.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/12/2023

ora aí está 2024!

 







chegou o momento de me despedir de 2023 – fazendo o somatório deste ciclo de 365 dias. experimento que foi um bom ano. tive saúde. pessoal e profissional. e principalmente. tive família e amigos por perto – que mais um homem pode desejar? quanto ao vil metal… não recusaria um pouco de mais bondade. sei que sou um privilegiado neste mundo antagónico: guerra e paz. fome e abastança. habitação e desabrigados. saúde e doença. solidão e família. mas creio que não pecarei ao desejar mais uns trocos. seria como a última pincelada numa obra de arte. assinatura de autor para alindar um pouco mais a minha ambição – em boa verdade. não me posso enfadar com nada. este ano. já moribundo. foi uma boa casta. tive sol na eira e chuva no naval. e em nenhum momento foram diametralmente opostos – ficar-lhe-ei grato pelo que me deu. pelo que me ensinou. pelo que me fez crescer e fortalecer – que o novo ano traga consigo o melhor de 2023. e o que me sobrou em preocupações que fique esquecido para sempre – precisamos honrar o que já vivemos e receber o ano novo com alegria e esperança – faço votos para que 2024 adote a minha família e amigos com muitos sorrisos. paz. saúde e esperança – mas não podia celebrar a virada do ano sem lhe implorar um cuidado especial para um amigo também especial: para o meu prezado H. muita saúde. muita saúde. muita saúde e muita resiliência. cá estaremos a torcer por ti e por quem te acompanha todos os dias – bom ano 2024



24/12/2023

feliz natal para todos!






 


o natal sempre me envolve em sentimentos doces. suaves e nostálgicos. há nele algo adormecido em mim – contra este cocktail de sensações nada posso fazer. e mesmo que pudesse. também não o faria. gosto desta overdose de bem-estar. deste encanto hipnótico que o natal transposta em mim desde criança – é a minha festa. a festa da minha família. e na noite da consoada compartilhamos não apenas o bacalhau. mas também amor. compaixão. e generosidade – celebramos a existência de uma linhagem. o calor dos amigos. e todos aqueles que. por um motivo. ou outro. cruzaram nossas vidas – mais do que tudo. celebramos principalmente o modo como gostamos uns dos outros. como lhes dizemos o quão são importantes nesta nossa passagem terrena – é entre gorros vermelhos e bolas coloridas que compreendemos. mais facilmente. que pertencemos uns aos outros. independentemente dos laços sanguíneos que nos unem e nos trouxeram até aqui – neste dia de união familiar. recuperamos um dos maiores milagres de jesus. a ressurreição – reencontramos o meu pai. a minha mãe. a zeza. o meu sogro. o tio joão. todos retomam seus lugares à mesa. vieram consoar connosco. confortar a saudade que nos deixaram – o natal sem eles não seria o natal das boas tradições; eles são parte de nós. e nós somos parte uns dos outros – e agora. que soem as doze badaladas. e que o espírito generoso do pai natal toque os meus netos. toque em todas as crianças deste nosso mundo maravilhoso – o verdadeiro natal é aquele onde reside a inocência – feliz natal para todos!



22/12/2023

parabéns

 




um dia. como todos aqueles que corajosamente se aprontam a nascer. vou desaparecer deste mundo. espero que por velhice. por arrasto da bengala. incontinência urinária. ou de coração melado de tanto amar a minha companheira – neste dia especial. em que nasceste para mim. quero-te a meu lado… hoje. e até que o último suspiro me surpreenda – ver-te envelhecer é ver-te todos os dias mais bonita – e assim. em atrição. e sem coragem para contestar a veracidade que um dia tombará no meu epitáfio. peço a deus. ao universo. ou à sorte. que me conceda uma última vontade: quando chegar a minha hora. que o meu silêncio aconteça nos seus olhos. e eu. finalmente. possa descansar na sua eternidade – parabéns maria joão


19/12/2023

abençoados




 


olho-te

em câmara lenta

e o amor à velocidade da tua luz

e aqui

quase no fim do mundo

entre o oito e o oitenta

entre o rio e a distância

entre o coração e a multidão

o belo

 

mas amor

permite-me este instante

teu… e meu

deixa-me proclamar

ao universo

que hoje é um bom dia

para morrer dentro de ti

 

que seja então agora

entre o teu sorriso e o meu destino

entre os teus olhos e os meus lábios

entre a tua luz e os meus anéis

que os teus braços me entrelacem

e me levem para o cimo das nuvens

ou de um arranha-céus

e quando o coração parar

que na saudade medrem asas

 

pairar sobre ti

é outra forma de te ter

 

 

foi em québec que tive o impulso de escrever este poema – o castelo frontenac pendurado nas margens do rio saint laurent. a luz. as sombras. a história. a amizade dos nossos amigos. nawel e michel. mas principalmente. sentir os olhos da maria joão acesos de paz. como já há muito tempo não sentia – foi uma viagem de sonho que guardamos e agradecemos para sempre – em québec também fomos abençoados



29/11/2023

absurdo





nada das coisas que imaginei morreu em mim porque o tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem faz – ainda quero fazer milhentas coisas. mesmo que sejam absurdas – a felicidade e a tristeza alimentam-se do pensamento. mesmo absurdo – penso. logo sou absurdo – utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos o deixarão de ser – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o absurdo em mim possa parecer loucura




24/11/2023

eu. a vidinha. e os amigos

 







[tratado sobre amizade]

 

I.

