.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/02/2019

num lago batido a vento norte






pintura - inês dourado





onde param os meus amigos de infância? se alguém souber do seu paradeiro. por favor. não entre em contacto comigo. não me mande SMS. cartas. telegramas ou recadinhos em pedacinhos de papel. não os quero encontrar e também não os quero de volta ao meu mundo – não é por mal. acreditem que não. creio apenas que não resistiriam ao desencontro do meu crescimento – o tempo passou. envelheci. o catraio também envelheceu. as feições mudaram. as ideias solidificaram-se. os ossos enfraqueceram. a alma enrijou e descobri que só o silêncio e o isolamento me protegem dos desencantos – agora. agora que o corpo estagnou. vivo numa toxidade só minha: solitária e silenciosa – tornei-me egoísta. foquei-me na mirração. no agora. retirei das paredes todas as fotos da juventude. abafei as recordações num saco plástico e atirei ao mar – o sal corrói tudo. destrói todas as provas – solidifiquei a indiferença e rendi-me aos espaços vazios – dentro destas paredes só existe o que sou capaz de pensar. e quando não penso. e as paredes se tornam gigantescas. fico sem saber o que fazer ao corpo. e é quando escrevo. escrevo tudo o que sinto e fico com a sensação de que nada sei do que sinto – é esta insatisfação persistente. cruel e impiedosa que me revolve o corpo. e o que estava longe está agora aqui: o primeiro dia de escola. o carrinho de rolamentos. o autocarro para monte d`arcos. a hora de comungar. de amar. de guiar a 4L ou das mãos a cheirar às anilinas. às máquinas e às pessoas vestidas com batas autênticas. o tempo não mudou esta sensação de sentir. está tudo igual – há coisas que nos ficam para sempre. é como se dentro de nós houvesse uma gaveta mágica onde guardamos o que sentimos e sabemos o que sentimos: este sentir não tem tempo. nem vento. nem chuva. nem andorinhas. nem folhas caducas. nuvens para lá e para cá. sinos. azevinho ou gaivotas a planar sobre um lago batido a vento norte. o que era continua a ser. e o que sentia continuo a sentir – sempre estive convencido que sabia tanta coisa e agora dei conta que não sei nada – sou afinal o que? se fosse sábio. se fosso um homem igual aos outros. se não tivesse medo do que não sei. se não tivesse medo da minha ignorância. não perdia mais tempo a escrever o que sinto. não. saía do corpo e vivia. vivia sem medo de não saber o que não sei – saia das mãos. encerrava-as no correr da morte. transformava-me numa gaivota e voava por essas ruas desconhecidas. voava e vivia. porque para viver basta abandonar o que pensas e quando deixas de pensar deixas de ter corpo e um homem sem corpo é um homem livre – escrevo a liberdade que sempre desejei – é nesta solidão-silenciosa. tranquila. plácida que recuperei o caminho para me reencontrar na minha desarrumação. numa afetividade serena. meiga. sentida. desprendida. despreocupada e de uma compaixão imensa. sem reacusações. sem dedo acusador. rancor. revolta ou rebeldia – vivo num reencontro permanente. é a minha dança com lobos. o meu passado à volta de uma fogueira onde todos os que já foram meninos reaparecem a recontar a minha história – é neste reencontro de histórias que adormeço como criança e acordo com a esperança de que ainda vou a tempo de me aceitar no destino – agora. agora preciso de todo os dias que me restam para fazer de mim o que realmente sou – cumprir os desígnios do pensamento. aceitar a comoção. o desassossego dos reencontros. inventar perdões. assumir culpas e relembrar insistentemente que o que se sente é a única verdade que o corpo aceita… o que se sente é a única verdade que o corpo aceita – já não sou capaz de vender a alma ao diabo. o que ficou para trás ficou e não quero que volte – entreguei-me em definitivo ao isolamento cerebral. estar só evita estar mal-acompanhado – a vida é um desafio constante onde a desilusão está garantida. depois. ainda lhe juntamos a ingratidão. a injustiça. o azar e os desígnios de deus. é como se fosse um circo. e nós ali sentados. sem saber a quem dirigir as palmas. se ao domador pelo estalar do chicote se à fera que o tenta morder – não quero ninguém do passado perto de mim. não quero ninguém que me volte a ocupar o corpo. não quero mais aborrecimentos – envelheci. degradei-me. perdi a inocência. a fé e a vontade de mudar o mundo – envelhecemos todos. todos os meninos envelheceram. não há remédio contra o envelhecimento – estou cansado. quando se perde a fé o corpo todo deixa de acreditar. os ouvidos deixam de ouvir. a boca cala-se e mantemos os olhos fechados mesmo quando estamos acordados – estou mais morto do que vivo – tenho a certeza que um dia. depois da minha morte. cada palavra escrita encontrará a razão para a sua existência – o que escrevo será para sempre o meu reflexo num lago batido a vento norte: ondulo… ondulo… ondulo






