terceiro dia de trabalho - III
7.30 da
manhã entro na fábrica. com um pé qualquer. ainda não tinha compreendido
que na vida um pouco de superstição não faz mal a ninguém. encantonei-me
junto à secção de corte. sem saber muito bem o que me esperava.
nervosíssimo e cheio de temor. com os olhos escondidos. aguardava
pelo toque das oito – as mulheres-operárias iam entrando. marcavam o
relógio de ponto. uma a uma davam o bom dia ao filho do patrão. deitavam
os olhos ao chão e esgueiravam-se em passo ligeiro para o seu posto de trabalho
– a meu lado. os meus colegas de corte arrumavam-se calmamente nas suas mesas
e começavam a amolar as facas. num vai e vem da lâmina. rompendo
a lixa e o aço. ora com um lado da faca para baixo. ora para cima.
num movimento de pulso firme e ritmado. certo. como se houvesse
um metrônomo a marcar o tempo de ir e vir – as mulheres mesmo sem quotas.
não havia ainda a lei da
paridade. estavam em grande maioria. sempre estiveram
neste ramo da confeção – os minutos galopavam. a ansiedade acompanhava o
galope do relógio. sem imaginar que iria dar início a um trabalho de vinte
e dois anos – quando levantei os olhos do chão mesas e máquinas estavam preenchidas.
embaladas por um barulho miudinho. cochichos sobre a minha chegada. ansiosas por saber que função iria ocupar o filho
do patrão – seriam mais ou menos umas quarenta mulheres. mais quatro
homens no corte. um nos acabamentos. um no armazém. e mais
três administrativos incluindo a minha irmã – o pessoal da contabilidade só
entrava às oito e trinta. era gente com outra graciosidade nos gestos e
na fala. mais citadinos. mais cultos. e por via desse refinamento
eram donos das contas e do guito – a campainha começa a zoar tocada pelo
encarregado geral. oito horas em ponto. nas fábricas não há tolerância
de ponto. oito horas são mesmo oito horas – no fim do zunido uns
microssegundos de silêncio que se estendia por toda a fábrica – uma explosão de
barulho arrasa todo o silêncio. as máquinas de costura arrancam agitadas.
tinham pela frente oito horas de ziguezague – era um trabalho duro e de
muita responsabilidade. na pele não se pode recuar um ponto. para
além de que uma qualquer desatenção e o dedo fica debaixo da agulha – um
ofício de costas dobradas. braços a carregar material. pernas no
pedal. e olhos fixos numa agulha que não pára de saltar para cima e para
baixo. sem dúvida o trabalho mais pesado de toda a produção – todo mundo
labuta. ao contrário do liceu que havia sempre uma quantidade apreciável
de mandriões como eu. só trabalhava quando me apetecia ou quando
resolvia frequentar as aulas – o meu irmão já estava a postos. pegava
também às oito e era sempre certíssimo. um autêntico relógio suíço.
dos caros. nunca se atrasava. nunca o vi chegar depois da hora – a
minha mãe metida no meio das mulheres distribuía trabalho. sempre numa
fona. chamava por esta e aquela. tudo girava sobre a sua
orientação – sempre com um ar de preocupada. como se trouxesse o mundo
às costas. rodava de mesa em mesa mimicando com autoridade – depois
da ronda. estando todo o material distribuído e certa de que nada as
faria abrandar. embrenhava-se numa mesa a ajudar – o sr. arlindo. encarregado
geral. veio ter comigo. leva-me para a mesa dos forros.
chama um cortador. o alberto. o mais qualificado na arte de
golpear a pele. manda-o preparar uma faca e uma tala da lixa para amolar
o fio. e recebo a minha primeira lição de amolador – confesso que nunca
me dei bem com os amolanços. nunca consegui pôr o fio da faca como um profissional.
ficava sempre mais parecido com um formão. não havia manómetro que me
guiasse a mão. o que me retirava eficácia. os cantos e
reentrâncias precisavam sempre de duas ou três passagens para concluir o corte.
