.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

14/09/2013

pecado proibido





mário dionísio - assinado com pseudónimo josé chaves. exposto na II EGAP (1947) onde foi apreendido pela PIDE. no museu da república e resistência e na casa da cultura de coimbra




sinal vermelho. proibido virar à esquerda – sentido proibido. proibido seguir em frente – sentido obrigatório. proibido virar à direita – em sinal azul. a mensagem é de auxílio. informação: na rotunda seguir em frente – gosto dos sinais que aconselham – quadrados. fundo azul e pelo meio um branco-relevo a dar movimento à informação. e tudo isto sem destoar na sua circunscrição geométrica – são sinais engraçados. sustentam a organização rodoviária com ilustração atraente: letras maiúsculas gigantes. casinhas. escolinhas. chavenazinhas. talherinhos e figurinhas simpáticas e determinadas em movimento – há naquele movimento-parado-decidido uma convicção segura do caminho; as pernas firmes. uma para a frente. outra para trás. e tudo exprime ação. direção. determinação. afirmação de uma vontade própria – é para ali que quero ir – confesso que tenho um fraquinho por estas silhuetas –
             [lembram a banda desenhada dos meus tempos de criança]
estes sinais a que raramente damos atenção. são bons sinais. amigos do homem aberto ao mundo – orientam sem reprimir. sem obrigar. permitindo o livre arbítrio. o direito da escolha – escolher caminho é liberdade – no meu tempo não se ensinavam estas coisas nas escolas. não havia liberdade. nem preferências. e os sinais eram todos de sentido obrigatório – no exame de admissão ao liceu as perguntas eram as de sempre: quantos castelhanos matou a padeira de aljubarrota? por quem perdeu o olho camões? como se apresentou egas moniz com sua família ao rei de leão? quem salvou os portugueses de entrar na segunda guerra mundial? o conhecimento administrado com censura ligado a sinais obrigatórios – sem conhecimento não há liberdade – a liberdade é tão antiga como o homem – já santo agostinho. no século V se preocupava com as questões da liberdade humana e a origem do mal – um dia. o pecador acordou e disse: o caminho é por aqui – para trás ficou definitivamente a vida de boémia. vadiagem. desinquieta e  voluptuosa – possídio. seu amigo pessoal. descreveu santo agostinho como um homem que trabalhava afincadamente rejeitando para sempre o desejo da carne. luxo. mordomias – não houve nenhum sinal obrigatório para esta opção de vida – nunca lhe passou pela cabeça que um dia os homens não seriam guiados pelos seus ideais. antes por sinais de obrigatoriedade presos a postes de ferro pintados a servidão: o caminho é por ali. quer queiram ou não – não vou por este caminho porque alguém entende que devo seguir outro rumo – como deixamos que isto aconteça quando todos sabemos que o caminho está errado – e o povo sem raiva para novas revoluções – está na hora de derrubar os sinais de sentido obrigatório – o povo das revoluções envelheceu e os jovens não conhecem a linguagem de maio de sessenta e oito. cresceram no conforto e a resistência é coisa dos livros – estamos todos sem forças para enfrentar estes sinais de desgraça – temos que reagir. afinal estão espalhados em todo o mundo e falam todos a mesma linguagem – um sinal de proibição é igual aqui ou na coreia do norte – bem. na coreia atrás do sinal há uma bala para quem não respeitar os sinais – nestes países os sinais são sagrados. como na índia o são as vacas – mas nós não estamos na coreia. nem na índia. nem na austrália. nem na alemanha. estamos em portugal. estamos todos naquele país que no século XV se atirou ao desconhecido e fez história na história do mundo – vamos continuar a permitir que o nosso país levante mais sinais de terror – não sou anarquista. pelo contrário. gosto de regras. gosto de boas regras quando estas derivam da vontade do homem sábio e justo – mas há homens sábios e justos a segurar os sinais do meu país? não. não há – então…. voltemos a fazer história
 



