.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

22/06/2021

vou









de manhã cedo

salto de mim

e vou para o que não sou

absorvo café com leite

uma bucha de pão

e sinto o coração alçapão

 

mas vou

vou com pressa

em expresso

levo um sorriso

de vintém

e vou para o que não sou

 

mas vou

assim como sou

às vezes camaleão

às vezes papelão

às vezes irritação

 

e de curva em curva

entre campeões e matolões

vou como se não fosse

para lado nenhum

e penso:

vou para lá

ou fujo para acolá

não interessa

às vezes morro por lá

e também por acolá

 

mas vou

levo a bucha de pão

e um melão

que é mais desilusão

do que ebulição

 

mas vou

sem saber ao que vou

às vezes sem tino

às vezes sem destino

ás vezes num equilíbrio

que é apenas pesar

de ser o que sou

 

mas vou

vou com temor

triste e desiludido

[até perdido]

por não saber porque vou

se não gosto do que sou

quando vou

mas se o destino me atrasar

volto atrás

por caminho envesgado

não vá satanás saber

que sou aquele que vai

com melão

que é muito mais mutilação

do que paixão

 

mas vou

vou porque todos vão

mesmo que ninguém saiba

para onde vai

esta procissão

de tristonhos mortais

 

eu vou

mesmo com melão

mesmo com mutilação

mesmo com irritação

eu vou

vou com a minha careta

que não é vedeta

mas que importa

é a que tenho

e é com ela

que vou chegar

de onde nunca parti



 