o que seria da nossa vidinha sem os amigos? sinceramente não sei. sempre tive os amigos perto de mim. a ocuparem espaço. a absorver-me. a falarem muito. e eu também. a ocupar muito espaço. a absorver. a falar. a acenar para trazê-los para dentro do que sou e sinto – com a idade vamos perdendo amigos. amigos ou coisa parecida. encostos. passageiros do nosso tempo sideral. almas com mágoa e dor. como eu – destes amigos. alguns apenas dormitaram de um dia para o outro. e pela manhã. fizeram um café forte e partiram em expresso – outros. estalaram-se. depositaram o corpo em mim. e obrigaram-me a ficar fiel depositário.  e ali fiquei. com as mãos estendidas. como deve um amigo ser. presente. para evitar males maiores. ou que se aborrecessem. ou partissem. afinal os amigos são coisa fina. cristal de murano – mas o tempo é ruim. e tal como o cometa halley. alguns destes amigos seguiram viagem. é a vidinha. talvez apareçam daqui por setenta e cinco anos. serão bem-vindos se tiverem boas razões para voltar. e muitas histórias para contar – os amigos são assim. humanos como eu. às vezes precisamos de partir. precisamos de abalar para local desconhecido. para ser como somos. para ter tempo para ser o que realmente somos – mas. enquanto nos escondemos na vidinha que nos tocou. sim. porque às vezes não temos escolha. precisamos do escuro para clarear ideias. procurar o que demos por perdido. aprender a escutarmo-nos. aceitarmo-nos. limar as complexidades com uma pequeníssima lima de manicure. os amigos abalam. e quando voltamos do escuro já não temos ninguém à espera – a vida corre sempre para a frente. para a invisibilidade. e o que ficou para trás não passa de nevoeiro. igualzinho ao de d. sebastião. acreditamos que um dia tudo volte a ser como dantes. não volta. como não voltou d. sebastião – depois. ainda há os amigos intermitentes. aparecem e desaparecem consoante o que lhes convém. ou os humores. ou as tragédias. e chegam como se nunca tivessem partido. a sorrir. a dizerem que a vidinha é uma trampa. que o tempo é como as enguias. escorregadias. e abraçam-nos até os ossos estilhaçarem. juram saudades que são quase dor. e convencem-nos que no canto do seu olhinho reluzente. a ramela é verdadeira. sobra da última lágrima. que depois de bem seca. se faz cristal. possivelmente também de murano – com o tempo fui perdendo amigos. ou coisa parecida. mas quem não os perdeu? só não os perde quem nunca teve o privilégio de os ter – crescemos e tomamos caminhos diferentes. é a vidinha. digo eu agora que já não encontro razões para tanto desencontro. a juventude envelheceu. passou a sénior. o corpo amadureceu. a memória enfezou. as mãos aceitaram os tremores. o coração bate e esbate. e o céu ficou mais perto de belo – agora. neste estado de pré-decadência apressada. mais complacente. mais sabedor de que nada sei. encontro outros entendimentos. mais nobres e mais rebuscados. acertados com mais predicados. o corpo roga mais tolerância e menos ego. e finalmente. percebemos que os amigos vivem na arca do nosso santo graal. com a família. e guardam em si todos os seus mistérios. como eu – o que mora dentro de cada um dos nossos amigos apenas pertence a um só corpo. e só esse corpo conhece e sabe as verdadeiras razões da sua viagem – como disse agustina bessa luís. o mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única – é a vidinha – envelheci demasiado. quando quero lembrar-me de mim. com o corpo esguio. e o cabelo a cair para o lado dos sorrisos. tenho que me procurar nas fotos. e fico sempre espantado. e interrogo-me: este sou mesmo eu? parecia passado a ferro. lisinho. as pontas dos pés acertavam-me em cheio no nariz. e os lábios sempre prontos a falar. às vezes a desatinar. quando ficavam excitados anunciavam bom tempo. com as gaivotas a saírem-me do céu da boca. loucas. e o vento… sempre a puxar sul. acompanhado de um aroma suave. fresco. e a pele eriçada. arrepiada com um mundo redondo. azul. com mares. com alma. sol e sal. e o pulôver atado à cintura a desafiar o outono. o meu outono. era um miúdo com uma vidinha gira – e eu sem saber quão rápido chegam os outonos. ingénuo. é a vidinha. não apenas a minha. mas a de todos – mas enfim… é o que é. consola-me saber que os meus amigos também envelheceram. fizeram-se das suas razões. tornaram-se no que quiseram ser – as histórias de amigos acabam sempre com um final feliz. ou quase sempre. as que acabam mal existem para nos obrigar a ter cuidados redobrados. cada amigo tem um mundo que é só seu. tem o seu mistério – o tempo coloca tudo no seu lugar. acerta as horas pelo fuso de cada um de nós. e depois. aparece aquele momento. que relembraremos para sempre. principalmente nos desequilíbrios. nas noites mais cumpridas. nas dores invisíveis. em que nos tornam eleitos. únicos. diferentes das maiorias. que é quando nos dizem: és um bom amigo. especial. singular. e sorrimos tímidos e envergonhados. estranhamos. mas depois entranhamos. e obrigamos as gaivotas a sair da boca. pedimos-lhes que levem a boa nova ao mundo. e ficamos em festa. gratos. encantados com o que somos. e esquecemos por mais um século o que gostaríamos de ser – os amigos são a nossa rosa dos ventos. e o norte aponta sempre para eles. para eles e para a família – a felicidade não é assética. mas é quase sempre efémera. às vezes ilusão. às vezes apenas o contrário de dor. que acabamos rapidamente por a rejeitar. medramos só de saber que está a caminho de nos encontrar – para cada segundo feliz sofremos horas de agonia. foi assim a vidinha. não foi feita para nós. não somos dignos de a saborear por um ano. um mês. um dia. temos apenas direito a momentos felizes. espremida apenas de pensamentos joviais. em noites de auto-satisfação – é como vestir umas calças com dois números acima. se não usamos cinto. caem-nos. se colocamos cinto. encarquilham. num caso. ou noutro. ficamos em dúvida se engordamos. ou emagrecemos. e acabamos por preferir a neutralidade. nem feliz. nem infeliz. usamos um número intermédio. e tudo encaixa na perfeição. é o número mágico. faz-nos invisíveis. assim. ninguém nos pergunta se está tudo bem. ou mal. estamos sempre com ar de nem oito. nem oitenta. às vezes quase mortos. às vezes na lua. mas aos olhos da multidão. está tudo legal. como sempre – enquanto a infelicidade que infligimos aos outros. digo. aos amigos. fica para sempre. e quase todos os dias vem à memória o dia do pecado mortal. arrependemo-nos. laminamo-nos. sangramos até à exaustão.  mas a vidinha não anda para trás. e em dor e fogo tatuamos na pele três palavras: és uma vergonha – e quando estamos sozinhos. apenas connosco. vestimos uma túnica branco. e tal como egas moniz. ajoelhámo-nos. entregámo-nos em perdão. e ali ficamos à espera que a cabeça nos caia nas mãos. com os nossos olhos. nos olhos dos amigos – não se pode virar as costas a um amigo de olhos no chão – agora. as gaivotas já não me passam pelos lábios. penduram-se como morcegos no céu da boca. a degustarem o meu refluxo estomacal. e o verme do tempo a mastigar a vida num vagar tonto e esquizofrénico – finalmente absolvido. mortal. finalmente todos mortais. todos perdoados. eu também