uma desgraça – colocam-me em cima da mesa os moldes de uma determinada bolsa.
nunca imaginei que levasse tantos. teria trinta a cinquenta.
felizmente que os do forro eram menos. mas mesmo assim. quase uma
dezena. uma loucura – o alberto começa a colocar os moldes em cima do
forro. chama-me atenção para o desperdício e alerta-me para a necessidade
de os encaixar uns nos outros. era fundamental evitar perda de material.
no poupar assentava a arte de um cortador de primeira categoria – por último o
perigo da faca resvalar no molde e cortar um dedo. claro que não evitei
alguns cortes. era um tosco habituado à esferográfica – e pronto.
tinha chegado o momento de mostrar o que valia. estava por minha conta.
não podia estar melhor preparado. anos e anos de malandrice e dez
minutos de formação profissional – não me lembro quantas forros fui obrigado a
cortar naquela minha primeira referência. mas também não era importante.
o trabalho nunca acabava. ao contrário do meu estudo que acabava sempre antes
de começar – ainda não tinha chegado o meio da manhã já eu dava voltas e voltas
à minha cabeça. percebi rapidamente que foi um erro. não tinha
necessidade nenhuma de ali estar. nem mesmo por ser um estudante
medíocre e pouco aplicado – o orgulho matou-me. empurrou-me para um
mundo que só passados muitos anos percebi. e apesar de me ter apaixonado
pela criação de moda. que nunca fui verdadeiramente eu naquele ofício.
nem creio que os meus irmãos também alguma tivessem sido inteiramente felizes –
não somos da arte dos negócios. somos emocionais. e quem vive do
coração nunca é um bom industrial – tudo fiz para esconder este meu lado
afetivo. durante muitos anos fui o patrão mais exigente dentro daquela
empresa. algumas vezes muito duro. tinha objetivos que queria
atingir. queria ser o número um – naquele tempo lidar com o pessoal era muito
complicado. ainda não se falava em produtividade como nos dias de hoje.
e muito menos em competitividade – havia um outro sector da empresa muito
importante: os vendedores. eram um pouco como os propagandistas.
lábia e uma ladainha consistente fazia toda a diferença no total de vendas – nunca
gostei de vender. ainda hoje não gosto. tínhamos seis ou sete
vendedores espalhados pelo país. mas quando era exigido a presença de um
responsável da empresa junto de um cliente. pedia sempre aos meus irmãos
para me substituírem – os dois eram muito melhores na arte de impingir
mercadoria. principalmente a minha irmã. tinha herdado esse jeito
do meu pai. eram mais profissionais. vendiam mesmo sem gostar.
para mim isso era impossível. para além de serem mais atenciosos.
mais sorridentes – o que eu gostava mesmo era de estar dentro da fábrica.
gostava de máquinas. do cheiro à cola. à pele. e daquela
gente que com as mãos fazia quase tudo – mas onde me realizava. era no
gabinete de design e modelagem. era neste espaço mágico que se criavam
todas as coleções – fomos a primeira empresa do ramo a ter uma equipa de
modelistas. o crescimento da empresa a isso obrigou. no começo a criação
de modelos era feito pela minha mãe. quem mais poderia ser – esta equipa.
