.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/08/2015

ciclo das pedras





foto - sampaio rego



 
 
rolam pedras
rolam sem parar
rolam sem ninguém as ver
rolam agitadas donas de montanhas
mas rolam
rolam
todos os dias rolam
rolam inchadas
rolam papéis
rolam livros
rolam prosas
rolam rimas
rolam até palavrões
mas rolam
rolam
todos os dias rolam
rolam paridas
rolam inveja
rolam cobiça
rolam piadas
rolam maldades 
mas rolam
rolam
todos os dias rolam
rolam quadradas
rolam cegas
rolam porque o outro rola
rolam por rolar as pedras
rolam arrogantes
rolam uma
rolam duas
rolam três
rolam de três em três
rolam cem
rolam mil e três
rolam de quando em vez

 
mas rolam
rolam
todos os dias rolam
rolam do rolar as donas
de tanto rolar
apagaram as montanhas
as nuvens
as árvores
os lagos
os rios
os peixes
a terra

 
mas rolam
rolam
todos os dias rolam
mataram os olhos
os ouvidos
as mãos
a boca
o nariz
o coração
como pedra rola
devagar
mais devagar
mas ainda rola
rola
só sabe rolar
cada vez mais só
no seu rolar
sem sol
sem paixão
rola como palavra inútil
um dia
deixa de ser pedra
deixa de rolar
deixa de viver
restará pó

 

 

 



23/08/2015

vou para o inferno




foto - sampaio rego


1.
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hoje penso em deus – confesso-me – cada vez tenho mais dificuldade em pensar no criador – já lá vai o tempo em que todas as noite. sem esquecimento. lhe devotava um pai nosso – o tempo passou. muito tempo. tanto que já poucas memórias me restam desse miúdo devoto – estou a entrar numa nova etapa existencial: olho-me pela vida e faço o balanço entre o deve e o haver – necessito muito de encontrar num novo silêncio. olhar para trás sem medo. compreender os novos chamamentos do corpo envelhecido. os novos apelos da alma em questões de fé – o que mudou no rapazinho imortalizado pela fé para um adulto descrente na eternidade dos céus? chegou a hora de pesar e contabilizar o que fiz mais e menos acertado – a vida é uma corrida feita em tempo supersónico onde a meta é sempre alcançada – a questão é saber como a vamos encontrar    aqui estou perante mim

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-- estou certo de que necessitarei de um grande contrapeso para equilibrar os pratos da balança

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a interrogação que coloco nos dias de hoje já não é tanto saber se devo acreditar ou não nesse meu deus do passado. nessa eternidade prometida – com os meus cinquenta anos feitos a dúvida coloca-se de forma diferente – para que serve um deus na minha idade? – na minha juventude. quando ia à missa do carmo. igreja que servia os paroquianos da minha freguesia. ouvia o padre carlos dizer: deus está em todo o lado. deus recompensa a justiça e a fidelidade de cada um. deus é justo. quem serve a deus de verdade nele descansa

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-- ora eu não descansei coisa nenhuma. culpa minha. talvez não o tenha servido com a fé de um verdadeiro crente  

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dizia aquilo com tal convicção que não havia alminha que não acreditasse na palavra do eclesiástico – este padre era quase tão importante como os santos parados nas paredes. parados mas vigilantes. nunca tiravam os olhos dos seus paroquianos e ai daquele que ousasse pronunciar o nome de deus em vão – o sr. padre carlos também não arredava os olhos dos seus fieis – a igreja repleta. de silêncio também. e aquelas almas todas a tombar o corpo para o lado de deus: oremos senhor. ámen – todos de joelhos – um gesto ao de leve da mão do sr. padre e todos os crentes de pé. um exército de fé incondicional pronto a marchar contra as injustiças satânicas comandados com a omnipresença do senhor – ele estava ali. está em todo o lado

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-- oremos ao senhor pelos jovens da nossa diocese que sentem o chamamento de jesus