 

 

II.

mas que importa isto. ou aquilo. o que sei é que comecei a caminhar onde o passado me criou. e às vezes passo pela rua que me viu nascer. e tento encontrar-me. e não me vejo. desapareci daquela rua para sempre. ou fiquei invisível. e por mais tentativas que faça para me encontrar. não me encontro. a vidinha é isto. uma ilusão de eternidade. e o que nos espera é uma sucessão de pequenas mortes. que nos faz desaparecer aos bocadinhos. e um dia. sem nada pudermos fazer. desaparecemos para sempre – como eu. os amigos. desapareceram por culpa da vidinha. tornaram-se invisíveis. e quando tentamos recuperar a sua face. já não conseguimos. esfumaram-se na vidinha. ficou-lhes o nome. que viverá enquanto eu viver. e depois. também um dia. quando eu expirar. quando as gaivotas me morrerem na boca. e o verme saltar para a terra. morremos todos para sempre – a vida corre desenfreada para o fim. para o pó. e nesta correria parva espera-nos a invisibilidade. a minha. e a dos meus amigos – e a rua onde eu nasci. será a rua de um outro como eu. que perderá amigos como eu. e envelhecerá como eu. e tornar-se-á invisível como eu – é assim que o mundo gira. é a sua vidinha – às vezes desistimos da vida e ainda respiramos. estamos fartos de perder coisas: perdemos os sapatos de pele que nos custou uma fortuna.  perdemos o avião para veneza. perdemos o nascer do sol. perdemos a chave de casa. perdemos tempo. e logo logo perdemos a esperança. e a honra. e a dignidade. e a calmaria que nos faz esperar pelo nosso dobrar dos sinos – pedimos então suicídio. e é quando nos perdemos de nós. do caminho que sonhamos. e metemos a mão à boca para deixar de respirar. e ouvimos o verme a agoniar. e as gaivotas loucas na escuridão a cravarem-se nos dentes. e as lágrimas que nunca serão cristal de murano caiem-nos em cima da verdade. cristalizam-nos – cristalizam-nos na verdade absoluta – não somos nada. somos apenas passageiros da vidinha – e a saudade de todos os que amamos a passar pelos olhos ainda abertos. em desespero. numa agonia brutal. e aos poucos vamos sufocando. e a morte acontece na sua imperial simplicidade – é o fim da vidinha. único acordo de cavalheiros apalavrado com o primeiro sopro de vida: um dia morrerás e serás para sempre invisível – é a vidinha – envelhecer nem sempre é castigo. envelhecemos para termos a última aula de saber. começamos a respeitar o tempo. aprendemos a amaciá-lo. a torná-lo num chá quente. reconfortante. e percebemos que enquanto respiramos é nossa obrigação juntar as moléculas e marchar. meter as esporas nos pés. deitar o corpo sobre a vidinha. como um jockey se deita no seu cavalo para que o galope alongue. e partir desenfreado pelo o que nos resta de tempo. conquistá-lo com dignidade. atingir a meta com honestidade – por minha culpa. tão grande culpa. às vezes creio que também sem culpa. para cada amigo que ia conquistando. perdia três. às vezes perdia uma mão cheia de uma assentada. e nem um me chegava em troca – pensava. é o êxodo. castigo de deus ou do universo. ou então. iam em busca da sua vidinha prometida. que mal lhes posso ter por quererem a sua vidinha – com o meu outono chegaram os novos amigos. mais compostos. mais parecidos comigo. mais doces. a falarem de coisas mais adocicadas. talvez porque também eu me tornei mais meloso. mais cuidadoso com as portas que abro. culpa da vidinha. ou da minha falta de maleabilidade – a plasticina ao tempo fica rija e impossível de trabalhar. e posso confessar-vos agora. já não me trabalho como antigamente. agora prefiro escrever e abraçar os amigos mais certos. os que me tocaram por gosto – não foi de propósito. foi a vidinha. outonos em demasia. amadureci. como se fosse um fruto. talvez um morango. ou uma laranja. ou a maça do paraíso. que estupidez. como é que algum dia poderia ser um fruto. petrifiquei-me. e mesmo abrindo a boca e espantando as gaivotas. não fui suficientemente bom comigo. não me perdoei. às vezes perdoo-me. mas muito devagarinho. suportando-me. serrando os pulsos – sem dor não há perdão sentido – mas confesso. ainda não consegui desfazer-me do amargo da vidinha que fui esbanjando – infelizmente. nem sempre vento e liberdade são sinónimo de envelhecimento com estima

 

 

III.

