abraço. choramos. apertamos as mãos e sorriste como se não estivesses a sofrer e enquanto eu me sentia perdido e arrasado tu viraste-te para a enfermeira e disseste-lhe: o meu cunhado é o sol da minha vida – meu deus zeza. e agora quem me dirá novamente uma coisa dessas – vou ter muitas saudades tuas. vou ter saudades desse teu brilho com que vivias a vida. vou ter saudades dessa luz que iluminava o caminho de quem vivia a teu lado – vou te guardar para sempre – por favor. toma conta de mim e dos nossos

pequenas grandes notas:

não seria justo não dizer que sou um homem orgulhoso da família a que pertença. a minha cunhada partiu sem que as suas irmãs a deixassem um único momento sozinha – do primeiro dia até ao seu último suspiro – nos últimos dias a zeza esteve sempre acompanhada pela família que a amava. despediu-se de todos com serenidade – um beijinho especial para a tia alcina e para a minha sobrinha renata que passaram as duas últimas noites em vigília ao lado da zeza – teresa e maria joão vocês deram sentido à minha frase: a família é um compromisso de afetos – é mesmo – continuo com uma cunhada fantástica e tenho a meu lado uma companheira maravilhosa que não me canso de amar

por último. um agradecimento especial ao seu companheiro que esteve sempre presente a seu lado – ele sabia que a zeza era a minha menina e terá a minha gratidão até ao fim dos meus dias – só tenho pena que não o tivesse conhecido trinta anos antes – mas a vida é o que é. e o importante é sabermos que o tempo na maior parte das vezes é uma ilusão – nessa contagem de tempo que os homens inventaram a  minha zeza foi muito feliz a seu lado – às vezes o tempo não é tudo – a minha cunhada levou o seu respeito. o seu afeto e o seu amor na sua viagem final – partiu em paz sabendo que foi a mulher de uma vida – desejo-lhe tudo que há de melhor para a sua vida – em mim terá sempre um amigo e mais do que isso. terá o meu respeito pela sua humanidade e honorabilidade – que mais pode um homem ter?