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já não me lembro desse chamamento – o tempo apaga quase tudo. o caminho é agora assente em recordações a avulso e a perceção da justiça feita na perspetiva de uma alma pecadora recauchutada – não tenho medo da morte em pecado – a equidade já não é exclusiva do meu deus – agora também eu decido o que está mais certo e decido não aos olhos do senhor mas aos meus  que os alimentei do mundo que consumi – somos tempo e este muda tudo. principalmente o juízo do certo e o menos certo – a justiça é feita à medida da vida que escolhemos – pavlov chamou à correlação entre o estímulo incondicionado e a resposta incondicionada de reflexo incondicionado – as crianças reproduzem o comportamento que observam. o medo também pode ser aprendido – com a idade destrui a teoria e nenhuma sineta me faz salivar – não tenho medo de julgar contra a vontade de deus

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-- o acólito toca a campainha e dá-se o início da oração eucarística e a consagração do pão e do vinho em corpo e sangue de jesus cristo

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quem na minha meninice teria a ousadia de dizer que deus não era justo – népias. nem alma. todos temiam a eternidade do inferno – ninguém ousava altear a voz contra o meu deus. o deus de toda a minha rua. de todo o meu bairro. de todo o meu país – até a ideologia do estado novo tinha deus como chefe-mor – salazar mandou publicar: deus. pátria e família. por esta ordem de importância – ai de quem não acatasse a doutrina. a P.I.D.E. tratava-lhe da saúde – e assim se cumpria a palavra do ditador e de deus – também eu sou agora um ditador e a ordem das coisas alterada pela vontade da minha falta de fé em deus e na pátria. só me resta a família – eramos todos crentes. e o céu a nossa eternidade – não era fácil questionar ou duvidar uma fé que nascia com a primeira lufada de ar  

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-- a hora foi pequenina e graças a deus é perfeitinho. com a graça do senhor

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tudo era obra do senhor – assim nasci aos olhos de quem bem me queria: perfeitinho – ai se me pudessem ver por dentro – mas lá fui andando e vivendo com os olhos cravados em fé. queria acreditar no meu deus. no deus que sacrificou o seu único filho para que todos aqueles que nele acreditassem não perecessem. mas tivessem a vida eterna – a minha vida é cada vez menos eterna. a idade não perdoa – questionar era pecar e as portas do inferno abertas para uma perpetuidade a arder em chamas demoníacas – mas toda a criança cresce e com o crescimento do corpo cresceu também as incertezas da fé – com a idade a religião fica cada vez mais complexa. mais complicada de entender e explicar – deus não quer saber das nossas incertezas. não dá cavaco a ninguém – deus é deus. tudo o que permanece em mim é o seu silêncio. como sempre – habituámo-nos – no entanto. sempre acabei por  encontrar uma justificação para a sua mudez – imaginava-o com falta de tempo. ocupado. atarefado. a correr de um lado para o outro. uma mão aqui. uma criança salva. outra mão acolá. uma cura milagrosa. e o mar aberto mais uma vez para passar todos os males do mundo enquanto os mandamentos da lei de deus são cravados num céu onde todos os homens são justos – o mundo perfeito – um sinal nas alturas divinas a indicar o caminho merecido aos seus seguidores – o homem em plena harmonia terrena – deus era todo poderoso e o mundo dos homens íntegros – a fé estava por todo lado – na parede do meu quarto um terço enorme. em madeira. protegia-me de todos os males das trevas. enquanto em cima da mesinha de cabeceira um terço de nossa senhora de fátima. benzido com água sagrada. me protegia do medo do escuro – tantas vezes adormeci amarrado à fé da senhora de fátima – a noite é sempre tão escura para os inocentes –  não havia aposento em minha casa que não ostentasse um sinal de fé. uma cruz. um azulejo com um dos mandamentos de deus. um santo contra o mau olhado. e na sala de jantar uma tela enorme com a última ceia do senhor com judas em destaque – sempre existiram judas no meu mundo – era aqui que dávamos graças ao senhor por nunca nos ter faltado o pão – o milagre da multiplicação num lar de crentes agradecidos – vivíamos em estado de graça: fé. amor. saúde. trabalho e a mesa feita de fartura e tudo isto obra de um deus maior. dono de todas as vontades da terra – pecar era proibitivo para tanta gentileza divina – se me saía da boca um palavra mais atrevida logo a minha mãe me dizia: isso é pecado. nosso senhor não gosta dessa linguagem