os amigos são como elevadores. apanhámo-los na vidinha. e rapidamente os convidamos a subir ao último piso de nós. chegados lá. sem custo. animados pela conquista. ainda fazemos questão de subir mais uns degrauzinhos. queremos chegar mesmo ao topo. para o céu nos escutar sem esforço. e para terem uma vista real da nossa magnitude. e logo dizemos: estás a ver tudo isto à tua volta. é tudo meu. é o meu pé-de-meia da vidinha – a amizade é uma forma de amor. e tudo o que é amor é lei universal. augusto comte. fundador da sociologia moderna. escreveu um dia o seguinte: “o amor por princípio. a ordem por base. e o progresso por fim” – por princípio os meus amigos. são aqueles que se predestinam a sofrer a meu lado. para sorrisos nunca me faltou espaço no relicário – os meus amigos sempre foram os meus heróis. eram todos aquiles. guerreiros. poderosos. inteligentes. bonitos. apenas pequeníssimas debilidades nos calcanhares. por serem aquiles. presentes nas horas más. sangrando comigo. chorando. agoniando. apoiando. dizendo-me: amanhã é outro dia. acredita – os meus amigos são a minha poesia épica. a epopeia da minha vida. da nossa vida – eles e a família são o meu anel de fogo. que me protege no tempo. que é a minha vidinha. e que por ser escassa e trabalhosa. acabou tresmalhada nos seus enredos – na nossa vidinha não há grandes possibilidades de voltar atrás para refazer o destino. o que nos em calhou em sorte. ou desnorte. ou então sou uma experimentação de deus. ou extraterrestre. uma ordem do universo. com o rótulo: experiência 17552. do ano estelar -41296.36. o que está feito. feito está – é por isso que os levamos para o último piso. que é o mesmo que lhes oferecer um sofá para dentro de nós. sentamo-nos nas telhas. algumas de vidro. que são o calcanhar de aquiles. e mostrámos-lhes como tudo é fantástico. damos-lhes o melhor do que gerámos. escondendo o nosso buraco para o inferno – e depois do barulho. quando o silêncio nos despe. humildes. falamos-lhes da nossa pequeníssima vidinha. sem interesse. nebulada. escura. fria. e irritante – somos o que somos. independentemente do que nos rodeia – apontamos para uma árvore. uma que está mais acima do que as outras. talvez com as folhas mais verdes. talvez também mais elegante. e apenas dizemos: olha que árvore bonita. que bela. e olha a cor. e o tamanho das folhas. tão geométricas. tão certas. tão perfeitas – procuramos o belo-estético onde não existe mais do que apenas o belo de uma árvore. igual a tantas outras. e que não servem para mais nada do que para poiso de pássaros – e as minhas gaivotas presas ao céu da boca. incrédulas por tanta louvação e esplendor. a interrogarem-se para que servem tantas árvores se lhes falta um mundo redondo. azul. com mares. alma. sol. e o sal – um dia. estas árvores tornar-se-ão também invisíveis. apodrecerão. ou acabarão nas mãos de um marceneiro. nada fica para sempre. nem a água da chuva. nem o vento. nem o amor. nem os olhos que o veem – respiramos o belo como se estivéssemos drogados com tanta afinidade. como dizia miguel torga: daqui se vê o belo absoluto – olhamos um para outro e interrogamo-nos: o que há dentro de nós de tão mau para nos darmos tão bem? quando gostamos de um amigo perdemos o nosso vento sul. e as gaivotas voam de olhos fechados. afinal o mundo é azul. com mares. alma. sol e sal – olhamos ao redor e todos as árvores são especiais. e todas diferentes. umas mais pequenas. encorpadas. mais esguias. e até as atarracadas te seduzem. e dizemos em uníssono: um dia serão enormes – interrogamo-nos. porque são as árvores tão esguias? e concordamos: para se protegerem do outono. das intempéries. dos ciclones. dos dias frios. e do gelo da vidinha – mas um dia. se tiverem sorte. darão uma credência d. maria às mãos de um marceneiro – que final feliz para uma vida – e ali ficamos. dias a fio a olhar a imensidão das árvores. a imensidão do futuro. o infinito. a contar credências d. maria. a viver a vidinha. a sorrir. a ser um bocadinho felizes – depois. e como a maior parte dos amigos que levamos para o nosso terraço. deixam de ver árvores. e o céu desaparece. agoniam no nosso belo absoluto. cansam-se. arfam. bocejam. arrotam a fim – é a vidinha – os amigos não passam de humanos com as suas vidinhas. iguais a todos os humanos. mas diferentes de mim. não por não ser humano. mas por razões que desconheço. ou conheço e não compreendo. o que sei. mesmo não sabendo explicar. é que num instante absoluto. ou não. aos seus olhos. às vezes também aos meus. o belo falece. e um deserto supremo emerge. é como se de repente estivéssemos acampados no saara. e o desespero do fim amarra-se à vidinha que ainda sobra. como a areia ao vento – agora. eu e alguns amigos. ou coisa parecida. percebemos que as árvores afinal não são tão altas como pareciam. e as credências d. maria. não passam de bancos saloios de três pernas – é quando entra em equação o tempo. essa coisa que muda tudo. transforma o novo em velho. as ideias geniais em ideias parvas. o pensamento positivo em negativo. e o belo… num susto – começas a centrifugar-te. cada vez com mais velocidade. numa circunferência descoordenada. e percebes que o que era belo já não é assim tão belo. afinal a grande maioria das árvores nunca serão credências. nem bancos de três pernas. serão somente árvores. nada mais do que árvores – juntas eram uma floresta. sozinhas não são nada. talvez quase nada. porque mesmo sozinhas não deixam de ser árvores. existem. mas mais tarde. ou mais cedo. serão lenha seca. é a sua vidinha. e ao fim de cada dia. o sol desaparece por detrás de cada uma delas. desaparece para todas. para mim também – e cada um de nós guarda o seu universo. mais nosso. e deles também. tão nosso. e deles também. que apenas nós. e eles também. o compreendemos – começamos a preferir-nos. a querer mais para o que somos de verdade. nem que seja um dedal de felicidade. um sorriso que dure mais que um instante. que cavalgue pelo tempo. anunciando a boa nova: chegou a idade do saber – mas se for mentira. que nos engane com classe. e nos faça acreditar até que o último suspiro caia por terra. com o verme – percebemos que em qualquer vidinha somos únicos e fantásticos. é altura de apostarmos em nós. ganhamos coragem. e assim fazemos. metemos então as fichas todas no tempo que nos falta viver. e cruelmente. deixamos de querer compreender as outras vidinhas. e dizemos: é a vidinha – voltamos a ficar sós. como árvore. podíamos ser uma floresta. mas não somos. somos apenas nós com a nossa vidinha – metemo-nos novamente no elevador e começamos a descer. primeiro apenas um andar. depois outro. às vezes dois de cada vez. e em cada um dos andares deixamos sair amigos que connosco subiram ao topo do belo absoluto – é quando começamos a contar os amigos que perdemos ao longo da nossa vidinha. e percebemos como é cruel. alguns não gostaram do meu terraço. das alturas. outros deixaram de gostar de árvores. e outros não gostam de nada. nem de si. é a vidinha. digo eu – e eu a interrogar-me: porque estão tão longe de mim? juro que não sei. a mim parece-me que estou sempre mais perto deles – o que sei. palavra de honra que sei. é que os meus amigos de verdade estão mais perto do céu do que eu. são especiais. mais tarde ou mais cedo todos serão credências d. maria. é a vidinha – a minha grande interrogação é porque não fui capaz de os manter a todos no topo do meu edifício. não pode ser culpa só deles. eu também me devo ter perdido com a vidinha. talvez por acreditar que nunca seria uma credência d. maria – é a vidinha. mas esta vidinha. esta minha vidinha. interroga-me todos os dias: porque raio é que vivo num edifício tão alto? se vivesse mais perto do chão tudo seria mais fácil. abria a janela e todos aqueles que me quisessem conhecer só teriam de espreitar. e mesmo que não gostassem das quinquilharias que carrego. podiam sempre ir passando. porque afinal estamos sempre a mudar de quinquilharias. e quem sabe um dia. passavam com outros olhos. noutra vidinha. e até talvez parassem para conversar. e falassem um pouco da sua vidinha. e eu falaria da minha. falava-lhes do desejo de um dia ter uma credência d. maria em casa. para por ao lado de um banco saloio de três pernas – mas é a vidinha. feita de caminhos que nos cercam por todos os lados. e ali andamos como se fosse uma ilha. com o nosso oceano de árvores. e de outras coisas que por serem muito nossas. guardamos em buracos que são o inferno. protegidas por fantasmas. guardiões do calcanhar de aquiles – e agora. neste caminhar vagaroso. percebo que poucos ficaram na minha vidinha. mas os que ficaram. os que vivem em mim. sei bem porque os amo. porque todos eles são credências d. maria – não quero mais portas a abrir e a fechar. quem entrou é cristal de murano. é para segurar de mãos abertas. é para nos sentarmos no sofá e apreciar o belo absoluto. amaciar os silêncios. enganar o verme. e libertar definitivamente as gaivotas. as minhas e as deles – e se por acaso o tempo se fizer mau. se chegar uma borrasca. abro as janelas para que o vento me limpe as lágrimas das ausências – sei agora que a culpa da vidinha que escolhi é minha. só minha. e com ela. um dia. me tornarei invisível – mas agora também sei. que não posso perder mais ninguém. tenho o corpo lotado de campas e saudade