15/02/2019

péu péu. péu péu e péu péu






pintura - kurt 2018





1.

deixemo-nos de eufemismos. a morte é o fim da consciência em definitivo – por isso. quando invoco a ressurreição. o retorno ao mundo num novo corpo. para uma nova oportunidade. estou a troçar. a gargalhar. porque só “gargalha de uma cicatriz quem nunca foi ferido” – realmente eu nunca morri por inteiro. às vezes morre uma mão. o cérebro. os olhos. a vontade de correr. de viver. e até morre as reservas de estupidez que me mantêm lúcido no intervalo dos carateres – dentro dos carateres existe apenas vida. a minha vida. o que amei. o que aprendi. o que construí. o que perdi e me magoa com saudade e todas as desilusões que nos mata mais do que a própria morte – e é por isso que escrevo. só a escrita me ressuscita desta morte faseada – estar morto é não se ser coisa nenhuma e também não existir em lado nenhum – eu existo. primeiro aqui enquanto respiro. e depois. em vocês que me leem – sei que estou vivo. mesmo que às vezes cheire a defunto 


2.
gosto de desvalorizar a morte. acicatá-la. gosto de espetar-lhe uma metáfora hiperbolizada. robusta. enérgica e incisiva. de forma a abrir roturas na semântica: o corpo que sustento dentro desta minha cabeça respira e resiste mesmo sabendo que cheira a defunto persiste – nenhum corpo deveria ter direito a uma cabeça que desiste do mundo – e pergunto: se tivesse nascido em montmatre. sacré couer. e fosse um pintor de rua será que os meus olhos faleciam antes da cabeça? e se fosse malabarista no cirque du soleil... será que os meus braços faleciam antes da cabeça? e se fosse uma folha perdida na floresta negra alemã… será que o vento me levaria até ao mar? nunca saberei ao certo – nada em mim sei como certo. nada em mim é de tal forma meu que jamais colocaria em causa que não pudesse ser de outra pessoa. nada em mim sou eu em definitivo e tudo em mim me faz querer ser outra coisa qualquer que não sei o que. outra coisa que não sendo minha eu acreditasse que com sorte poderia ter sido. nem que fosse apenas por uma hora. ou um segundo que demorasse a passar. um segundo que fosse uma vida e essa vida não pudesse ser de outra pessoa se não eu – é esta antítese que me faz baloiçar entre um corpo falecido e uma respiração moribunda que teima em prolongar as dúvidas num pensamento agonizado e teimoso – é assim que me mantenho vivo – no entanto. não me custa admitir que devo ser insuportável. nenhum corpo quer alguém como eu. ingrato. aborrecido e mal-agradecido