09/06/2021

eu. o meu pai. e o meu primeiro dia de trabalho - III










terceiro dia de trabalho - III

7.30 da manhã entro na fábrica. com um pé qualquer. ainda não tinha compreendido que na vida um pouco de superstição não faz mal a ninguém. encantonei-me junto à secção de corte. sem saber muito bem o que me esperava. nervosíssimo e cheio de temor. com os olhos escondidos. aguardava pelo toque das oito – as mulheres-operárias iam entrando. marcavam o relógio de ponto. uma a uma davam o bom dia ao filho do patrão. deitavam os olhos ao chão e esgueiravam-se em passo ligeiro para o seu posto de trabalho – a meu lado. os meus colegas de corte arrumavam-se calmamente nas suas mesas e começavam a amolar as facas. num vai e vem da lâmina. rompendo a lixa e o aço. ora com um lado da faca para baixo. ora para cima. num movimento de pulso firme e ritmado. certo. como se houvesse um metrônomo a marcar o tempo de ir e vir – as mulheres mesmo sem quotas. não havia ainda a lei da paridade. estavam em grande maioria. sempre estiveram neste ramo da confeção – os minutos galopavam. a ansiedade acompanhava o galope do relógio. sem imaginar que iria dar início a um trabalho de vinte e dois anos – quando levantei os olhos do chão mesas e máquinas estavam preenchidas. embaladas por um barulho miudinho. cochichos sobre a minha chegada.  ansiosas por saber que função iria ocupar o filho do patrão – seriam mais ou menos umas quarenta mulheres. mais quatro homens no corte. um nos acabamentos. um no armazém. e mais três administrativos incluindo a minha irmã – o pessoal da contabilidade só entrava às oito e trinta. era gente com outra graciosidade nos gestos e na fala. mais citadinos. mais cultos. e por via desse refinamento eram donos das contas e do guito – a campainha começa a zoar tocada pelo encarregado geral. oito horas em ponto. nas fábricas não há tolerância de ponto. oito horas são mesmo oito horas – no fim do zunido uns microssegundos de silêncio que se estendia por toda a fábrica – uma explosão de barulho arrasa todo o silêncio. as máquinas de costura arrancam agitadas. tinham pela frente oito horas de ziguezague – era um trabalho duro e de muita responsabilidade. na pele não se pode recuar um ponto. para além de que uma qualquer desatenção e o dedo fica debaixo da agulha – um ofício de costas dobradas. braços a carregar material. pernas no pedal. e olhos fixos numa agulha que não pára de saltar para cima e para baixo. sem dúvida o trabalho mais pesado de toda a produção – todo mundo labuta. ao contrário do liceu que havia sempre uma quantidade apreciável de mandriões como eu. só trabalhava quando me apetecia ou quando resolvia frequentar as aulas – o meu irmão já estava a postos. pegava também às oito e era sempre certíssimo. um autêntico relógio suíço. dos caros. nunca se atrasava. nunca o vi chegar depois da hora – a minha mãe metida no meio das mulheres distribuía trabalho. sempre numa fona. chamava por esta e aquela. tudo girava sobre a sua orientação – sempre com um ar de preocupada. como se trouxesse o mundo às costas. rodava de mesa em mesa mimicando com autoridade – depois da ronda. estando todo o material distribuído e certa de que nada as faria abrandar. embrenhava-se numa mesa a ajudar – o sr. arlindo. encarregado geral. veio ter comigo. leva-me para a mesa dos forros. chama um cortador. o alberto. o mais qualificado na arte de golpear a pele. manda-o preparar uma faca e uma tala da lixa para amolar o fio. e recebo a minha primeira lição de amolador – confesso que nunca me dei bem com os amolanços. nunca consegui pôr o fio da faca como um profissional. ficava sempre mais parecido com um formão. não havia manómetro que me guiasse a mão. o que me retirava eficácia. os cantos e reentrâncias precisavam sempre de duas ou três passagens para concluir o corte. uma desgraça – colocam-me em cima da mesa os moldes de uma determinada bolsa. nunca imaginei que levasse tantos. teria trinta a cinquenta. felizmente que os do forro eram menos. mas mesmo assim. quase uma dezena. uma loucura – o alberto começa a colocar os moldes em cima do forro. chama-me atenção para o desperdício e alerta-me para a necessidade de os encaixar uns nos outros. era fundamental evitar perda de material. no poupar assentava a arte de um cortador de primeira categoria – por último o perigo da faca resvalar no molde e