não faziam mais nada a não ser tratar da criação de novos modelos – era um
trabalho infernal. de seis em seis meses tínhamos que criar sessenta
modelos de bolsas. cinquenta cintos de senhora. mais uma dezena
de homem. quatro ou cinco coleções de viagem. tendo cada coleção
pelo menos vinte a trinta modelos. e mais quase uma centena de
marroquinaria de homem e mulher – quando terminávamos as coleções estávamos completamente
esgotados – a par da confeção dos novos modelos tínhamos que calcular a
previsão de vendas. guiávamo-nos apenas pela experiência e intuição. só
com esta arte de adivinhação era possível começar a fazer compras da matéria
prima. milhentas coisas impossíveis de enumerar. trabalhávamos
sem rede. o fabrico era feito em cima das vendas – era um trabalho
extenuante. às vezes completamente louco. os problemas
sucediam-se e o improviso era a nossa segunda arte – hoje sei que não seria
possível manter aquele ritmo por muito mais tempo. era imensamente
desgastante. valia-me a idade e uma vontade enorme de vencer – depois do
encerramento da fábrica fui pela primeira vez verdadeiramente feliz. não
por escassos momentos. mas durante muito tempo. nem sabia que era
possível ter tanto tempo para ser feliz. reencontrei-me com a família.
voltei a estudar. e finalmente. comecei a ler. a minha
grande paixão. e logo logo comecei a escrever. faço-o há vinte e
quatro anos. todos os dias. seis horas no mínimo – há males que
vem por bem. nunca teria sido o pai que fui. nem o marido. nem
teria sabido separar os bons amigos dos maus. tornei-me exímio nesta
triagem. rapidamente percebo o que está dentro do embrulho – no entanto.
tenho que ser sincero com uma coisa. tudo o que sei e o que sou aprendi
na nossa empresa familiar. e aprendi imenso. entrei um miúdo
irresponsável e aquela gente fez-me homem. prepararam-me para a vida.
foi uma experiência fantástica – confesso que nunca recuperei totalmente
daquele encerramento forçado da empresa. estávamos a escassos anos de
nos tornarmo-nos líderes destacados do mercado nacional. fiquei muito
zangado. com raiva dos políticos. os primeiros tempos foram muito
difíceis – não sei se alguma vez vou conseguir dormir sem que os pesadelos me
assaltem o descanso. às vezes dói muito – a fábrica deu-me autoestima.
acreditava em mim. acreditava que tudo o que fazia teria sucesso.
e tive muito. e quanto mais sucesso. mais queria. queria sempre
fazer mais coisas. queria aumentar a produção. fabricar novos
produtos. queria estar sempre na vanguarda da moda. queria ter a
primeira cor. a primeira inovação. a primeira máquina.
queria um mundo perfeito. com o envelhecimento compreendi que o ótimo é
inimigo do bom – tinha tantos sonhos. não pensava em mais nada a não ser
tornar-me cada dia melhor. tinha a certeza de que mais tarde. ou
mais cedo. seriamos uma marca de referência nacional e internacional –
apesar de ser muito exigente com todos os colaboradores nunca disse não a
nenhum. fosse o que fosse. tantas vezes critiquei o meu pai pela
proximidade com os funcionários e aí estava eu. igual ou pior – o mais
difícil era gerir os egos dos chefes de secção. passei as passas do
algarve para manter a equipa unida até ao último dia da empresa.
felizmente nunca me abandonaram. principalmente a margarida e o paulo.
morreram como árvores. de pé. agoniaram a meu lado. e
deram-me a oportunidade de encerrar a empresa com a dignidade possível.
fizemos contas com todos os trabalhadores. apenas uma funcionária não
aceitou o acordo – ainda hoje. sempre que me cruzo com qualquer um deles.
saudámo-nos com carinho. é bom saber que ficaram com o melhor de mim – o
mundo do trabalho é complicado para qualquer pessoa que está a dar os primeiros
passos. acredito que em todas as profissões o primeiro dia será sempre
lembrado. mas eu tinha levado uma vida de rambóia. sempre bem vestido.
com dinheiro no bolso. com os mesmos amigos de rua. amava os meus
amigos. a partilhar todas as brincadeiras de manhã à noite. a planear
passeios e viagens à volta do mundo. a olhar as pernas das minhas
colegas de liceu. agora levemente escondidas atrás de minissaias.
a não ter que pensar no dia seguinte. a mandar o futuro lixar-se.