 

16/11/2023

chegar até aqui







foi uma trabalheira gigantesca chegar até aqui – mas cá estou hoje. a falar livremente e sem medo. porque quando alguém ler estas parvoíces que escrevo. será passado. e o passado nunca mudará o futuro. só o presente tem essa dinâmica. e é por isso que escrevo. hoje. este meu presente. que fará o meu futuro mais compreendido


 


21/10/2023

13/10/2023

in: vulnerabilidades








“mais do que descobrir o que deixei para trás por causa das minhas vulnerabilidades. importa-me saber o que posso mudar para a frente – o futuro é sempre mais importante. é lá que um dia morreremos. e é bom manter a gaveta arrumada. nunca sabemos o dia em que apanharemos a barca para outra dimensão” – in vulnerabilidades

 


06/10/2023

procuro-me

 








às vezes pergunto-me

está tudo a correr bem?

e não sei responder

às vezes pergunto-me

o que tens para fazer?

e os dias correm

como se o mundo tivesse

coberto de trovões

depois…

chega a noite

e pergunto-me

o que deixei por fazer

e não sei responder

sei que o sol alvorou

escondeu-se

talvez atrás do que não sou

e a noite… travessa

escorre para dentro do que sou

é quando sonho com girassóis

e me faço terra

e sou o que brota de mim

um dia girassol

um dia sol

um dia só

e pela manhã

quando acordo sem saber quem sou

leio o que escrevi

com a mão girassol

e encontro o que sou

e esqueço o que não sou

e vou

vestido de amarelo-terra

às vezes para a frente

às vezes para trás

e se de dia vejo montanhas

à noite

vejo palavras

e entre o que não enxergo

e as palavras

recrio-me

e sou o que sou

por bem

ou por erro

e por nada poder fazer

porque o que não sou

não sou mesmo

e sendo apenas eu

sem nada feito

sem nada por fazer

sou girassol-luz

a fazer de mim

o que sou

a sobreviver

a envelhecer aos bocadinhos

para um dia morrer

como nasci

 



20/09/2023

eu e as mil e uma vulnerabilidades - 1

 



foto - sampaio rego



1.