cortar um dedo. claro que não evitei alguns cortes. era um tosco habituado à esferográfica – e pronto. tinha chegado o momento de mostrar o que valia. estava por minha conta. não podia estar melhor preparado. anos e anos de malandrice e dez minutos de formação profissional – não me lembro quantas forros fui obrigado a cortar naquela minha primeira referência. mas também não era importante. o trabalho nunca acabava. ao contrário do meu estudo que acabava sempre antes de começar – ainda não tinha chegado o meio da manhã já eu dava voltas e voltas à minha cabeça. percebi rapidamente que foi um erro. não tinha necessidade nenhuma de ali estar. nem mesmo por ser um estudante medíocre e pouco aplicado – o orgulho matou-me. empurrou-me para um mundo que só passados muitos anos percebi. e apesar de me ter apaixonado pela criação de moda. que nunca fui verdadeiramente eu naquele ofício. nem creio que os meus irmãos também alguma tivessem sido inteiramente felizes – não somos da arte dos negócios. somos emocionais. e quem vive do coração nunca é um bom industrial – tudo fiz para esconder este meu lado afetivo. durante muitos anos fui o patrão mais exigente dentro daquela empresa. algumas vezes muito duro. tinha objetivos que queria atingir. queria ser o número um – naquele tempo lidar com o pessoal era muito complicado. ainda não se falava em produtividade como nos dias de hoje. e muito menos em competitividade – havia um outro sector da empresa muito importante: os vendedores. eram um pouco como os propagandistas. lábia e uma ladainha consistente fazia toda a diferença no total de vendas – nunca gostei de vender. ainda hoje não gosto. tínhamos seis ou sete vendedores espalhados pelo país. mas quando era exigido a presença de um responsável da empresa junto de um cliente. pedia sempre aos meus irmãos para me substituírem – os dois eram muito melhores na arte de impingir mercadoria. principalmente a minha irmã. tinha herdado esse jeito do meu pai. eram mais profissionais. vendiam mesmo sem gostar. para mim isso era impossível. para além de serem mais atenciosos. mais sorridentes – o que eu gostava mesmo era de estar dentro da fábrica. gostava de máquinas. do cheiro à cola. à pele. e daquela gente que com as mãos fazia quase tudo – mas onde me realizava. era no gabinete de design e modelagem. era neste espaço mágico que se criavam todas as coleções – fomos a primeira empresa do ramo a ter uma equipa de modelistas. o crescimento da empresa a isso obrigou. no começo a criação de modelos era feito pela minha mãe. quem mais poderia ser – esta equipa. não faziam mais nada a não ser tratar da criação de novos modelos – era um trabalho infernal. de seis em seis meses tínhamos que criar sessenta modelos de bolsas. cinquenta cintos de senhora. mais uma dezena de homem. quatro ou cinco coleções de viagem. tendo cada coleção pelo menos vinte a trinta modelos. e mais quase uma centena de marroquinaria de homem e mulher – quando terminávamos as coleções estávamos completamente esgotados – a par da confeção dos novos modelos tínhamos que calcular a previsão de vendas. guiávamo-nos apenas pela experiência e intuição. só com esta arte de adivinhação era possível começar a fazer compras da matéria prima. milhentas coisas impossíveis de enumerar. trabalhávamos sem rede. o fabrico era feito em cima das vendas – era um trabalho extenuante. às vezes completamente louco. os problemas sucediam-se e o improviso era a nossa segunda arte – hoje sei que não seria possível manter aquele ritmo por muito mais tempo. era imensamente desgastante. valia-me a idade e uma vontade enorme de vencer – depois do encerramento da fábrica fui pela primeira vez verdadeiramente feliz. não por escassos momentos. mas durante muito tempo. nem sabia que era possível ter tanto tempo para ser feliz. reencontrei-me com a família. voltei a estudar. e finalmente. comecei a ler. a minha grande paixão. e logo logo comecei a escrever. faço-o há vinte e quatro anos. todos os dias. seis horas no mínimo – há males que vem por bem. nunca teria sido o pai que fui. nem o marido. nem teria sabido separar os bons amigos dos maus. tornei-me exímio nesta triagem. rapidamente percebo o que está dentro do embrulho – no entanto. tenho que ser sincero com uma coisa. tudo o que sei e o que sou aprendi na nossa empresa familiar. e aprendi imenso. entrei um miúdo