09/09/2013

rotundus




leonard da vinci



não gosto de rotundas – rotunda. proveniente do termo em latim: rotundus. em linguagem de mestre-de-obras significa toda a construção em forma de círculo – as rotundas da minha terra nasceram para dar vitórias-rotundas aos mestres-da-política – todas as rotundas são filhas de atos eleitorais e oriundas de várias famílias políticas – miscigenação – sem a promiscuidade das várias linhagens políticas as rotundas nunca encontrariam habitat favorável à sua reprodução – ostentando formas de mistura pouco condizentes com os costumes do povo nativo. impõem a sua cultura correligionária com o seu “modus operandi” e depressa esquecem a ligação de um povo a uma terra que os guarda à séculos – esta gente. simples. honrada e determinada. sempre teve por hábito caminhar em linha recta superando as adversidades da construção infindável de um estado-nação – a nossa história tem raiz. alma. paixão. sacrifício. língua e muita coragem. não somos um povo qualquer. e que. por via disso. não conseguimos compreender esta nova obrigação de tornear rotundas-ocas. rotundas-de-eleição – rotundas estas que não servem para coisa nenhuma a não ser a permuta do voto – estes comportamentos indignos. indecentes. indecorosos quebraram todas as normas da respeitabilidade do homem-político trazendo o descrédito a toda classe – para aristóteles. o homem é um animal político atingindo a sua plenitude no espaço da pólis – para este filósofo a “cidade ou a sociedade política” é o “bem mais elevado” e por isso os homens se agrupam em comunidades. da família à pequena aldeia – esta aliança do bem-comum dá origem às cidades e aos estados – onde está este homem-político? talvez só tenha existido mesmo na antiguidade – o que seria de nós sem os filósofos? onde encontraríamos o saber. esperança. lisura. escrita do bem. o pensamento puro. não digo o pensamento sem erro. digo puro. decantado do pecado. da ambição desmedida – não sei. não sei mesmo. sei que fazem falta. quero acreditar no conhecimento como remédio de todos os males – os homens das rotundas. profetas do prazer. discípulos de epicuro na parte que lhes servem os intentos da ganância. esquecem o princípio fundamental da sua doutrina de vida: a amizade – não acreditava na vida para além da morte mas acreditava na generosidade do dar prazer em vida. acreditava que era fundamental dar prazer para o poder receber – dito por outras palavras. “o melhor meio de ser egoísta é não ser egoísta - sereis vosso melhor amigo. sendo um bom amigo para os outros” – as rotundas do meu tempo não fazem amizades; são redondas mas não simbolizam a aliança do povo com os seus representantes políticos – não há honra nas minhas rotundas. victor hugo diz: "há pessoas que observam as regras de honra como se veem as estrelas: de longe” – o meu país está doente. muito doente e esta nossa gente não merece esta dor de um mal que não é hereditário – na origem destas novas doenças estão os políticos de um regime que se diz democrático – mentira. o poder não é do povo – transmissíveis ao homem pelo homem. independentemente da sua cor política. o corpo desumaniza-se numa crueldade animal em nome de uma militância interesseira – o que estava morto já não está mais – o pecado voltou a despontar. e o reaparecimento de enfermidades que pensávamos ultrapassadas voltam a emergir – as revoluções dos povos contra a tirania dos valores da dignidade humana ainda não terminaram – várias são as teorias formuladas pelos sociólogos para o aparecimento destas novas estirpes – no entanto. apesar dos estudos ainda não serem conclusivos. um grupo de estudiosos aponta para a principal causa destas maleitas à mutação do vírus – as principais características desta nova praga são a flexibilidade. adaptabilidade e mutabilidade – embora este vírus necessite de uma célula hospedeira para se reproduzir. este manifesta um facilidade rara para a reprodução de cópias. dando origem não à morte do hospedeiro mas à infeção crónica – os mais afetados com este vírus-parasitário são os idosos. crianças. desempregados. jovens licenciados. contratados a prazo. entre outros – infelizmente não se vislumbra nenhuma vacina a curto prazo para exterminar esta estirpe parasitária – só com uma nova filosofia política seremos capazes de erradicar para sempre esta desumanidade – as rotundas são filhas de muitas mães e raramente se sabe quem é o pai biológico – mas afinal para que servem as rotundas? as rotundas foram construídas principalmente para os atos eleitorais – depois do escrutínio dos votos. os vencedores. isto é. os que tiveram mais votos. são impelidos a circular na rotunda das rotundas – a mãe de todas as rotundas – festejam aos pulos e de punho no ar gritam vitória – vitória. vitória. vitória. até que o dono da vitória lhes diz que está na hora de saírem da sua rotunda – o DNA está contaminado e os santos já não são agostinhos – o pecado veio para ficar. não há remição da desvirtude. nem retiros espirituais capazes de salvar as almas de gentalha que vive à custa do sofrimento do seu semelhante – já ninguém fala. gritar é felicidade e nas rotundas grita-se – o povo da rotunda está satisfeito – quem não está na rotunda não é da boa gente e quem não salta é estúpido – brevemente teremos mais um círculo eleitoral e mais uma rotunda para quatro anos




03/09/2013

Tabacaria




fernando pessoa




TABACARIA



Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.



Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.



Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.



Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.



Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?



Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.



(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)



Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.



(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)



Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente



Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.



Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.



Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,



Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.



Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.



Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.



(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos, 15-1-1928