stutz. psiquiatra americano. famoso pelo documentário produzido pelo realizador jonah hill. e que pode ser visto na netflix. disse: não existe progresso sem vulnerabilidade – ainda não me tinha apercebido da imiscuição desta palavra no nosso processo de crescimento: vul-ne-ra-bi-li-da-de – resolvi perguntar-me: quando foi a primeira vez que me senti vulnerável? que impacto teve essa vulnerabilidade na construção da minha personalidade? como estou aceitando [agora] essas vulnerabilidades? qual a relação entre as minhas vulnerabilidades e as regras que a sociedade impiedosamente impõe? não será fácil responder a todas estas incertezas depois de tantos anos sem me questionar. não porque não passasse toda a minha vida a questionar-me. mas na verdade. nunca tinha introduzido a palavra vulnerabilidade na equação do meu crescimento – mas aqui estou em viajem por mim. descobrindo-me. procurando-me. desbravando-me. levando luz à escuridão. tratamento à dúvida. paz ao destino final – todo o homem nasce livre. mas rapidamente é arrastado para cativeiro. as sociedades são as grades do corpo e. principalmente. da mente – somos todos. sem exceção. aprisionados a dogmas. a leis. a hábitos e costumes. e estas. impiedosamente.  impede-nos de viver uma liberdade absoluta – malditas sejam. digo eu. benditas sejam. digo eu – estas leis. absolutamente necessárias. não digo todas. mas a maior parte. têm como objetivo regular comportamentos. criar padrões de aceitação coletivos. e deste modo. acertar procedimentos. catalogá-los entre o bom aceitável. e o mau inaceitável. reordená-las por ordem de grandeza e importância. penalizando com multas ou censura pública os casos menos graves. castigos corporais e privação da liberdade.  para os casos mais graves – é deste modo que o mundo gira certo todos os dias. repetindo-se. castrando a criação. inventado mandamentos. criando doutrinas. limitando horizontes. parindo diariamente novos zombies – as regras podem ser morais. sociais. religiosas. políticas. às vezes impostas de forma violenta. às vezes castradoras. às vezes democraticamente. mas quase sempre refletindo padrões e valores da sociedade em que estamos inseridos – todas as regras tem apenas uma finalidade: possibilitar a comunhão comunitária. evitar a anarquia coletiva. fortalecer o controle de quem tem o poder – nascemos. e automaticamente somos injetados de um vírus. que nos torna adaptáveis ao sistema de valores e regras do mundo que nos recebe. e aos poucos. tornámo-nos repteis. começamos a rastejar entre o que os outros são. e o que não queremos ser – aceitámo-lo porque isso é o antidoto para que sejamos também aceites. e de tempos em tempos. mudamos a pele. tal como os répteis. e expomos as nossas vulnerabilidades. ou inadaptabilidades. ou mais grave. um cérebro que se recusa imperiosamente em pertencer a esta ordem imposta – então. enquanto a nova pele não adquire defesas. cobrimo-nos com um cobertor que nos torna invisíveis. e caminhamos pelo mundo em silêncio. pedindo apenas pão e água para sobreviver. fazendo rolar as pedras dentro de nós. ajeitando o cérebro ao desconhecido. mutilando-o. amedrontando-o. dizendo-lhe: cuidado com o que queres ser. podes muito bem cair pela tua escada de caracol – somos. em cada instante. uma história em construção. onde os outros. de forma direta ou indireta. colaboram na criação das nossas vulnerabilidades – cabe-nos encontrar as ferramentas certas para que possamos ter uma leitura correta dessas mesmas vulnerabilidades. depois. controlá-las. domesticá-las. ou simplesmente aceitá-las – para encontrarmos certezas é preciso compreender cada momento da vida. não podemos caminhar pelos anos e. tresloucadamente. arrastar violentamente a cabeça para a adolescência. já não encontraremos o mesmo miúdo – mas podemos trazer e tratar as vulnerabilidades criadas no passado longínquo. ou mais recente. na cabeça de hoje – e nesta nova conjetura. com mais liberdade. mais coragem. e porque um homem envelhecido é sempre mais sábio. identificar cada vulnerabilidade. tratar o que for de tratar. e o que já não tiver remédio. resignarmo-nos. aceitarmo-nos com perdão. untarmo-nos de mel – em boa verdade. nunca saberemos em que pilar assentou o nosso crescimento. ninguém nos pode garantir que não foram essas vulnerabilidades a principal razão de termos sobrevivido às interrogações com que fomos obrigados a crescer. a viver – respirar será sempre uma interrogação. interrogarmo-nos a solução para sobreviver – nenhum homem saudável cresce sem se interpelar diariamente – sobrevivemos numa comunidade selvagem com regras que nos tornam inertes. mansos e adaptáveis. onde os outros raramente são neutros. são antes. outra história vulnerável dentro da nossa

 

2.

passada a introdução. aqui estou para falar de mim. do presente para o passado. e do passado. para a verdade de hoje. pois não estou certo se era a verdade do passado – era demasiado novo para saber pensar. nesse tempo veloz. preferia correr com as minhas certezas absolutas – nunca podemos esquecer que por essa altura eu era imortal. e mesmo admitindo que não sabia tudo. acreditava que já sabia o suficiente para ter mais ouvidos para mim do que para os outros – agora. e depois de viajar por mim. num vai e vem alucinante. e em total liberdade intelectual. fruto da ancianidade. e desta minha enraizada convicção de que nasci selvagem e assim morrerei – compreendo que de alguma forma. sendo mais cruel comigo ou menos. sempre me senti vulnerável – no entanto. ainda hoje não sinto que as minhas vulnerabilidades se tenham tornado estruturais no meu crescimento. talvez me tenham obrigado a colocar mais cobertores. mais armaduras. mais ferro para cimo das costas. mais bandeirinhas na ponta da lança. e por via deste ferro pesado. tenha caminhado mais curvado. mais lento. e mais trôpego – creio até que foram essas vulnerabilidades que me tornaram mais capaz de enfrentar o crescimento. de enfrentar a verdade. de recusar a mentira. de fazer da justiça o meu estandarte de armas – a pergunta sem resposta é se chegaria ao mesmo destino sem a armadura – a minha primeira memória de vulnerabilidade chega-me da adolescência. com os amigos de porta – naquele tempo brincávamos na rua. crescíamos na rua. e esta. tal como se fossemos plasticina. moldava-nos. às vezes fortes. às vezes com vulnerabilidades para o resto da vida – a rua habita em mim. cravou-se-me no corpo. atravessou-me a alma. e tal como um delta de um rio é formado por vários canais. também eu me dividi em interesses. em vulnerabilidades. em traumas. em dor. em abraços também. em amizades para toda a vida. em inimigos. em arrependimentos. etc. – no meu cérebro desaguaram todos os sedimentos da vida em que naveguei. nada deixei ao abandono. nada ficou sem travesseiro – é isso que agora procuro. nas borras. catando os imponderáveis. olhando as cicatrizes. as dores que sofri. as que escondi. enterrando as mãos pelas vísceras. apertando-as uma contra a outra. entrelaçando-as. espremendo-as com cólera. saber e justiça. decantando-as ao tempo. e no vagar do mundo de hoje. esperar. e acreditar que a qualquer momento. uma pulga gigante me salte das mãos. do coração mais profundo de mim.  e instantaneamente. como as luzes de um fogo de artifício. a história verdadeira das vulnerabilidades me jorre em luz. e como estas. viga mestre. ou de amparo. me suportaram. moldaram. adaptaram. ou induziram negativamente. ou positivamente. o meu caminho até aos dias de hoje – no entanto. mais do que descobrir o que deixei para trás por causa das minhas vulnerabilidades. importa-me saber o que posso mudar para a frente – o futuro é sempre mais importante. é lá que um dia morreremos. e é bom manter a gaveta arrumada. nunca sabemos o dia em que apanharemos a barca para outra dimensão