irresponsável e aquela gente fez-me homem. prepararam-me para a vida. foi uma experiência fantástica – confesso que nunca recuperei totalmente daquele encerramento forçado da empresa. estávamos a escassos anos de nos tornarmo-nos líderes destacados do mercado nacional. fiquei muito zangado. com raiva dos políticos. os primeiros tempos foram muito difíceis – não sei se alguma vez vou conseguir dormir sem que os pesadelos me assaltem o descanso. às vezes dói muito – a fábrica deu-me autoestima. acreditava em mim. acreditava que tudo o que fazia teria sucesso. e tive muito. e quanto mais sucesso. mais queria. queria sempre fazer mais coisas. queria aumentar a produção. fabricar novos produtos. queria estar sempre na vanguarda da moda. queria ter a primeira cor. a primeira inovação. a primeira máquina. queria um mundo perfeito. com o envelhecimento compreendi que o ótimo é inimigo do bom – tinha tantos sonhos. não pensava em mais nada a não ser tornar-me cada dia melhor. tinha a certeza de que mais tarde. ou mais cedo. seriamos uma marca de referência nacional e internacional – apesar de ser muito exigente com todos os colaboradores nunca disse não a nenhum. fosse o que fosse. tantas vezes critiquei o meu pai pela proximidade com os funcionários e aí estava eu. igual ou pior – o mais difícil era gerir os egos dos chefes de secção. passei as passas do algarve para manter a equipa unida até ao último dia da empresa. felizmente nunca me abandonaram. principalmente a margarida e o paulo. morreram como árvores. de pé. agoniaram a meu lado. e deram-me a oportunidade de encerrar a empresa com a dignidade possível. fizemos contas com todos os trabalhadores. apenas uma funcionária não aceitou o acordo – ainda hoje. sempre que me cruzo com qualquer um deles. saudámo-nos com carinho. é bom saber que ficaram com o melhor de mim – o mundo do trabalho é complicado para qualquer pessoa que está a dar os primeiros passos. acredito que em todas as profissões o primeiro dia será sempre lembrado. mas eu tinha levado uma vida de rambóia. sempre bem vestido. com dinheiro no bolso. com os mesmos amigos de rua. amava os meus amigos. a partilhar todas as brincadeiras de manhã à noite. a planear passeios e viagens à volta do mundo. a olhar as pernas das minhas colegas de liceu. agora levemente escondidas atrás de minissaias. a não ter que pensar no dia seguinte. a mandar o futuro lixar-se. e de repente. tudo tinha acabado. estava prisioneiro do toque da campainha – na fábrica não se parava de hora em hora como no liceu. o único toque de intervalo era para almoçar. não podia ir ao bar como habitualmente fazia nos intervalos da escola. nem ao badalhoco. um tasco em frente ao liceu sá de miranda. comprar meia sêmea com chouriço. não podia fazer piadas. fazer charme. namoriscar. gazetar. não podia tudo. estava aprisionado numa cadeia em que o guarda prisional era o meu pai – na fábrica ninguém falava. a única linguagem permitida era a das máquinas. que mesmo fazendo muito barulho nunca conseguia imitar a saída dos alunos do liceu. nós fazíamos muito mais chinfrim – rapidamente percebi que o trabalho era levado muito a sério – ao fim das duas primeiras horas não tinha feito nada. a faca não tinha desenrasque nas minhas mãos. e as mulheres de volta da mesa a perguntar se já tinha os forros cortados – comecei a ficar preocupado. percebi que a continuar assim estaria metido num rico sarilho. iria passar uma vergonha no meio da mulherada – ao fim do dia já era outro. não digo que fosse um cortador de primeira. nem de segunda. mas a faca já corria nas mãos e os forros começaram a estar prontos sempre que me eram solicitados – ao segundo dia já acumulava obra em cesto e comecei a ter mais vagar para pensar no que realmente estava a fazer naquela mesa de trabalho. porque se cortava daquela maneira e não de outra – no fim da primeira semana já tinha colocado tudo em causa. e pensei: se encontrar uma forma de cortar mais rápido os forros. quem sabe. posso dar à soleta mais cedo – a minha motivação não era o trabalho. mas sim pisgar-me rapidamente daquele inferno – não conseguia esquecer os amigos. de cada vez que cortava um forro assolava-me o fantasma da rua. das brincadeiras. da boa vida – já passou muito tempo desde esse meu primeiro dia de trabalho. o meu pai e a minha mãe já estão confortavelmente nalgum lugar sagrado. vivos. e com saúde. só mesmo os meus irmãos. por isso posso escrever a minha verdade. aquela que guardo. e fazer deste pedaço da minha vida. um ato de contrição. acreditando que já estou perdoado por tudo que tenha corrido menos bem – por esta certeza. e com a idade a crescer numa corrida de velocidade.  