e de repente. tudo tinha acabado. estava prisioneiro do toque da
campainha – na fábrica não se parava de hora em hora como no liceu. o único
toque de intervalo era para almoçar. não podia ir ao bar como habitualmente
fazia nos intervalos da escola. nem ao badalhoco. um tasco em frente
ao liceu sá de miranda. comprar meia sêmea com chouriço. não
podia fazer piadas. fazer charme. namoriscar. gazetar.
não podia tudo. estava aprisionado numa cadeia em que o guarda prisional
era o meu pai – na fábrica ninguém falava. a única linguagem permitida era a das
máquinas. que mesmo fazendo muito barulho nunca conseguia imitar a saída
dos alunos do liceu. nós fazíamos muito mais chinfrim – rapidamente
percebi que o trabalho era levado muito a sério – ao fim das duas primeiras horas
não tinha feito nada. a faca não tinha desenrasque nas minhas mãos.
e as mulheres de volta da mesa a perguntar se já tinha os forros cortados –
comecei a ficar preocupado. percebi que a continuar assim estaria metido
num rico sarilho. iria passar uma vergonha no meio da mulherada – ao fim
do dia já era outro. não digo que fosse um cortador de primeira.
nem de segunda. mas a faca já corria nas mãos e os forros começaram a
estar prontos sempre que me eram solicitados – ao segundo dia já acumulava obra
em cesto e comecei a ter mais vagar para pensar no que realmente estava a fazer
naquela mesa de trabalho. porque se cortava daquela maneira e não de
outra – no fim da primeira semana já tinha colocado tudo em causa. e
pensei: se encontrar uma forma de cortar mais rápido os forros.
quem sabe. posso dar à soleta mais cedo – a minha motivação não era o
trabalho. mas sim pisgar-me rapidamente daquele inferno – não conseguia
esquecer os amigos. de cada vez que cortava um forro assolava-me o
fantasma da rua. das brincadeiras. da boa vida – já passou muito
tempo desde esse meu primeiro dia de trabalho. o meu pai e a minha mãe
já estão confortavelmente nalgum lugar sagrado. vivos. e com
saúde. só mesmo os meus irmãos. por isso posso escrever a minha
verdade. aquela que guardo. e fazer deste pedaço da minha vida.
um ato de contrição. acreditando que já estou perdoado por tudo que
tenha corrido menos bem – por esta certeza. e com a idade a crescer numa
corrida de velocidade. permite-me
qualquer tipo de confissão. o tempo lava a alma. e com a
“velhice” percebemos que o que era importante na juventude. agora com
cabelos embranquecidos. ou sem eles. já não é – como já escrevi
várias vezes: o que não é realmente importante. não o será mais
tarde. ou mais cedo – no entanto. sou obrigado a reafirmar.
que estas são as minhas memórias. que talvez não estejam isentas de erro.
são simplesmente a minha vivência sobre os factos – acredito que os meus irmãos
possam ter uma outra opinião. o que é normal e compreensível. aprendi
a não me colocar no lugar dos outros. a não ser para compreendê-los – para
justificar este meu receio sobre a memória e o que ela tende a guardar. vou
contar uma história engraçada que me aconteceu há relativamente pouco tempo –
quando eu tinha os meus nove anos. estudava no conservatório de música
calouste gulbenkian. estávamos no período de carnaval. e já nesse
tempo os miúdos fantasiavam-se – era uma escola frequentada pelas elites da
cidade. tudo filhos de senhores doutores. endinheirados e muito
respeitados pela importância das suas profissões – na maioria das escolas os
alunos não tinham dinheiro para roupa e sapatos quanto mais para fantasias.