 

3.

sempre achei os meus amigos mais interessantes. mais bonitos. mais inteligentes. e mais capazes de serem felizes – nunca me tive em boa conta. mas também nunca foi coisa que me preocupou. sempre acreditei que haveria um caminho para mim e que o iria fazer com mais ou menos brilhantismo – o que sempre soube. porque há coisas que sabemos e não sabemos explicar o porquê de as sabermos. é que construir-me daria muito trabalho – assim foi. confirmo. foi uma trabalheira gigantesca chegar até aqui – mas cá estou hoje. a falar livremente e sem medo. porque quando alguém ler estas parvoíces que escrevo. será passado. e o passado nunca mudará o futuro. só o presente tem essa dinâmica. e é por isso que escrevo. hoje. este meu presente. que fará o meu futuro mais compreendido – saí de casa para chegar aos amigos em total liberdade. diria. dono de mim. tudo o que os meus pais exigiam é que regressasse a casa para as refeições. que mantivesse a roupa asseada e composta. não estragasse os sapatos a jogar à bola. o que nunca respeitei. e por isso. recebi várias reprimendas da minha mãe. ameaçando-me com a compra de chancas – assim viajava todos os dias para a minha rua. que na altura era do tamanho do mundo. dono e senhor de mim – maior do que a liberdade em que vivia só o pudor que carregava. escondido debaixo da roupa. com a cabeça abatida. medroso. inadaptado. com a subserviência estampada na cara. afinal não passava de uma criança a dar os primeiros passos na selva – as crianças e os adolescentes podem ser cruéis. todos sabemos. e foram comigo. rapidamente perceberam as minhas vulnerabilidades e atacaram como leões. esfarrapavam-me diariamente – a grande maioria dos meus amigos tinham os seus progenitores a trabalhar para o estado. e como era habitual naquela época as mães eram donas de casa. com tempo para tudo ou quase tudo. uma das principais preocupações era manter os filhos debaixo de olho o dia todo – os meus pais eram industriais. tinham o seu negócio. uma pequeníssima fábrica de artigos de pele. que sobrevivia com muitos momentos de agonia e sofrimento. como quase todos aqueles que tinham os seus negócios próprios na época do estado novo – a minha liberdade não foi conquistada. chegou naturalmente. o meu pai viajava e a minha mãe era a mulher guerreira. era quem geria toda a fabricação e. por isso mesmo. e também porque a vida era dificílima. e o dinheiro escasso. eu era deixado um pouco à minha sorte – não estou a queixar-me. muito menos a acusar. nunca me faltou nada. nem amor. nem preocupação. os meus pais são os meus heróis. a minha família é uma cruz que carrego com honra – aos olhos das mães dos meus amigos esta minha liberdade nunca foi acolhida com agrado. eu era um filho da rua. um potencial marginal. quem sabe em adulto um serial killer – havia um preconceito racista contra os filhos de industriais. que na maior parte das vezes se traduzia num assédio persistente. procurava-se o erro e o defeito. e quando não se encontrava. sempre restava a indiferença e marginalização – o respeito pela individualidade era reduzido ao sorriso preconceituoso. maldoso. na maior parte das vezes tortuoso – todo o industrial é burro. e filho de burro. burro é – na época havia dois tipos de industriais. os imensamente ricos. com empresas enormes. centenas de empregados. e que pela sua importância local eram idolatrados e respeitados – no final do século XIX e princípio do século XX. muitos desses industriais. geralmente ligados ao setor têxtil. foram agraciados com títulos honoríficos – ser conde ou visconde era apenas uma questão de dinheiro – claro que nem todos se tornaram nobres. mas os industriais de empresas de grandes dimensões tinham um tratamento diferente. a sociedade pela frente respeitava-os. nas costas. eram como os outros – a outra linhagem. a pobre e desgraçada. emergiu na sociedade fruto do trabalho duro. alguns sem nenhum tipo de instrução. mas com uma vontade enorme de triunfar na vida – eram homens de família. rompiam as alvoradas com uma única ideia presente. uma vida melhor para os filhos – geralmente. estas pessoas vestiam-se mal. eram broncos. e tudo se resumia a força. pouco asseados e pouco dados a boa vizinhança – felizmente os meus pais eram o oposto desta elite negativa. mas mesmo assim o preconceito resistia e sobrevivia. principalmente em vizinhos dependentes do soldo estatal: trabalhadores da função pública. câmaras municipais. governo civil. militares. legião portuguesa. professores. etc. – por incrível que possa parecer nos dias de hoje. naquele tempo. estes funcionários do estado. tinham um estatuto diferenciado. uma espécie de uma segunda elite. que se alicerçava no fato de saberem ler e escrever. e por isso. serem melhor remunerados – como ganhavam mais do que a maioria da população. tinham uma vida bastante mais melhorada. podiam alugar casas de construção mais recente e mais centrais. alguns já tinham o seu automóvel. andavam mais bem vestidos. os seus filhos apresentavam-se na escola asseados e calçados. e depois da primária seguiam os estudos no liceu – a elite das elites. naquela época. eram as profissões com canudo. médicos. advogados. engenheiros. que por serem escassos. gozavam de um estatuto muito superior. eram endeusados – vivíamos todos a época da vénia. o mais pobre fazia a vénia dobrando o corpo até fazer um ângulo de 90 graus. as elites mexiam o pescoço uns centímetros para a frente. talvez num ângulo de 9 graus – a briga do pobre era o reconhecimento do seu papel na sociedade. o fim do servilismo. da bajulação. da indiferença – eu não fazia parte desta rede servil. sempre me senti um revolucionário. um contestatário. nos primeiros anos da minha adolescência. em silêncio. a tenra idade não me permitia grandes aventuras. apenas em casa. contrariando os meus pais. era a preparação para mais tarde enfrentar o mundo. pelo menos o mundo que me servia. ao pé de casa. junto dos amigos. na escola. e depois no mundo do trabalho. aqui sim. sempre fiz o que me ia chegando à cabeça – a partir dos meus dezasseis anos. carreguei o corpo de catanas e comecei a desbravar terreno – não foi fácil crescer no colete de arrogância. sentia diariamente na pele o racismo. e na maior parte das vezes eras marginalizado e ignorado. ou pior. tornavas-te invisível. desprezado – quando tinha os meus doze anos. talvez treze. já não sei. qualquer coisa por aí. jogávamos aos centros. isto é. um amigo na baliza. um outro a centrar a bola. e quem conseguisse ultrapassar o guarda-redes. metesse a bola entre as duas pedras que faziam de postes. tinha direito a mandar sair um jogador. o último a ficar em campo era o vencedor – pois bem. eu era sempre o primeiro a sair do jogo – lembro-me que um desses amigos. que por sinal era o mais velho de todos. teria mais uns quatro ou cinco anos do que eu. o que na altura era imenso. um já homem à procura de acasalamento. encontrou em mim o seu inimigo de estimação. e sempre que marcava golo. o braço estendia-se na minha direção numa velocidade estonteante. e da sua boca saía com jubilação a palavra mestra: r-u-a – bem me custou. mas depressa aprendi a aguentar firme a guerrilha. e quando por artes mágicas. ou divinas. porque na época era crente. eu marcava golo. não imaginam o prazer que me dava em retribuir. era preciso coragem. acreditem. e da minha boca saía à velocidade do som a palavra mestra: r-u-a – os outros putos quando marcavam golo nunca mandavam sair um dos grandes. ficavam aterrorizados. e mandavam também eles sair um dos mais pequenos – ainda hoje consigo visionar os olhos-bala do meu amigo. nunca morri alvejado. porque o meu sorriso protegia-me. carregava toda a alegria do mundo. a justiça reparadora – o meu amigo mandava-me para a rua vinte vezes. eu mandava-o apenas uma. mas valia por duzentas. fazia-me david. e ele… apenas mais um golias. morto por um golo de um puto – foram precisos mais uns quantos anos para que pudesse reverter este bullying permanente e persecutório – com os meus quinze anos comecei a conduzir. o meu pai tinha uma carrinha da empresa e tornou-se fácil ficar com a chave – sem que ele soubesse comecei a deslocar-me a combustão – era uma época diferente desta em que vivemos. havia pouca polícia. e a que havia era conhecida – naquele tempo conduzir sem carta não era socialmente reprovável. era tolerado. principalmente em cidades pequenas como braga. todos se conheciam – era muito raro um jovem ter carro. ainda para mais. com quinze anos – entre os onze e catorze anos li praticamente todos os clássicos da literatura portuguesa. ao contrário da maior parte dos meus amigos. que os únicos livros que lhes passavam pelas mãos eram os almanaques da disney – confesso que não me sentia capaz de lhes dizer que o meu hobby preferido era a leitura. isso ficou para mais tarde com o meu amigo tiago. preferia o silêncio. era um gosto pouco recomendável para rapazes. e ainda menos para um filho de industrial – esta minha paixão ainda me tornou mais diferente. e possivelmente mais um bom motivo para chacota dos mais velhos – não foi fácil crescer. principalmente para um miúdo protegido como eu. cheguei passado onze anos do meu irmão. e treze da minha irmã. mas confesso que nunca me dei bem com essa ideia do benjamim da família – carreguei-me em liberdade. e fui pelo mundo sem queixas. habituei-me. e aprendi a não me lamentar de nada. preferi sempre acreditar que tudo acontece por uma razão. e tenho boas razões para acreditar que ainda bem que assim aconteceu