3.
a simbiose continua. e eu dentro desta troca de favores: o corpo respira para que a cabeça continue a pensar e a cabeça pensa para que o corpo não pare de respirar – isto deveria ser suficiente para viverem a vida tal e qual como lhes é oferecida – afinal é assim para todos – eu não posso ser exceção por mais que me sinta a cheirar a defunto – tudo na vida acontece num rápido. tudo é celeridade. esta ideia errada de que a nossa passagem terrena é demorada é a maior trapaça que nos enfiaram pelo corpo. acabei de nascer ontem e o amanhã já não sei se vai acontecer – para acelerar ainda mais esta viagem começamos a morrer aos poucos. às vezes o corpo respira e a cabeça já é defunta há uma dezena de anos – houve uma época em que acreditava que morreria todo de uma vez. de velhice. de mão dada com a minha companheira. amarrado à saudade. às memórias e a pedir a um deus qualquer que me desse outra vida. que me deixasse voltar à juventude. às correrias. ao amor fácil. aos carros velozes e aos amigos loucos e bonitos – fazia tudo diferente. bem. não digo tudo. mas muita coisa seria diferente – o que fazia igualzinho era conquistar a mesma mulher. no mesmo sítio. à mesma hora e com o mesmo beijo – amo-a daqui até ao infinito – mas enganei-me. poucos são aqueles que morrem de uma vez só – a fé já passou por mim. envelheci nuns dias e apodreci em outros. e agora. nada do que resta em mim. enquanto humano que respira. tem força para mudar esta vida que me manipulou. aldrabou e iludiu – todos os dias morro um bocadinho – o tempo não flui num só sentido. o tempo flui de fora para dentro do corpo e atulha-nos de anseios que não podemos alcançar e depois. há um dia. de raiva. deitamos todo o acreditar para fora e perdemo-nos. e já não há viagem de volta – partimos. fragmentamo-nos em pedaços de nada e sumimos para sempre na escuridão do mundo – só inteiros somos visíveis. só inteiros valemos alguma coisa – estou perdido. não me encontro em lado nenhum e o que me faz saber vivo é o barulho que faço a respirar – estou entre as mãos que escrevem e o falecimento de tudo o que me trouxe até aos dias de hoje. perdi-me das memórias. perdi-me da chave das portas que fechei. das orações que não rezei. e pior. das palavras que escrevi e me construíram como se fosse uma fábrica de coisas inúteis: de facas que nada cortaram. agulhas que nada coseram. água que nada lavou e pernas que não andaram e o baú cheio de relíquias de vidro. frágeis. estúpidas e sem valor – nada do que deixo como tesouro. as palavras que escrevi. mudará o que quer que seja do mundo que era meu.  digo era porque já me considero falecido para a criação – o que criei está criado – ingratidão sempre houve e também sempre houveram homens bons que morrem muito tempo antes de morrer a respiração – morto sou muito mais feliz – quando um homem falece o mundo deixa de punir e começa a perdoar – era bom homem. não teve muita sorte na vida mas tinha bom coração… e péu péu. péu péu e péu péu – fossem todos como ele e este mundo seria bem melhor… e péu péu. péu péu e péu péu – coitado. tanto sacrifício para isto. morreu sem glória… e péu péu. péu péu e péu péu – esta vida são dois dias. tanta maldade no mundo para todos acabarem assim… e péu péu. péu péu e péu péu – que se lixe a lamechice.  tudo o que fui. bom ou mau. está dentro de mim e inevitavelmente arderá comigo no dia da cremação – e quando o corpo arder por minha ordem. e a pó voltar. e a vento marchar. e a mar cheirar. tudo ficará divino e novamente às ordens de um deus que me queira recriar – se este deus existir. e se a minha imagem se fizer novamente à sua imagem. então peço-lhe: que não me roube a memória. nem me alteres a morada de minha casa. pois esse é o único caminho que guardo no pó – “do pó viestes. ao pó voltarás (Gn 3,19)”. do coração te fizeste. e ao coração voltarás 


4.
e assim se cumprirá a profecia de um livro que me pesou tanto como a vida: finalmente serei corpo sem respirar e sem fé – as palavras não ardem – é nas palavras que continuarei a respirar. continuarei ofegante. mas agora sem mágoa. sem correrias. sem o silêncio nostálgico. cheio de barulhos. a magoar. nascido no lado escuro da lua – bem. confesso que não tenho a certeza onde nasceu. talvez tenha sido parido nos anéis de júpiter. ou quem sabe. enviado numa cegonha por um deus extraterrestre. ou então. dentro de uma pia de água benta para me proteger dos demónios do escuro – mas já que estamos em tempo de confissões. aqui vai mais uma. tenho medo do escuro da morte. sempre tive medo do escuro. no escuro perco-me de mim com mais facilidade e o silêncio amedronta-se. aterroriza-se. fica ainda mais negro do que o próprio negro do escuro. e os fantasmas. só para me irritar. vestem-se de branco. trepam as paredes e empecilham-me as recordações – estúpidos. abutres. quando lhes cheira a morte não nos largam – há anos que os sinto a poisar sobre mim – só nas palavras sou eu. e mesmo que a respiração vos pareça terminal. sou eu a resistir – a minha realidade viverá na dignidade do pó e para sempre




13/02/2019

eu





fábio magalhães




nada em mim sei como certo. nada em mim é de tal forma meu que jamais colocaria em causa que não pudesse ser de outra pessoa – nada em mim sou eu em definitivo e tudo em mim me faz querer ser outra coisa qualquer que não sei o que. outra coisa que não sendo minha eu acreditasse que com sorte poderia ter sido. nem que fosse apenas por uma hora. ou um segundo que demorasse a passar. um segundo que fosse uma vida e essa vida não pudesse ser de outra pessoa se não eu