permite-me qualquer tipo de confissão. o tempo lava a alma. e com a “velhice” percebemos que o que era importante na juventude. agora com cabelos embranquecidos. ou sem eles. já não é – como já escrevi várias vezes: o que não é realmente importante. não o será mais tarde. ou mais cedo – no entanto. sou obrigado a reafirmar. que estas são as minhas memórias. que talvez não estejam isentas de erro. são simplesmente a minha vivência sobre os factos – acredito que os meus irmãos possam ter uma outra opinião. o que é normal e compreensível. aprendi a não me colocar no lugar dos outros. a não ser para compreendê-los – para justificar este meu receio sobre a memória e o que ela tende a guardar. vou contar uma história engraçada que me aconteceu há relativamente pouco tempo – quando eu tinha os meus nove anos. estudava no conservatório de música calouste gulbenkian. estávamos no período de carnaval. e já nesse tempo os miúdos fantasiavam-se – era uma escola frequentada pelas elites da cidade. tudo filhos de senhores doutores. endinheirados e muito respeitados pela importância das suas profissões – na maioria das escolas os alunos não tinham dinheiro para roupa e sapatos quanto mais para fantasias. o carnaval das crianças era vivido consoante o poder económico dos seus pais – lembro-me muitíssimo bem de pedir à minha mãe uma roupa de cowboy. e também me lembro de insistir durante uns quantos dias na necessidade de ir fantasiado – cansado de não ter a sua atenção disse-lhe que todos os meus colegas iam mascarados e que seria uma vergonha se eu também não fosse – a minha mãe era muito forreta. sempre foi. uma das suas muitas virtudes. mas os tempos não eram fáceis – depois de muito insistir. lá me foi comprar uma roupa de cowboy ao centro da cidade – mas a coisa não correu bem. a roupa era cara. a minha mãe recusou-se a gastar tanto dinheiro. e acabei com um chapéu de cowboy. uma estrela de sheriff. um coldre de plástico e uma pistola que não dava para matar coisa nenhuma. tudo muito piroso e de mau gosto – eram os limites da minha mãe. e sabendo como se comportava com gastos excêntricos sei hoje que foi um ato de amor – lembro-me da festa de carnaval e também me lembro de ser o puto mais mal vestido da minha classe. com a fantasia mais rasca. uma tragédia em dois atos: a compra da minha mãe. e a minha aparição no dia de carnaval na escola. estava envergonhado – pois bem. andei com esse trauma anos e anos. sempre que o carnaval chegava lá me assolavam as memórias da pirosice da minha fardeta – eis a surpresa. passados mais de vinte anos. a minha colega na gulbenkian ana paula aparece-me num jantar de um amigo comum. tinha passado uma eternidade – é claro que não estávamos iguais. tínhamos ambos envelhecido. estávamos casados e cada um de nós com dois filhos rapazes. e também tinha concluído o curso de engenharia têxtil. mas os traços de fisionomia e personalidade mantinham-se intactos – ao fim de alguns minutos. com milhentas interrogações. demos conta que tínhamos retomado a amizade no lugar em que a deixamos – foi fantástico. claro que tudo se deveu à minha amiga. continuava a falar pelos cotovelos. foi o suficiente para acabar com qualquer receio que ainda pudesse existir – passamos momentos fantásticos. fizemos viagens que recordamos. férias divertidas. muitas noitadas. pudemos partilhar um pouco da nossa vida. foi muito bom reconquistá-la para perto de mim – ainda nos vemos com alguma regularidade. agora menos porque deixou a minha cidade à procura de melhor sorte. mas a amizade mantém-se sabendo agora que a distância será sempre a que nós quisermos – há três ou quatro anos a minha amiga manda-me uma foto de grupo desse carnaval. e lá estou eu metido no meio de trinta e muitos alunos. com cara de poucos amigos. renegando com toda a certeza a minha mãe. e para meu grande espanto. e ao contrário do que tinha guardado em memória. estava fantasticamente mascarado. muitos dos meus amigos nem sequer estavam fantasiados – fiquei para morrer. como é possível ter guardado uma memória falsa durante tanto