 

brevemente a parte 2

 

 

13/09/2023

estrada






há estradas que nunca nos levarão para lado nenhum – in no meu peito já não cabem gaivotas – in 3 morte terapêutica 


 

31/08/2023

o meu paradoxo








 

será que ainda sou eu? ou será que se me aplica o paradoxo do navio de teseu? acho que já nada resta do que me trouxe a este pôr-do-sol. não tenho a mesma forma. nem os mesmos sonhos. as mãos fizeram-se em letras e os pensamentos romperam-se pela inutilidade – estou amarrado num corpo que se metamorfoseou para chegar a adulto – estou agora numa espécie de estágio de crisálida. estou parado. enrolado na vida a tentar compreender o meu insofrimento à incerteza - in paradoxo de teseu 

 

 


24/08/2023

botão-sol








a nossa casa

é do tamanho de um botão

onde vive amor

e louvação

e no prometido

que juramos cumprir

o tempo corre-nos

e o sol…

essa bola de luz…

ilumina-nos…

pela casa do botão




 

19/08/2023

mel







abrace todos os seus amigos

unte-os com mel

hoje

amanhã poderá ser tarde

mas se chover

abrigue-os

amanhã poderá fazer sol

mas se desabafarem

ouça-os

amanhã poderá ter ruído

mas se estiverem desanimados

anime-os

amanhã é outro dia

e por cada dia

que tiver um amigo a sorrir

o céu azulece

e amanhã…

outro amigo chegará