o carnaval das crianças era vivido consoante o poder económico dos seus pais –
lembro-me muitíssimo bem de pedir à minha mãe uma roupa de cowboy. e
também me lembro de insistir durante uns quantos dias na necessidade de ir
fantasiado – cansado de não ter a sua atenção disse-lhe que todos os meus
colegas iam mascarados e que seria uma vergonha se eu também não fosse – a
minha mãe era muito forreta. sempre foi. uma das suas muitas
virtudes. mas os tempos não eram fáceis – depois de muito insistir. lá
me foi comprar uma roupa de cowboy ao centro da cidade – mas a coisa não correu
bem. a roupa era cara. a minha mãe recusou-se a gastar tanto
dinheiro. e acabei com um chapéu de cowboy. uma estrela de
sheriff. um coldre de plástico e uma pistola que não dava para matar
coisa nenhuma. tudo muito piroso e de mau gosto – eram os limites da
minha mãe. e sabendo como se comportava com gastos excêntricos sei hoje
que foi um ato de amor – lembro-me da festa de carnaval e também me lembro de
ser o puto mais mal vestido da minha classe. com a fantasia mais rasca.
uma tragédia em dois atos: a compra da minha mãe. e a minha
aparição no dia de carnaval na escola. estava envergonhado – pois bem.
andei com esse trauma anos e anos. sempre que o carnaval chegava lá
me assolavam as memórias da pirosice da minha fardeta – eis a surpresa.
passados mais de vinte anos. a minha colega na gulbenkian ana paula
aparece-me num jantar de um amigo comum. tinha passado uma eternidade –
é claro que não estávamos iguais. tínhamos ambos envelhecido.
estávamos casados e cada um de nós com dois filhos rapazes. e também
tinha concluído o curso de engenharia têxtil. mas os traços de
fisionomia e personalidade mantinham-se intactos – ao fim de alguns minutos.
com milhentas interrogações. demos conta que tínhamos retomado a
amizade no lugar em que a deixamos – foi fantástico. claro que tudo se
deveu à minha amiga. continuava a falar pelos cotovelos. foi o
suficiente para acabar com qualquer receio que ainda pudesse existir – passamos
momentos fantásticos. fizemos viagens que recordamos. férias
divertidas. muitas noitadas. pudemos partilhar um pouco da nossa
vida. foi muito bom reconquistá-la para perto de mim – ainda nos vemos
com alguma regularidade. agora menos porque deixou a minha cidade à
procura de melhor sorte. mas a amizade mantém-se sabendo agora que a
distância será sempre a que nós quisermos – há três ou quatro anos a minha
amiga manda-me uma foto de grupo desse carnaval. e lá estou eu metido no
meio de trinta e muitos alunos. com cara de poucos amigos. renegando
com toda a certeza a minha mãe. e para meu grande espanto. e ao
contrário do que tinha guardado em memória. estava fantasticamente
mascarado. muitos dos meus amigos nem sequer estavam fantasiados –
fiquei para morrer. como é possível ter guardado uma memória falsa
durante tanto tempo. não sei como. mas sei que aconteceu – passei
a duvidar de todas as memórias de infância – bem sei que estas memórias que
escrevo já não são de uma criança. são de um quase adulto. mas
mesmo assim. cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém – quando
resolvi largar os estudos pensei com os meus botões. os meus irmãos são
mais velhos. já tem a empresa oleada. eu vou mesmo ser patrão.
trabalho quando me apetecer. vou fazendo o meu percurso profissional nas
calmas. e o ordenado cai ao fim do mês – enganei-me completamente.
os meus irmãos. como já referi. não nasceram para serem
industriais. e por essa lacuna [agora menor] a fábrica continuava a
depender dos meus pais. a única que estava mais ou menos adaptada era a
minha irmã. estava na contabilidade. setor não produtivo e
dependente da produção. quando há dinheiro é o melhor local para se
trabalhar. quando o dinheiro falta é o deus me livre da aflição – o meu
irmão era. e ainda é. uma excelente pessoa. atrever-me-ia
a dizer que excelente pode não traduzir com justiça quão é excelente. mas
agora que estou envelhecido e já posso dizer tudo o que penso. creio que
o único defeito era mesmo ainda ter menos jeito para a fábrica do que eu – era
demasiado boa pessoa. às vezes irritava-me que ele fosse tão bom. mas
no mundo industrializado é um defeito perigoso. em determinadas
situações pode até tornar-se muito perigoso. infelizmente era um defeito
de família – eu também entrei boa pessoa. quando me apaixonei pelo
trabalho fiz um grande esforço para me tornar um pouco pior. o mundo
estava a mudar e não era possível vingar sem exigência. a produtividade
era baixíssima. muitas das funcionárias não tinham nenhuma noção da
importância do tempo nas empresas. o custo do minuto começou a ficar
caro. e corríamos o risco de não ser competitivos com os nossos
concorrentes – atreve-mo a dizer que uma grande parte não queria um trabalho.