tempo. não sei como. mas sei que aconteceu – passei a duvidar de todas as memórias de infância – bem sei que estas memórias que escrevo já não são de uma criança. são de um quase adulto. mas mesmo assim. cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém – quando resolvi largar os estudos pensei com os meus botões. os meus irmãos são mais velhos. já tem a empresa oleada. eu vou mesmo ser patrão. trabalho quando me apetecer. vou fazendo o meu percurso profissional nas calmas. e o ordenado cai ao fim do mês – enganei-me completamente. os meus irmãos. como já referi. não nasceram para serem industriais. e por essa lacuna [agora menor] a fábrica continuava a depender dos meus pais. a única que estava mais ou menos adaptada era a minha irmã. estava na contabilidade. setor não produtivo e dependente da produção. quando há dinheiro é o melhor local para se trabalhar. quando o dinheiro falta é o deus me livre da aflição – o meu irmão era. e ainda é. uma excelente pessoa. atrever-me-ia a dizer que excelente pode não traduzir com justiça quão é excelente. mas agora que estou envelhecido e já posso dizer tudo o que penso. creio que o único defeito era mesmo ainda ter menos jeito para a fábrica do que eu – era demasiado boa pessoa. às vezes irritava-me que ele fosse tão bom. mas no mundo industrializado é um defeito perigoso. em determinadas situações pode até tornar-se muito perigoso. infelizmente era um defeito de família – eu também entrei boa pessoa. quando me apaixonei pelo trabalho fiz um grande esforço para me tornar um pouco pior. o mundo estava a mudar e não era possível vingar sem exigência. a produtividade era baixíssima. muitas das funcionárias não tinham nenhuma noção da importância do tempo nas empresas. o custo do minuto começou a ficar caro. e corríamos o risco de não ser competitivos com os nossos concorrentes – atreve-mo a dizer que uma grande parte não queria um trabalho. mas apenas um emprego – hoje. percebo que a culpa não era completamente dos funcionários. mas isso é outra história – o primeiro dia passou com muito custo. quando saí parecia que tinha estado preso um mês. senti-me como se fosse um presidiário que. depois de cumprir largos anos de pena. sai da prisão sem saber o que fazer ao destino – eu sabia. fui logo ter com os amigos e sem dar parte de fraco enfrentei a realidade triste e cruel. tinham estado toda a tarde juntos na galhofa – estive para morrer – no dia seguinte comecei a pensar em arranjar ferramentas para terminar o trabalho mais depressa. começou a obra de engenharia que espantou não só os meus pais como também todos os funcionários. revolucionei o corte dos forros. passou a andar mais folgado. passei a fazer em menos de uma manhã o que demorava um dia – esta solução-invenção baseava-se num jogo de réguas de madeira numeradas e colocadas nas extremidades laterais da mesa: no lado oposto ao cortador um desenrolador. e junto a este uma régua fixa e uma outra que deslizava sobre as réguas laterais – com esta engenhoca as placas de forro eram cortadas sem recorrer à sobreposição do molde. quando se puxava a peça do forro terminava sempre no local de corte. o ganho de tempo era quase de uma para sete. sete vezes mais produção – em traços gerais era mais ou menos isto. uma daquelas coisas simples. tipo ovo do colombo que. como todas as invenções. surgem para ajudar o homem a simplificar o trabalho e a ganhar mais tempo para si. no meu caso esse tempo seria para ir ter com os meus amigos – pedi autorização para mandar fazer a engenhoca. ainda sofri alguma resistência. mas a permissão lá saiu por parte de quem mandava – a família desconfiada torcia pelo sucesso. o encarregado zombava com subtileza. todos estavam à espera de um grande trambolhão. vinha agora um puto mostrar como se trabalhava – mostrei mesmo – por momentos acreditei que tinha encontrado o santo graal. mas nada disso. afinal o cálice era de latão. não havia forros para cortar havia outras coisas. puseram-me na mesa de acabamentos – confesso que esta invenção trouxe a motivação que me faltava. passei a acreditar que era capaz de ser líder. e fui durante mais de vinte anos. mas trouxe também algo que desconhecia. o respeito dos trabalhadores que começaram a ver-me não como filho do patrão. mas como alguém com aptidão para liderar os destinos da empresa – durante uns tempos não se falava de outra