onde
param os meus amigos de infância? se alguém souber do seu paradeiro. por favor.
não entre em contacto comigo. não me mande SMS. cartas. telegramas ou
recadinhos em pedacinhos de papel. não os quero encontrar e também não os quero
de volta ao meu mundo – não é por mal. acreditem que não. creio apenas que não
resistiriam ao desencontro do meu crescimento – o tempo passou. envelheci. o
catraio também envelheceu. as feições mudaram. as ideias solidificaram-se. os
ossos enfraqueceram. a alma enrijou e descobri que só o silêncio e o isolamento
me protegem dos desencantos – agora. agora que o corpo estagnou. vivo numa toxicidade
só minha: solitária e silenciosa – tornei-me egoísta. foquei-me na contemplação.
no agora. retirei das paredes todas as fotos da infância e juventude. abafei as
recordações num saco plástico e atirei ao mar – o sal corrói tudo. destrói
todas as provas – solidifiquei a indiferença e rendi-me aos espaços vazios –
dentro destas paredes só existe o que sou capaz de imaginar. e quando não
penso. e as paredes se tornam gigantescas. fico sem saber o que fazer ao corpo.
é aí que escrevo. escrevo tudo o que sinto e fico com a sensação de que nada
sei do que sinto – é esta insatisfação persistente. cruel e impiedosa que me
revolve o corpo. e o que estava longe está agora aqui: o primeiro dia de
escola. o carrinho de rolamentos. o autocarro para monte d`arcos. a hora de
comungar. de amar. de guiar a 4L ou das mãos a cheirar às anilinas. às máquinas
e às pessoas vestidas com batas autênticas. o tempo não mudou esta sensação de
sentir. está tudo igual – há coisas que permanecem em nós para sempre. é como
se dentro do corpo houvesse uma gaveta mágica onde guardamos o que sentimos e
sabemos o que sentimos: este sentir não tem tempo. nem vento. nem chuva. nem
andorinhas. nem folhas caducas. nuvens para lá e para cá. sinos. azevinho ou
gaivotas a planar sobre um lago batido a vento norte. o que era continua a ser.
e o que sentia continuo a sentir – sempre achei que sabia tudo. mas agora dei
conta que não sei nada – sou afinal quem? se fosse sábio. se fosse um homem
igual aos outros. se não tivesse medo do que não sei. se não tivesse medo da
minha ignorância. não gastava mais tempo a escrever o que sinto. não. saía de
mim e vivia. vivia sem medo de não saber o que não sei – saia das mãos.
encerrava-as no correr da morte. transformava-me numa gaivota e voava por esses
céus desconhecidos. voava e vivia. porque para viver basta abandonar o que se pensa
e quando deixas de pensar deixas de ter corpo e um homem sem corpo é um homem
livre – escrevo a liberdade que sempre desejei – é nesta solidão-silenciosa.
tranquila. plácida que recuperei o caminho para me reencontrar na minha
desarrumação. numa afetividade serena. meiga. sentida. desprendida.
despreocupada e de uma compaixão imensa. sem culpas passadas. sem dedo
acusador. rancor. revolta ou rebeldia – vivo num reencontro permanente. é a
minha dança com as sombras ou os lobos. o meu passado à volta de uma fogueira
onde todos os que já foram meninos surgem para recontar a minha história – é
neste reencontro de histórias que adormeço como criança e acordo com a
esperança de que ainda vou a tempo de me aceitar no destino – agora. agora
preciso de todos os dias que me restam para fazer de mim o que realmente sou –
cumprir os desígnios do pensamento. aceitar a comoção. o desassossego dos
reencontros. inventar perdões. assumir culpas e relembrar insistentemente que o
que se sente é a única verdade que o corpo aceita – já não sou capaz de vender
a alma ao diabo. o que ficou para trás ficou e não quero que volte –
entreguei-me em definitivo ao isolamento cerebral. estar só evita estar
mal-acompanhado – a vida é um desafio constante onde a desilusão está
garantida. depois. ainda lhe juntamos a ingratidão. a injustiça. o azar e os
desígnios de deus. é como se fosse um circo. e nós ali sentados. sem saber a
quem dirigir as palmas. se ao domador pelo estalar do chicote se à fera que o
tenta morder – não quero ninguém do passado perto de mim. não quero ninguém que
me volte a ocupar o corpo. não quero mais aborrecimentos – envelheci.
degradei-me. perdi a inocência. a fé e a vontade de mudar o mundo –
envelhecemos todos. todos os meninos envelheceram – não há remédio contra o
envelhecimento – quando se perde a fé todo o corpo deixa de acreditar. os
ouvidos deixam de ouvir. a boca cala-se e mantemos os olhos fechados mesmo
quando estamos acordados – estou mais morto do que vivo – tenho a certeza que
um dia. depois da minha morte. cada palavra escrita encontrará um sentido para
existir – o que escrevo será para sempre o meu reflexo num lago batido a vento
norte: ondulo… ondulo… ondulo
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
27/02/2019
num lago batido a vento norte
pintura - inês dourado
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