mas apenas um emprego – hoje. percebo que a culpa não era completamente
dos funcionários. mas isso é outra história – o primeiro dia passou com
muito custo. quando saí parecia que tinha estado preso um mês. senti-me
como se fosse um presidiário que. depois de cumprir largos anos de pena.
sai da prisão sem saber o que fazer ao destino – eu sabia. fui logo ter
com os amigos e sem dar parte de fraco enfrentei a realidade triste e cruel.
tinham estado toda a tarde juntos na galhofa – estive para morrer – no dia
seguinte comecei a pensar em arranjar ferramentas para terminar o trabalho mais
depressa. começou a obra de engenharia que espantou não só os meus pais
como também todos os funcionários. revolucionei o corte dos forros.
passou a andar mais folgado. passei a fazer em menos de uma manhã o que
demorava um dia – esta solução-invenção
baseava-se num jogo de réguas de madeira numeradas e colocadas nas extremidades
laterais da mesa: no lado oposto ao cortador um desenrolador. e
junto a este uma régua fixa e uma outra que deslizava sobre as réguas laterais –
com esta engenhoca as placas de forro eram cortadas sem recorrer à sobreposição
do molde. quando se puxava a peça do forro terminava sempre no local de
corte. o ganho de tempo era quase de uma para sete. sete vezes
mais produção – em traços gerais era mais ou menos isto. uma daquelas
coisas simples. tipo ovo do colombo que. como todas as invenções.
surgem para ajudar o homem a simplificar o trabalho e a ganhar mais tempo para
si. no meu caso esse tempo seria para ir ter com os meus amigos – pedi
autorização para mandar fazer a engenhoca. ainda sofri alguma
resistência. mas a permissão lá saiu por parte de quem mandava – a
família desconfiada torcia pelo sucesso. o encarregado zombava com
subtileza. todos estavam à espera de um grande trambolhão. vinha
agora um puto mostrar como se trabalhava – mostrei mesmo – por momentos
acreditei que tinha encontrado o santo graal. mas nada disso. afinal
o cálice era de latão. não havia forros para cortar havia outras coisas.
puseram-me na mesa de acabamentos – confesso que esta invenção trouxe a motivação
que me faltava. passei a acreditar que era capaz de ser líder. e
fui durante mais de vinte anos. mas trouxe também algo que desconhecia.
o respeito dos trabalhadores que começaram a ver-me não como filho do patrão.
mas como alguém com aptidão para liderar os destinos da empresa – durante uns
tempos não se falava de outra coisa. era o maior – o meu pai orgulhoso.
nunca lhe tinha passado pela cabeça que o filho fosse capaz de tal feito em tão
pouco tempo. apanhou o meu cunhado na empresa e foi logo mostrar-lhe a
obra de engenharia – o meu cunhado filipe vale era engenheiro nos CTT.
hoje altice. e como engenheiro tinha sempre direito a opinar. o
meu pai dava-lhe ouvidos. percebia-se que tinha por ele uma grande
estima. afinal tinha casado com a sua única filha – isto cá para nós.
o meu pai tinha um fraquinho pela lolinha. nunca deixou de ser a menina
da casa – a minha mãe sempre teve o feitio mais difícil. mas no que
dizia respeito ao genro era mais tolerante. tinha vaidade por ter a filha
casada com um homem formado – naquele tempo uma pessoa com um curso superior
trazia consigo quase sempre a verdade da vida. mesmo que assim não fosse.