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-- sábado vais-te confessar para domingo receberes o senhor sem pecado

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ir ao confesso para libertar o espírito. a alma do pecado. do erro. da desonra. ou da ignomínia da pior imperfeição do mundo – um palavrão dava direito à passagem pelo purgatório. e acrescentava:  

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-- uma alma deve estar sempre limpa pois nunca sabemos quando se cumpre a vontade de deus de nos chamar para o seu reino

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domingo lá recebia eu o senhor. o padre carlos no topo da igreja. ar seríssimo. tudo na igreja é sério. e os crentes todos alinhados. limpos. [na roupa também] confessados. sem um único palavrão. caminhavam passo a passo. solenemente. os olhos no altar em jeito de misericórdia e a boca entreaberta em benignidade pronta a receber o senhor purificador

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-- o corpo de cristo: ámen

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e lá vinha eu de cabeça baixa. expurgado de todos os males do mundo. limpo por dentro e por fora – finalmente puro. renascido para o mundo dos justos e do perdão – ajoelhava-me e ali ficava dois ou três minutos até que o ritual de purificação tivesse o tempo suficiente para não ser olhado de soslaio pelos meus parceiros de fé – nestas coisas da religião tudo tem o seu tempo – cristalino e lavado de todas as impurezas olhava agora o padre carlos olhos nos olhos – sentia-me gigantesco e grato com a divindade no corpo. tanta fé e a alma a inchar de orgulho com o senhor cada vez mais apertado dentro de mim – sentia-me diferente. um estado de paz e alegria silenciosa que nunca saberei explicar – muito menos escrever – finalmente os santos ganhavam vida. olhos largos. sorrisos abertos. apontavam-me o dedo enquanto os lábios pronunciavam em uníssono: és um bom menino – afinal os santos não eram apenas figuras de barro – estava em harmonia com a vontade de deus

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-- ide em paz e que o senhor vos acompanhe

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neste dia do senhor todo o cristão veste a sua melhor farpela para entrar na casa de deus – eu não era diferente – ali estava todo ajanotado. o orgulho da minha mãe. camisa engomada. sapato polido e um casaco a cobrir todas as imperfeições do corpo enquanto o cabelo caía para o lado de deus em perfeita geometria com a orelha. metade coberta e outra metade pronta a ouvir a pergunta sacramental da matriarca ao chegar a casa: de que cor era a batina do sr. padre – a minha mãe tinha que confirmar a minha lealdade aos mandamentos do senhor – ela sabia que satanás era mestre em desviar os menos devotos do caminho da virtude – os seus cuidados nunca eram demais para um filho que se quer como exemplo – é domingo e deus disse: ao sétimo dia descansarás. para que descanse o teu boi e o teu jumento – não tardava nada estava em casa a almoçar uma belíssima carne assada enquanto o meu pai descansava fazendo a vontade ao senhor – só a minha mãe não respeitava a palavra do senhor. era ela que cozinhava – as donas de casa nessa época tinham uma bula pontifícia para poderem alimentar a família de pão e amor  ao domingo

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2ª parte - brevemente



13/08/2015

deambulações noturnas - IX





foto - sampaio rego



na procura da felicidade nunca encontro abrigo nos meus pensamentos – estes. deixam-me sempre angustiado pela quantidade da informação produzida ininteligível – escarnece sem piedade. como se pensar fosse ato abominável – encontro sempre algo para comparar com o que já fiz e emendar o que penso fazer – nasce então mais uma dúvida – a felicidade distancia-se. é mais dada às certezas. magnificência que o meu pensamento ainda não adquiriu – tenho agora a esperança que a morte traga a felicidade eterna. o pensamento será derrotado com o parar das pulsações – e assim alguém dirá por mim: não pensa. logo não existe.