coisa. era o maior – o meu pai orgulhoso. nunca lhe tinha passado pela cabeça que o filho fosse capaz de tal feito em tão pouco tempo. apanhou o meu cunhado na empresa e foi logo mostrar-lhe a obra de engenharia – o meu cunhado filipe vale era engenheiro nos CTT. hoje altice. e como engenheiro tinha sempre direito a opinar. o meu pai dava-lhe ouvidos. percebia-se que tinha por ele uma grande estima. afinal tinha casado com a sua única filha – isto cá para nós. o meu pai tinha um fraquinho pela lolinha. nunca deixou de ser a menina da casa – a minha mãe sempre teve o feitio mais difícil. mas no que dizia respeito ao genro era mais tolerante. tinha vaidade por ter a filha casada com um homem formado – naquele tempo uma pessoa com um curso superior trazia consigo quase sempre a verdade da vida. mesmo que assim não fosse. o que dizia obrigava que pelo menos colhesse atenção – ora o problema é que o meu cunhado também achou que eu podia chegar longe. sugeriu ao meu pai mandar-me tirar um curso de agente de métodos. no porto. numa escola que dava pelo nome de NORMA – era tudo muito bonito. mas obrigava-me a levantar às seis da manhã. apanhar o expresso das sete na rodoviária nacional. duas horas de um trânsito infernal. o dia todo a aturar professores. saía pelas seis da tarde e chegava a casa depois das oito – fui trabalhar para não ter aulas e o meu querido cunhado mete-me em aulas todo o dia – lá se foram os amigos durante quatro meses – mas como um mal nunca vem só. o meu pai tinha uma casa de campo. com pomar e vinhas. e no início do tempo quente. com a desculpa de que tinha que regar as árvores. no fim do trabalho refugiava-se na aldeia. e só de lá saía no fim das vindimas – fui muito feliz na aldeia dos meus avós. as férias grandes eram vividas no meio dos campos e eucaliptos – arrisco-me a dizer que foi talvez o período em que fui mais tempo feliz. é hábito dizer que a felicidade não existe. vive-se apenas pequenos momentos. naquela aldeia era feliz desde o levantar até ao deitar – tenho imensas saudades dessa infância de luz. pela manhã cedo levantava-me e ia direto para casa de um vizinho lavrador. santana e glorinha. o pequeno almoço era uma malga de sopa de couves e feijões e um naco de boroa cozida no forno. estava alimentado para a manhã – arrancava com a dona glorinha e filhas. são e gracinha. para o campo. a puxar o carro de bois -meu deus que alegria- e ali ficava todo o dia. a ajudar no que podia. às vezes a desajudar no que não sabia – aprendi rapidamente a aparelhar uma junta de bois. apanhar milho. sacholar a terra e abrir canais de água para a rega. guiá-la entre as plantações. e à merenda lanchava como os jornaleiros. uma posta de bacalhau. broa e um trago de vinho tinto para empurrar – foi muito bonita a minha infância na aldeia – sem os meus pais em casa era obrigado a dormir na cama dos meus pais. tinham telefone na mesinha de cabeceira o que me permitia ligar para o número do despertar e apanhar a camioneta a horas – se tudo isto era mau. agora imaginem que a cama dos meus pais tinha um colchão ortopédico que era como pedra. duro para raio. coitado do meu pai. as dores da minha mãe sobravam sempre para ele – quando me habituei ao colchão estava a acabar a formação. nunca consegui dormir uma noite sossegada. levantava-me sempre amarrado à coluna. torto. a caminhar arrastado – nunca mais fiquei bem das minhas costas. o que agradeço ao meu cunhado filipe – tenho milhentas histórias da fábrica. não seria possível não ter. foram muitos anos ali metido. algumas poderia escrevê-las neste momento. outras. ainda precisam de mais tempo de maturação. preciso que o amadurecimento me vá mostrando o que fiz bem. e também o que fiz de errado. onde tinha razão. e principalmente onde perdi a razão – o que posso garantir é que serei inflexível neste meu ajuste de contas com o passado. é absolutamente necessário que assim seja. os meus filhos estão criados. mas faltam os netos. é essencialmente por estes que escrevo. um dia este meu testemunho pode fazer a diferença – estudar é fundamental. podia ter feito tudo. podia até no fim dos estudos ter ido para a fábrica dos meus pais. mas deveria ter entrado na universidade – não há industriais sem fábricas. mas há advogados sem tribunais. há dentistas sem consultórios. há professores sem escolas – há o dever de morrermos com uma profissão