o que dizia obrigava que pelo
menos colhesse atenção – ora o problema é que o meu cunhado também achou
que eu podia chegar longe. sugeriu ao meu pai mandar-me tirar um curso
de agente de métodos. no porto. numa escola que dava pelo nome de
NORMA – era tudo muito bonito. mas obrigava-me a levantar às seis da
manhã. apanhar o expresso das sete na rodoviária nacional. duas
horas de um trânsito infernal. o dia todo a aturar professores.
saía pelas seis da tarde e chegava a casa depois das oito – fui trabalhar para
não ter aulas e o meu querido cunhado mete-me em aulas todo o dia – lá se foram
os amigos durante quatro meses – mas como um mal nunca vem só. o meu pai
tinha uma casa de campo. com pomar e vinhas. e no início do tempo
quente. com a desculpa de que tinha que regar as árvores. no fim
do trabalho refugiava-se na aldeia. e só de lá saía no fim das vindimas –
fui muito feliz na aldeia dos meus avós. as férias grandes eram vividas
no meio dos campos e eucaliptos – arrisco-me a dizer que foi talvez o período
em que fui mais tempo feliz. é hábito dizer que a felicidade não existe.
vive-se apenas pequenos momentos. naquela aldeia era feliz desde o
levantar até ao deitar – tenho imensas saudades dessa infância de luz. pela
manhã cedo levantava-me e ia direto para casa de um vizinho lavrador.
santana e glorinha. o pequeno almoço era uma malga de sopa de couves e
feijões e um naco de boroa cozida no forno. estava alimentado para a
manhã – arrancava com a dona glorinha e filhas. são e gracinha.
para o campo. a puxar o carro de bois -meu deus que alegria- e ali
ficava todo o dia. a ajudar no que podia. às vezes a desajudar no
que não sabia – aprendi rapidamente a aparelhar uma junta de bois.
apanhar milho. sacholar a terra e abrir canais de água para a rega.
guiá-la entre as plantações. e à merenda lanchava como os jornaleiros.
uma posta de bacalhau. broa e um trago de vinho tinto para empurrar –
foi muito bonita a minha infância na aldeia – sem os meus pais em casa era
obrigado a dormir na cama dos meus pais. tinham telefone na mesinha de
cabeceira o que me permitia ligar para o número do despertar e apanhar a
camioneta a horas – se tudo isto era mau. agora imaginem que a cama dos
meus pais tinha um colchão ortopédico que era como pedra. duro para raio.
coitado do meu pai. as dores da minha mãe sobravam sempre para ele –
quando me habituei ao colchão estava a acabar a formação. nunca consegui
dormir uma noite sossegada. levantava-me sempre amarrado à coluna.
torto. a caminhar arrastado – nunca mais fiquei bem das minhas costas.
o que agradeço ao meu cunhado filipe – tenho milhentas histórias da fábrica.
não seria possível não ter. foram muitos anos ali metido.
algumas poderia escrevê-las neste momento. outras. ainda precisam
de mais tempo de maturação. preciso que o amadurecimento me vá mostrando
o que fiz bem. e também o que fiz de errado. onde tinha razão.
e principalmente onde perdi a razão – o que posso garantir é que serei inflexível
neste meu ajuste de contas com o passado. é absolutamente necessário que
assim seja. os meus filhos estão criados. mas faltam os netos.
é essencialmente por estes que escrevo. um dia este meu testemunho pode
fazer a diferença – estudar é fundamental. podia ter feito tudo.
podia até no fim dos estudos ter ido para a fábrica dos meus pais. mas
deveria ter entrado na universidade – não há industriais sem fábricas. mas
há advogados sem tribunais. há dentistas sem consultórios. há
professores sem escolas – há o dever de morrermos com uma profissão